O Baluarte de S. Cristóvão em Azamor
“Os nossos lugares em África eram praças de guerra. As suas muralhas conservadas até hoje – na maioria dos casos – atestam a sua solidez. Os seus moradores podiam dormir sossegados. Para as erguer não se pouparam os bons materiais, alguns deles vindos de Portugal, como a pedra de cantaria, a madeira e a cal. Trabalharam nelas os melhores artífices da metrópole e dirigiram-nas os melhores debuxadores e mestres de pedraria do tempo, nacionais ou estrangeiros.” (LOPES, [1937] 1989, p. 41)
O período da ocupação portuguesa da costa de Marrocos coincide com uma época em que as técnicas de defesa militar se alteram radicalmente, fruto da generalização da utilização da pólvora. Fortemente influenciados pelo modelo vanguardista italiano, os debuxadores portugueses puseram em prática nas Praças de Marrocos os princípios inovadores da transição da neurobalística para a pirobalística e Marrocos foi um autêntico laboratório onde essas técnicas foram experimentadas. O contributo português para o desenvolvimento da Arquitectura Militar foi inegável.
A Couraça do Castelo do Mar de Safim
“Portugal conservava os métodos construtivos, talvez por não sentir necessidade de modificar as estratégias e arquitecturas militares do reino, em situação estável. Só a expansão para outros domínios Além-mar mostrou a carência da evolução das formas de fortificação. Aí a ciência militar era constantemente testada, para deter a hostilidade latente de um inimigo muçulmano que cada vez se actualizava mais através dos contactos que também tinha com a vanguarda das artes da guerra.” (LOPES, 2009, p. 177)
Para por em prática estes novos conceitos, Portugal socorreu-se dos grandes mestres nacionais e estrangeiros, dos quais ressaltam os nomes de Diogo Boitaca (Jacques Boytac), de Francisco Danzilho (Francisco Danzillo), dos irmãos Diogo e Francisco de Arruda, de Miguel de Arruda, de João de Castilho (Juan de Castillo) ou de Benedetto da Ravenna.
Podemos considerar que as intervenções se realizaram em três períodos distintos, correspondendo a três fases de um mesmo processo _ durante o século XV, em que apresentam claramente um carácter tardo-medieval, não se encontrando ainda influenciadas pelos novos conceitos da pirobalística; no primeiro quartel do século XVI, em que se caracterizam como fortificações da transição, ou seja, apesar de manterem traços tardo-medievais começam a transformar-se para se adaptarem à utilização da pólvora; a partir de meados do século XVI, em que se assumem claramente como fortificações do Renascimento, libertando-se do espartilho medieval e tirando pleno partido das possibilidades que a utilização da pólvora permitia.
O Castelo de Alcácer Ceguer
No primeiro caso estão intervenções nas quatro Praças conquistadas no século XV, Ceuta, Alcácer-Ceguer, Arzila e Tânger, consistindo basicamente de reparação e manutenção das cercas existentes e de criação de condições para a instalação das guarnições portuguesas. As obras estiveram a cargo de Rodrigo Anes, Mestre das Obras dos Lugares de África. Neste período são construídos os atalhos de Ceuta e Tânger, e demolição das construções que ficaram fora dos novos perímetros muralhados, realizados importantes reforços na muralha de Alcácer-Ceguer, muito danificada pelos bombardeamentos portugueses, e construída uma primeira couraça nesta última Praça, ligando a muralha ao Rio Ksar Seghir, que se revelaria pouco eficaz e acabaria por ser demolida. Estas intervenções realizam-se muito ao gosto medieval, com os seus muros aprumados e torreões semi-circulares adossados ao pano de muralha e espaçados de forma constante. Em Tânger foi construído o Castelo de Cima, no local da actual Casbah.
O muro de atalho de Tânger
De todas elas a mais significativa seria a da construção do atalho de Tânger, pelas alterações de fundo que provocou na própria cidade, como refere Jorge Correia:
“A contracção da superfície disponível imposta pelos portugueses conduziu a uma profunda alteração no sentido e direcção da cidade, empurrando Tânger para o mar por razões defensivas e de acessibilidade. O atalho induziu igualmente um processo de geometrização da cidade, agora regular em toda a sua extensão de frente de terra.“ (CORREIA, 2008, p. 217)
No caso de Arzila, Portugal não sentiu necessidade de implementar obras significativas antes do virar do século, limitando-se, ao que parece, a apropriar-se da cidade. O argumento de que a razão estaria na existência do acordo de paz celebrado entre Portugal e o Reino de Fez, estabelecido em 1471 e que vigorou até inícios do século XVI, não seria por si só suficiente, já que esse mesmo acordo previa a soberania portuguesa sobre não só Arzila, como sobre as praças de Ceuta, Alcácer Ceguer e Tânger, e incluía também “os lugares e aldeias do campo ou termo dos mesmos”. (LOPES, [1937] 1989, p. 26)
O pano Sul da muralha de Arzila
No início do século XVI a Coroa Portuguesa decide levar a cabo obras de fundo nas Praças de Marrocos, enviando para as Praças do Norte Francisco Danzilho, Diogo Boytac e João de Castilho, arquitectos militares de renome, que já tinham provas dadas a data da sua contratação. Danzilho era natural da Biscaia e foi responsável pela construção da Cidadela de Almeida e por intervenções em Castelo Rodrigo. João de Castilho, natural da Cantábria, trabalhou em Espanha nas catedrais de Burgos e Sevilha e em Portugal no Convento de Cristo em Tomar, Mosteiro dos Jerónimos e Mosteiro da Batalha. Boytac, natural de França, fez os primeiros projectos do Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, e trabalhou nas obras do Mosteiro da Batalha, da Sé da Guarda e da Igreja de Santa Cruz em Coimbra, sendo agraciado por D. Manuel com o título de Mestre das Obras do Reino. Para as Praças do Sul foram enviados os irmãos Diogo e Francisco de Arruda. Os irmãos Arruda, sobretudo Diogo, o mais proeminente dos dois, eram fortemente influenciados pelas teorias italianas, as mais avançadas da Europa, sobretudo pelas de Francesco Di Giorgio Martini, com quem em Itália trabalhara na construção das muralhas de Nápoles. (LOPES, 2009, p. 67)
Antes da sua partida para Marrocos Diogo de Arruda foi autor do Paço da Ribeira de Lisboa e do Castelo de Évora Monte e trabalhou no Convento de Cristo em Tomar, tendo sido nomeado Mestre das Obras da Comarca de Entre Tejo e Odiana. Francisco foi o autor da Torre de Belém e trabalhou nos castelos de Portel, Moura e Mourão, sendo-lhe também atribuídos os projectos da Casa dos Bicos e do Palácio da Bacalhoa.
O Borj Rouah da Kechla de Safim
Neste período chamado da transição, o modelo medieval coexiste com as inovações renascentistas, mas os conceitos medievais das construções militares vão sendo abandonados e as fortalezas começam a sofrer modificações para melhor resistirem aos ataques da artilharia. O conceito da defesa ao longo de todo o pano subsiste, mantendo-se adarve e merlões, surgindo as primeiras canhoneiras, situadas a vários níveis para garantir o disparo a longa e curta distância, combinadas com seteiras, troneiras e matacães. Os baluartes começam a esticar-se para o exterior do pano muralhado, procurando aumentar o ângulo de tiro e ganham formas arredondadas para facilitar o ressalto dos projecteis. Surgem os alambores para afastar o assaltante do pano da muralha e evitar as acções de minagem, e o traçado das cercas é quebrado em dentes, criando aberturas laterais para o chamado fogo rasante. A altura das muralhas é reduzida, a sua espessura aumentada e a superfície inclina-se para melhor resistir aos impactos e facilitar os ressaltos.
O Baluarte do Raio em Azamor
Nesta arquitectura da transição os elementos das defesas construídas são reformulados, não só em termos das suas formas, que se submetem a conceitos de geometria para garantir a eficácia dos ângulos de tiro e se adaptarem melhor aos efeitos dos impactos dos projecteis disparados pelo inimigo, como também em termos das técnicas construtivas e dos materiais, ao nível dos quais as propriedades elásticas da cal e da terra se mostram muito mais eficazes que a rigidez da pedra. O aparente princípio de que a maior solidez da pedra seria mais adequada para resistir aos projecteis disparados pelos canhões seria desmentida pelos excessivos ressaltos que provocava, pela perigosa lascagem que originava e pela sua falta de capacidade de absorção dos impactos. Ao contrário, a cal de boa qualidade, combinada com pedra solta e terra, nomeadamente em camadas de características construtivas diferenciadas, por exemplo combinando taipa com alvenaria pobre, colocadas em obra em paredes inclinadas, permitia dissipar o efeito de fissuração nas juntas, ensinamento da própria arquitectura militar Árabe, que o Manuelino reutiliza de forma muito eficaz. O embasamento das muralhas e baluartes é protegido por um alambor, cuja função é reforçada pela abertura de um fosso, construído de acordo com os preceitos de Giorgio Martini, segundo os quais deveria ter um “ângulo de incidência entre os 45° e os 60°, para favorecer o “rebate” do tiro atacante.” (LOPES, 2009, p. 129)
Canhoneiras para tiro rasante no Baluarte de S. Sebastião em Mazagão
Um outro aspecto que advém das teorias de Giorgio Martini é o da necessidade de descontinuidade do traçado das muralhas, que contribui para o seu reforço estrutural e permite a colocação de artilharia em posição rasante. Este último aspecto seria decisivo para o desenvolvimento dos conceitos da arquitectura militar, que solucionariam nas fortificações da geração seguinte os problemas do tiro de proximidade e da cobertura dos ângulos mortos, como Benedetto da Ravenna e Miguel de Arruda aplicariam de forma tão eficiente em Mazagão.
No ano de 1511 Francisco Danzilho chega a Ceuta com a missão de reforçar as defesas da cidade, concretamente o pano Nascente, o Castelo e as couraças. Essas obras de reforço das defesas de Ceuta “reflectiam já um desajuste face à importância do sítio” (CORREIA, 2008, p. 115) e nomes como os de Rodrigo Redondo, Duarte Coelho, João de Castilho e Diogo de Arruda são referenciados como tendo trabalho em Ceuta nesse período. Mas o estado de degradação das muralhas e o seu desajuste em relação aos avanços das técnicas da pirobalística exigiam uma intervenção de fundo que seria protagonizada por Miguel de Arruda e Benedetto da Ravena a partir de 1541, como adiante veremos. De facto, o problema das fortificações de Ceuta não era uma questão de conservação das estruturas existentes, mas sim da sua reformulação e adaptação aos tempos que corriam, marcados por ameaças tecnologicamente mais evoluídas.
A Couraça de Alcácer Ceguer
Em Alcácer Ceguer é construída uma nova couraça ligando o Castelo ao Mar, desenhada por Diogo Boytac em 1502, e realizadas obras no Castelo, surgindo como responsáveis pelas mesmas Pero Vaz, Fernão Gomes e Diogo Barbudo (CORREIA, 2008, p. 158). Em 1511 francisco Danzilho projecta novos baluartes para colocação de artilharia e introduz duas torres circulares na extremidade da couraça.
A missão de Francisco Danzilho em Tânger é a de reformular as defesas da frente de mar da cidade. Os projectos que elabora seriam implementados nos anos seguintes e as obras seriam posteriormente medidas por Diogo Boytac e Bastião Luís. A intervenção centrou-se no Castelo Novo, Couraça “e nos dois espigões, denominados “couracetas”, voltados a Norte” (CORREIA, 2008, p. 235), no reforço da Barbacã e degraus da Ribeira, munindo-a de um alambor, e a reformulação da Porta da Ribeira, que foi protegida com um baluarte. O tramo da muralha situado entre a Porta da Ribeira e o atalho Sul foi “quebrada” para um melhor posicionamento da artilharia. O atalho Sul foi nesta data quebrado em três tramos através de dentes para reforço estrutural da muralha e para permitir ângulos de tiro rasantes ao seu pano, sendo a sua base reforçada com um imponente alambor.
A “cortina serrada” e o alambor de Tânger
“A mesma lógica de cortina serrada foi imposta à reconstrução da muralha sul, reforçada por dois dentes, por um robusto alambor que se fundeava no fosso seco e interrompida por um torreão semicircular, hoje perdido.” (CORREIA, 2008, pp. 235-237)
Em Arzila é consumada a obra do atalho no início do século XVI, mas os acontecimentos ocorridos em 1508 e 1509 viriam a apressar uma intervenção de fundo nas estruturas defensivas da cidade. Em Outubro de 1508 o sultão de Fez, Mohammed Al-Burtughali, cerca Arzila com o apoio dos alcaides de Tetuão e Xexuão, Sidi Ali El-Mandari e Mulay Ali Berrechid, e conquista a chamada Vila Nova, ficando apenas o Castelo nas mãos dos portugueses. O capitão da praça era na altura D. Vasco Coutinho, que é auxiliado pelo seu antecessor, D. João de Meneses, e por uma armada espanhola comandada por Pedro Navarro, conseguindo expulsar as tropas do rei de Fez. Arzila sofre grandes destruições nas suas muralhas, no casario e na igreja de S. Bartolomeu, que é incendiada. No ano seguinte dá-se o segundo cerco a Arzila, abortado com a intervenção de uma armada enviada por D. Manuel.
O Terreiro de Arzila e a Torre de Menagem
Estes dois cercos vêm comprovar as debilidades das defesas de Arzila e a necessidade de uma intervenção de fundo no recinto muralhado, “levando D. Manuel a tomar a decisão de interromper as obras do Mosteiro dos Jerónimos para que o mestre responsável pelos respectivos trabalhos pudesse orientar as obras de defesa de Arzila (…) Diogo Boytac é enviado em 1509 para Arzila, levando consigo uma avultada quantia em dinheiro e instruções para fortificar a cidade com muros de pedra e cal, em vez das habituais construções de pedra e barro.” (MATIAS, 2003, p. 68)
Boytac permanece um ano na cidade, durante o qual elabora “um plano global de intervenção assente em três vectores fundamentais para a sustentabilidade e afirmação da praça portuguesa: reforço da cerca, com particular relevo para a muralha do atalho; emergência simbólica do castelo; consolidação urbana da vila”. (CORREIA, 2008, p. 185)
A porta da Vila de Arzila
A execução das obras é entregue a Francisco Danzilho, que chega a Arzila em 1511. Danzilho começa por reformular o Castelo, intervindo nas construções situadas no seu interior e nos baluartes da Praia e de Santa Cruz, nos quais são abertas canhoneiras. Posteriormente o muro do atalho é reformulado, introduzindo-se três quebras no seu traçado, para melhor se adaptar à utilização da artilharia, o fosso é construído, envolvendo também o castelo e o tramo sudoeste, e a Porta da Vila ou de Fez é também munida de canhoneiras e de uma ponte levadiça. A Porta da Vila, actual Bab Hauma, era uma porta secundária da cidade, sobretudo utilizada para saída e entrada de tropas para vigilância do campo exterior e para acesso às pequenas hortas existentes ao longo do atalho. A frente de mar, especialmente importante para as comunicações da cidade com o exterior, é dotada de três baluartes que se projectam sobre a água, vocacionados para a garantia do controle da linha de costa pelos portugueses e para anular qualquer ataque feito a partir do mar:
São eles o conjunto Couraça e Baluarte da Couraça, no extremo Sul, o Baluarte da Pata da Aranha, que flanqueia a Porta da Ribeira ou do Mar, no extremo Norte, principal porta de entrada na cidade e de ligação ao porto, e o Baluarte de S. Francisco, que garante uma presença da artilharia a meio do pano da muralha.
A Couraça e o Baluarte da Couraça de Arzila
A intervenção em Safim data de 1512, com a chegada de Diogo de Arruda à cidade, “e versou essencialmente sobre a edificação de novos muros de atalho e reparação dos mantidos, ainda em taipa.” (CORREIA, 2008, p. 271). Os novos panos eram ameados, com adarve e protegidos por alambor. Foram criados baluartes de planta em U, salientes, com dois níveis de bocas-de-fogo. A partir de 1513 Arruda parte para Azamor e é substituído por João Luís, que edifica o Castelo do Mar e respectiva Couraça, protegendo o porto. A obra do Castelo de Cima, no remate superior da muralha, cujo grande Baluarte da Alcáçova, estrutura circular, seria terminado em 1540, ou seja, em vésperas do abandono da Praça, foi entregue a Lourenço Argueiro, que também terá construído o Baluarte da Couraça.
Em Azamor, seria Diogo de Arruda encarregue da intervenção, chegando à cidade nesse mesmo ano de 1513. “Levava ordens para fazer primeiramente o alcácer da cidade, para o que foram caravelas com cal e outros apetrechos necessários. A cava começou a ser aberta, em volta da alcáçova, no dia 1 de Dezembro.” (DIAS, 2004, p. 127)
O Baluarte de S. Cristóvão em Azamor
Em Fevereiro do ano seguinte, Francisco de Arruda junta-se ao irmão e, segundo consta, levando consigo o ainda jovem Miguel de Arruda, com apenas 15 anos de idade, que, com o pai e o tio se inicia nas técnicas da construção militar. A intervenção dos Arrudas, que durou os anos de 1514 e parte de 1515, incidiu na generalidade da muralha, com alambor, protegida por fosso, nos baluartes do lado de terra, Baluarte de São Cristóvão e Baluarte do Raio, e nos do lado do rio, a Couraça e o Baluarte do Rio.
Os baluartes do Raio e de São Cristóvão são duas impressionantes máquinas de guerra deste período da transição da neurobalística para a pirobalística, combinando canhoneiras para artilharia ligeira nas aberturas inferiores, para tiro de proximidade, com canhoneiras para artilharia pesada nas aberturas superiores, para tiro à distância, com troneiras e matacães, num total de três níveis de fogo.
O Baluarte do Raio, situado no ponto de inflexão da muralha, é uma espécie de torre semicircular esticada para o exterior, “tem dispositivos para o tiro mergulhante (…) dois pisos acasamatados, que disparavam em 280°, e um piso alto poligonal dotado de merlões e canhoneiras”. (DIAS, 2004, p. 131)
O Baluarte do Raio de Azamor
“Quanto aos dois baluartes mais importantes da praça, eram tidos como suficientes para proteger o castelo, tal era a sua grandiosidade. S. Cristóvão (de forma circular) e o Raio (de planta alongada e com remate semicircular) são massas imponentes que dominam dois extremos da fortificação. A desmultiplicação de níveis de tiro nos vários sentidos (rasantes e radiais) e os rasgamentos verticais feitos no corpo dos baluartes mostram duas estruturas militares de grande efeito dissuasor. Reúnem a potência das novas armas de fogo de modo efusivo com um desenho que exibe um resultado decorativo sem antecedentes na arquitectura militar.” (LOPES, 2009, p. 85)
Em 1515 os trabalhos foram continuados por João de Castilho, que é encarregue da construção do atalho. “Os trabalhos do atalho seriam dados como terminados em 1520, pelo governador de então, D. Álvaro de Noronha, o mesmo que havia completado o arrasamento da vila velha um ano antes. A porção de cidade excluída pelo atalho constituía uma ameaça ao castelo uma vez que nas suas casas e ruas se poderiam preparar ataques ao reduto português”. (CORREIA, 2008, p. 303)
A construção do atalho e o arrasamento da Vila Velha são acompanhados por uma política em relação às portas da cidade, que as entaipou na sua quase totalidade, criando um sistema de entrada indirecta na Vila Nova, muito eficaz para a sua defesa. Do lado de terra é apenas mantida a Porta do Combate, actual Bab El-Medina, única porta da cerca moura que os portugueses utilizam, e que dá acesso à zona de hortas e pomares, que passa a constituir uma espécie de ante-câmara da cidade. É construída a Porta da Vila no muro de atalho, constituindo a verdadeira porta de entrada na Azamor portuguesa. É mantida a Porta da Ribeira, abertura fundamental para a ligação da cidade com o Rio Morbeia, local de entrada dos abastecimentos de que necessitava.
O Caminho de Ronda de Azamor
A fortificação de Azamor é o exemplo típico da arquitectura militar da transição, que mantem ainda algumas características próprias das fortificações medievais, como o adarve ou caminho de ronda, as ameias e merlões e aberturas para disparo de projecteis através da força mecânica, como seteiras e matacães, coordenadas com inovações que procuram adaptar a arquitectura militar às novas exigências que a utilização da pólvora vem trazer.
“A implantação dos portugueses em Azamor enquadra-se nesse tempo de mudanças e experiências. A interpretação das estruturas arquitectónicas existentes ajudará a reconhecer o impacto da apropriação portuguesa confrontado com as pré-existências islâmicas herdadas. Entre elementos que ainda se consideram medievos e trabalhos que já anunciam a modernidade, de caracterização retórica e simbologia político-militar, as arquitecturas militares de Azamor urgem ser estudadas à luz desse tempo de transição. Fundem-se diversas disciplinas (arquitectura militar, urbanismo, englobando a geometria e matemática, etc.) em plena transformação e redescoberta nas artes da guerra.” (LOPES, 2009, p. 15)
O Baluarte de S. Sebastião em Ceuta
Após a queda de Santa Cruz do cabo Guer toda a filosofia de intervenção portuguesa em Marrocos é alterada, decidindo-se o abandono da grande maioria das praças, mantendo-se apenas Ceuta e Tânger no Norte e Mazagão no Sul, praças que seriam completamente reformuladas de acordo com os mais recentes princípios da arquitectura militar do Renascimento. A tarefa é confiada a Miguel de Arruda, que se socorre de Benedetto da Ravenna, arquitecto ao serviço de Carlos V de Espanha.
Miguel de Arruda pertence já à segunda geração de debuxadores da pirobalística, num período em que os conceitos evoluem de forma muito rápida. No seu tempo a arquitectura militar já se encontrava liberta dos conceitos medievais, tornando-se num exercício de geometria, já que a concepção das fortificações é realizada totalmente com base no estudo dos ângulos de tiro. Surgem os baluartes de forma pentagonal ou em cunha, dispondo de bocas-de-fogo laterais para tiro rasante protegidas por orelhões. Os panos de muralha ganham espessuras impressionantes, inclinações acentuadas, e deixam de funcionar como defesas contínuas, mas sim como elementos de ligações entre os baluartes, nos quais a toda a defesa se concentra. Os panos quebram-se para o interior, abrindo o ângulo de tiro, e a combinação fosso-muralha ganha um papel predominante, garantindo uma mais eficaz defesa dos panos edificados.
Os “panos quebrados” da Cidadela de Mazagão
O tiro rasante é de importância decisiva para a defesa da muralha, já que veio resolver o problema do tiro de proximidade e dos ângulos mortos, anteriormente solucionado com canhoneiras a vários níveis, o que levantava questões de segurança em relação às situadas no nível inferior, necessitando de defesas complementares como troneiras e matacães, sendo os baluartes do Raio e S. Cristóvão em Azamor, autoria dos irmãos Arruda, um exemplo paradigmático. O tiro rasante vem resolver este problema, permitindo cobrir os terrenos mais próximos das muralhas com canhoneiras elevadas, segundo o princípio de que os terrenos adjacentes a cada baluarte eram defendidos pelo tiro realizado a partir do baluarte seguinte, através de canhoneiras laterais.
O Fosso Navegável de Ceuta
Em Ceuta a intervenção assentou sobretudo na reformulação da chamada frente de terra. A Muralha Real, construída ao longo do Fosso Navegável, actual Fosso de S. Felipe, unindo os Baluartes de Santo António e S. Sebastião, baluartes de orelhões em forma de cunha, é um impressionante pano inclinado de alvenaria de pedra com 170 metros de comprimento por 20 metros de altura e 11 metros de espessura, munido de canhoneiras no seu topo. A implantação e forma dos baluartes foram concebidas para garantir a cobertura dos principais ângulos de tiro, não só para um ataque frontal, como para a defesa da Porta do Albacar, a Norte, e da Couraça, a Sul. Para a construção foram recrutados pedreiros na comarca de Évora e a obra foi levada a cabo entre 1541 e 1549. “Os carregamentos de cal foram ditando a agenda do estaleiro” (CORREIA, 2008, p. 121). Finalmente, em 1549, o fosso foi inundado e a obra da frente Poente dada como terminada.
O Baluarte da Alcáçova de Tânger
Em 1549 Miguel de Arruda chega a Tânger, também enviado por D. João III, onde realiza importantes projectos para modernização das defesas da cidade, que, no entanto, apenas seriam concretizados por Diogo Telles e Isidoro de Almeida alguns anos depois, já durante a regência de Dona Catarina e no reinado de D. Sebastião. A principal intervenção do projecto de Arruda é a construção da Cidadela, que vem reformular todo o castelo Velho e dotar o acesso a partir do planalto do Marshan de defesas eficazes, destacando-se o Baluarte dos Fidalgos ou Borj El Kasbah, que defende a sua entrada. É um impressionante baluarte assente num alambor, de altura mais reduzida e forma trapezoidal, típico deste período de especialização da arquitectura militar adaptada à artilharia. Na confluência dos dois atalhos são reformuladas as características do chamado Baluarte dos Irlandeses ou Cubelo do Bispo. “Trata-se de uma torre quadrada, ainda alta, em estilo medieval tardio, mas já influenciada pelas novas formas abaluartadas do Renascimento” (CORREIA, 2008, p. 239)
Planta da Cidadela de Mazagão de 1611, anónima, Códice Cadaval, Torre do Tombo
Conforme referido anteriormente, a expulsão dos portugueses de Santa Cruz do Cabo Guer, actual Agadir, em 1541, e o abandono de Azamor e Safim no ano seguinte, obrigam à concentração das defesas da costa atlântica de Marrocos na praça de Mazagão. As suas estruturas defensivas são então completamente renovadas, a fim de assegurar uma posição estável para o apoio às frotas portuguesas que faziam a rota da costa Africana. O objectivo era “concentrar forças numa fortaleza roqueira construída do zero segundo os princípios do moderno sistema abaluartado italiano“. (MOREIRA, 2001, p. 42)
O processo que conduziria à construção da Cidadela de Mazagão é centralizado na pessoa de D. Luís, irmão do rei D. João III, que organiza uma equipa de arquitectos e engenheiros militares, começando por recolher informações e opiniões de vários especialistas. Um deles foi Francisco de Holanda, que elabora em Itália um primeiro esboço a partir dos conceitos teóricos mais avançados da época. Iluminista, arquitecto, pintor, escultor e crítico de arte, Francisco de Holanda ou d’Olanda foi um dos mais importantes vultos do Renascimento em Portugal.
Miguel de Arruda, responsável pela coordenação do projecto, contrata em 1541 o engenheiro militar italiano Benedetto da Ravenna para desenhar o projecto-base. Benedetto encontrava-se ao serviço de Carlos V de Espanha, trabalhando na adaptação de diversas fortificações para a utilização da artilharia, sendo autorizado a prestar serviço a D. João III de Portugal no reforço das defesas de Mazagão, Tânger e Ceuta.
O Baluarte do Anjo em Mazagão
Quando Benedetto da Ravenna chega a Mazagão com Miguel de Arruda e João de Castilho, responsável pela construção, já se encontrava no local o arquitecto Diogo de Torralva, cunhado de Miguel de Arruda, responsável pelo estudo do local e implantação da fortificação. Os estudos de Torralva vão no sentido de se implantar o forte o mais possível junto do mar, de forma a ter o mínimo contacto com terra. Este princípio era defendido pelo próprio D. João III quando escreve em 1541 a Miguel de Arruda, que “quamto esta força (=fortaleza) mais metida na agoa for tamto mais forte e defensável será”. (MOREIRA, 2001, p. 51, citando as instruções régias)
Benedetto estabelece então as linhas-mestras a que deveria obedecer a nova fortificação:
Planta quadrangular com cerca de seis hectares de área, com os lados “quebrados” em estrela de quatro pontas, para aumentar o ângulo de tiro, com quatro baluartes nos cantos, encimados por casamatas, paredes com doze metros de espessura, sobre as quais se implanta o caminho de ronda, e fosso dos lados Sul, Poente e Norte. Do lado Nascente, na frente de mar, a muralha sofre uma descontinuidade para formar um pequeno porto de abrigo. Uma porta principal no centro do pano Poente, duas pequenas portas secundárias e mais outras duas pequenas portas de apoio á construção.
A Cidadela de Mazagão
“O modelo repousava sobre o princípio fundamental da eliminação dos ângulos mortos ou cegos através do cruzamento de linhas de fogo rasantes e paralelas aos planos horizontal da água do fosso e vertical da muralha, disparadas a partir de dois níveis de canhoneiras colocadas nos orelhões dos baluartes. O sistema assumia-se como um autêntico organismo bélico através da desmultiplicação das direcções de tiro desde as plataformas superiores dos baluartes, coroados com seus cavaleiros, e ao longo dos caminhos de ronda das instâncias intermédias dos muros, como provam as diferentes orientações das canhoneiras mazaganenses.” (CORREIA, 2007, pp. 198-199)
A geometria da fortificação é assim determinante para garantir a sua eficácia enquanto estrutura defensiva. O fogo cruzado de artilharia concentra-se nos quatro baluartes situados nos cunhais _ Baluarte do Anjo ou de Santiago e Baluarte de S. Sebastião ou do Norte, do lado do mar, e Baluarte do Espírito Santo ou do Combate e Baluarte de Santo António ou de S. Jorge, do lado de terra _ e no pano de muralha ao longo do caminho de ronda, cobrindo o terreno circundante de forma a aniquilar qualquer tentativa de assalto. Sob o Baluarte de S. Sebastião foi criado um depósito para armazenamento de pólvora, o paiol. Sobre a técnica de quebrar os muros para interior, aumentando o ângulo de tiro. Refere Rafael Moreira:
“Mais importante como experiência, já teorizada na Itália mas só aqui empregue pela primeira vez, (…) é o traçado dos muros em cortinas rectas até 300 metros de extensão: eles inclinam-se para o interior formando ângulos muito abertos entre dois baluartes adjacentes. Trata-se de um recurso para aumentar a capacidade de vigilância e alargar a zona de tiro…” (MOREIRA, 2001, p. 57)
A Calheta da Cidadela de Mazagão
Entre os dois baluartes da frente de mar foi criada a Calheta ou Porto, acessível através da Porta do Mar ou da Ribeira, e protegido por uma Couraça. O pano de muralha da frente de mar foi reforçado com a introdução de alvenaria de pedra aparelhada, capaz de suportar o embate das ondas, pedra essa trazida do sítio da Pedreira, situado a uma pequena distância da vila.
A construção da Cidadela decorre num curto espaço de tempo, evitando possíveis ataques dos mouros, e é acompanhada por um corpo militar comandado por Luís de Loureiro, capitão experimentado na guerra de África, e por uma esquadra fundeada no mar. O Castelo Real tem um papel importante durante as obras, constituindo a base das operações até ao encerramento do perímetro da Cidadela. A dirigir os trabalhos encontra-se João de Castilho, com a colaboração de João Ribeiro.
“Em fins de Julho (de 1541) aí chegava o já sexagenário João de Castilho, à frente do verdadeiro exército de 1500 mestres-pedreiros recrutados em Évora e Tomar. Em 2 meses fazia-se o que se não fizera em 20 anos.” (MOREIRA, 2001, p. 43)
Uma rua em Safim
Mas a intervenção nas Praças de Marrocos não se resumiu aos aspectos relativos à sua defesa e reforço e reformulação das respectivas estruturas. Houve todo um trabalho de adaptação das próprias estruturas urbanas ao modo de vida europeu, racionalizando o seu traçado e funcionalidade, numa acção de estruturação urbana. É inegável a diferença abismal, diremos mesmo contraditória, entre os conceitos da cidade europeia e da cidade árabe. Enquanto a cidade europeia se caracteriza pela existência de uma estrutura regular, aberta e fluida, no princípio de que a cidade não é uma árvore (ALEXANDER, 1965, obra citada), a cidade árabe é precisamente uma árvore, com uma estrutura extremamente hierarquizada, na qual os espaços públicos se vão tornando cada vez mais privados e menos acessíveis, terminando em impasses, que constituem quase o prolongamento das próprias habitações. Este choque conceptual obrigou a inúmeras intervenções de racionalização, cuja abrangência dependeu fundamentalmente da existência de condições objectivas para as levar a cabo.
A Porta da Vila de Mazagão
De uma forma geral a intervenção portuguesa resumia-se a um arrumar das funções no território, e devemos ter em consideração que se tratava de praças militares, e como tal, com necessidades específicas, tendo os edifícios de logística, administração e defesa um carácter primordial, e de uma regularização dos traçados das vias e quarteirões, conferindo à estrutura alguma lógica e disciplina. Basicamente era criada a Rua Direita, eixo estruturador fundamental, em muitos casos ligando a Porta do Mar à Porta do Campo, ao longo do qual se localizavam os principais equipamentos colectivos. O Terreiro era outro elemento fundamental, enquanto espaço de confluência da população e de organização das principais cerimónias públicas. O castelo ou Alcáçova constituía em muitos casos “um espaço micro-urbano definido por algumas ruas e capaz de albergar” (CORREIA, 2008, p. 248) funções de caracter central.
Conforme referido, a amplitude dessas intervenções dependeu fundamentalmente de condições para as realizar. Se em Ceuta se observou “uma gradual regularização do traçado dos arruamentos, possibilitando a sedimentação de ortogonalidades viárias” (CORREIA, 2008, p. 131), em Alcácer-Ceguer e Tânger observam-se transformações tímidas, com base na abertura da Rua Direita e criação do Terreiro, em Safim já se realizou uma intervenção mais alargada, com a criação de alguns quarteirões de traçado regular definidos por vias paralelas, “marcas de um tecido residencial português consolidado”. (CORREIA, 2008, p. 282)
A intervenção urbanística em Arzila. Fonte Jorge Correia
Em Azamor, “o dinâmico Simão Correia que, a partir de 1516, capitaneava a praça, propôs um plano de intervenção à escala urbana, disposto em várias frentes de acção, com particular ênfase para a organização interna do novo castelo atalhado” (CORREIA, 2008, p. 305). Aqui a Rua Direita tem um papel claramente estruturador de uma malha urbana com alguma ortogonalidade, consistindo de quarteirões de forma alongada definido por uma rede viária disposta num esquema de paralelas e perpendiculares. “A arruação denunciava um pioneiro higienismo moderno, inserido num pensamento manuelino mais atento ao espaço público”. (CORREIA, 2008, p. 305)
Em Arzila, fruto das destruições que os acontecimentos de 1508 originaram, foi levada a cabo uma operação urbanística de fundo, estruturando-se a partir do eixo definido pela Rua Direita, uma malha urbana ortogonal que permitiu a criação de uma estrutura extremamente racional, na qual as acessibilidades entre as várias funcionalidades se processava de forma directa e simples. À semelhança de Azamor, as ruas são calcetadas e o espaço público dispõe de equipamentos como o chafariz.
A intervenção urbanística em Mazagão. Fonte Jorge Correia
Mas é em Mazagão que o novo urbanismo do Renascimento se exprime em todo o seu esplendor, sendo considerada a primeira cidade planeada fora da Europa. Mazagão constitui um modelo de planeamento urbano e de construção da cidade, de transposição para o território de funções urbanas, instaladas segundo determinada escala e de acordo com princípios de racionalidade e sustentabilidade.
O antigo Castelo de S. Jorge de Mazagão, permanece como centro urbano, em redor do qual se concentram os principais equipamentos. No seu pátio é construída a Cisterna Manuelina, com 1.156 m2 e capacidade para cerca de 5.000 metros cúbicos de água, armazenada através de um pequeno aqueduto e de uma abertura central com 3 metros de diâmetro.
A Cisterna de Mazagão
“Reaproveitada do pátio aberto do forte de 1514, de solo rebaixado para poder conter a floresta de colunas e pilares de ordem toscana que sustentava a meia altura do terraço superior, único espaço usualmente acessível – pois o depósito de água, como era lógico, era fechado – com o seu bocal de poço, (hoje no interior) e rodeado pelo magnífico conjunto de escadarias e armazéns de víveres tão castilhianos que se diria transportados desde Tomar, nessa junção simbólica da água com o pão: a Cisterna era e é o edifício emblemático de Mazagão. Nela resume-se, o coração da vila, o que ela tem de melhor.” (MOREIRA, 2001, p. 58)
Muitos destes conceitos que os portugueses introduziram nas cidades ocupadas de Marrocos serão posteriormente transportados para as novas cidades coloniais e estarão na génese do próprio planeamento urbano moderno.
Mas todo o processo urbano é dinâmico e após o abandono das praças pelos portugueses a velha cidade Árabe viria reafirmar o seu carácter, procurando contrariar as ortogonalidades criadas, através da introdução de bloqueios nos arruamentos, voltando teimosamente a criar impasses, voltando a afirmar que afinal a cidade é uma árvore.
Texto retirado da obra Portugal em Marrocos, Olhar sobre um património comum, do autor deste artigo, referenciada na bibliografia.
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Acabo de conhecer seu Blog. Meus parabéns! É uma preciosidade.
Com os cumprimentos do Eduardo de Paula.
Muito obrigado. Os meus cumprimentos