A Casbah de Boulaouane junto ao Oued Oum er-Rbia ou Rio Morbeia
“O verdadeiro renegado era um pobre diabo que apenas ocupava empregos subalternos, que era enviado para todas as expedições perigosas e que, muito raramente, saboreava os prazeres sem luxo do repouso numa qualquer Casbah. Morrer num combate, tornar-se num desordeiro, arriscar a tortura para conseguir fugir, eram estas as suas hipóteses de futuro”. (TERRASSE, 1926, pp. 191-192)
Esta afirmação de Henri Terrasse espelha a realidade da generalidade dos renegados, que, enquanto indivíduos convertidos ao islão e integrados na sociedade marroquina, não usufruíam regra geral dos direitos dos cidadãos comuns, mantendo-se num estado de semi-captividade. Não é difícil compreender porquê, já que na sua grande maioria mudavam de campo por razões de sobrevivência, com extrema reserva mental, comparáveis aquelas que os Cristãos-Novos tiveram quando se converteram ao Cristianismo, ou seja, quando tinham que escolher entre ser cativos ou homens livres. Mas a regra geral tinha muitas variantes, como adiante se verá.
Em primeiro lugar importa definir objectivamente o que era um renegado ou elche, palavra derivada do árabe ilj ou estrangeiro. Não se tratava de alguém que simplesmente mudava de campo, colaborando com o inimigo, mas de alguém que negava a sua fé, neste caso a fé cristã, e se convertia ao islão. António Saldanha tem esta frase na Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos sobre a designação elche, na qual refere que esse é o nome pelo qual se tratavam entre si: “El-rei se meteu entre a soldadesca que estava distinta por suas nações: andaluses, turcos, xarquis e arrenegados (que entre si se chamam elches), afrontando-se muito de que os cristãos lhe chamem arrenegados”. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 63)
Importa também esclarecer a razão pela qual a fronteira entre o cativo e o renegado era muitas vezes de difícil definição, dando razão à afirmação de Henri Terrasse. Se bem que a diferença objectiva era a conversão ou não conversão, de facto, uma conversão forçada ou resultado de uma opção com fortes condicionamentos, ou seja, uma aparente alteração de valores realizada em indivíduos de personalidade formada e crenças enraizadas, não era de modo algum tranquilizadora para as autoridades de Marrocos, que os vigiavam e condicionavam os seus movimentos, já que frequentemente tentavam a fuga. A identificação dos elches também não era fácil, já que mudavam o seu nome, adoptando um nome árabe, vestiam-se como os locais e falavam o árabe. Normalmente eram identificados quando se dirigiam aos cativos ou aos missionários que realizavam resgates de cativos, nas suas línguas maternas, ou pelo facto de, normalmente, usarem após o prenome árabe, um nome de família indicativo da sua origem, como por exemplo Mami Corso (da Córsega) ou Hassan Ginoes (de Génova) ou ainda Abdelmalik Albortoqali (o Português). A partir da segunda geração, o único vestígio de elche estava apenas no seu nome de família, quando mantinha o derivado do nome da sua terra natal.
A Habs Qara, masmorra de Meknés, principal prisão para cativos Cristãos
A esmagadora maioria dos renegados eram assim cativos, que, de forma voluntária ou forçada, acabavam por se converter, transformando um futuro sem perspectivas numa vida em sociedade. A decisão de conversão ao islão tinha como causa principal a incapacidade de comprarem a sua liberdade, já que apenas os nobres eram resgatados pelas suas famílias pagando somas avultadas de dinheiro. Outros, uma minoria, eram fugitivos europeus condenados por crimes nos seus países de origem, que em Marrocos tinham a possibilidade de refazer as suas vidas, ou aventureiros em busca de fama e de enriquecimento fácil.
“Os renegados tinham em comum dois elementos chave: eram todos europeus de origem, e cristãos. A sua conversão ao Islão podia, contudo, ser voluntária ou não, mas em todos os casos acabavam por trabalhar para as autoridades marroquinas. O desenraizamento social destes novos convertidos criava aliás uma nova individualidade”. (NOLET, 2008, p. 19)
Os cativos eram convencidos à conversão ao Islão, conversão da qual tiravam inúmeros benefícios, já que deixavam de viver na prisão, passavam a ter um trabalho para o Makhzen, ou Estado Marroquino, como militares, se não tivessem outro ofício, mas geralmente segundo as suas antigas profissões, e podiam casar-se. Muitos eram convencidos pela tortura, mas a grande maioria fazia a conversão de livre vontade, que era festejada efusivamente pelo sultão, com desfiles nas ruas das cidades. “Eram tratados com grande pompa, desfilando na cidade a cavalo de uma forma triunfal, ao som de tambores e trompetas”. (MILTON, 2006, p. 91)
Germain Mouette, após ter sido vendido foi-lhe proposto várias vezes pela mulher do homem que o comprou no mercado de escravos de Salé que se tornasse renegado: “A minha patroa que era uma jovem e muito bela pessoa e que falava muito bem espanhol (…) defendeu-me dos golpes e das agressões do seu marido e pediu-me várias vezes de me tornar renegado, para me dar sinais mais amplos da sua afecção, casando-me com uma sobrinha que ela tinha, muito bela e muito rica”. Tendo negado, Mouette continuou a dormir nas masmorras com os seus companheiros de cativeiro. (MOUETTE, 1683, pp. 27-28)
“Te digo agora, christão,
Qu’és muito engraçado
Se quizeras ser um turco
Ou um mouro arrenegado
Dera-te a mais linda cara
Que em Argel se há criado.
Não me quero fazer turco
E nem mouro arrenegado,
Que tenho em meu branco peito
O senhor cruxificado;
Se essa offensa lh’eu fizesse
Logo era castigado.”
(OLIVEIRA, 1905, O Cativo, p. 81)
Thomas Pellow também foi aliciado à conversão, prometendo-lhe riquezas e amizades, e sendo ameaçado se não o fizesse: “Prepara-te para seres torturado, já que a tua natureza obstinada o merece”. Foi espancado e queimado, até que cedeu. Foi então levado para aprender a falar e escrever o Árabe, vestiu-se à maneira moura, e recebeu treino militar, passando a integrar a guarda do sultão, fazendo serviço na porta do palácio da preferida, onde a rainha Halima Al-Aziza estava com 38 concubinas e vários eunucos. Pellow tinha também a missão de acompanhar o seu filho, chamado Mulai Zidane (PELLOW, 1890, pp. 54-57). O sultão deu a Pellow uma mulher com quem se casou e receberam ambos 15 ducados ou 25 libras em dinheiro, tendo comprado para a cerimónia “um boi, quatro carneiros, duas dúzias de galinhas, doze dúzias de pombos, 150 libras de farinha, e 50 libras de manteiga, mais uma quantidade suficiente de mel, especiarias, etc,”. O casamento durou três dias e Pellow escreveu que foi um dos mais sóbrios que viu, o que revela o luxo que era concedido aos renegados com posição na Corte. (PELLOW, 1890, pp. 77)
Planta de Essaouira do renegado Theodore_Cornut, 1767. In Castello Real a Amagdoul de Omar Lakhdar
Dois factores marcavam decisivamente a forma como os renegados eram reconhecidos como cidadãos de pleno direito. Um deles era a especialização do seu trabalho e consequente utilidade para o Estado Marroquino. Outro era a forma voluntária como chegavam a Marrocos e se dispunham a colaborar com o poder do sultão. Mas a condição de renegados não significava serem livres, já que continuavam prisioneiros da tutela do Sultão. O seu número não era conhecido com exactidão, dado não figurarem nas listagens dos prisioneiros, e os governos europeus abandonavam-nos à sua sorte por terem renunciado à sua fé cristã, apesar de muitos o fazerem apenas para sobreviver. Existem, no entanto, estimativas que apontam para que fossem entre 14 e 28% do total de cativos, ou seja, num universo de entre 1 milhão e 1,25 milhões de cativos nos séculos XVI a XVIII terão existido entre 200.000 e 300.000 renegados (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 412). Destes, cerca de 6% seriam portugueses, estimados entre 12.000 e 18.000.
“Em 1.550 renegados identificados (os autores referem-se a renegados presentes nos tribunais da inquisição de Portugal, Espanha e Veneza) contamos 954 Ibéricos e Italianos, ou seja 61,5% da amostra: 459 espanhóis, 93 portugueses e 402 Italianos (…) Os renegados portugueses foram os mais numerosos. O pequeno Portugal, sete vezes menos povoado do que as Espanhas, dez a doze vezes menos do que as Itálias, oferece-nos uma amostra de 93 homens (sem uma única mulher, ausência suspeita).” (BENNASSAR, [1989] 2006, pp. 177-178)
Os primeiros renegados em Marrocos foram sobretudo portugueses e também espanhóis, por diversas razões: a proximidade geográfica e frequentes razias de corsários mouros nas costas da Península Ibérica, onde eram feitos inúmeros cativos, a guerra do corso, enquanto fonte de aprisionamento de muitos marinheiros, mercadores e viajantes, as deserções de portugueses das Praças de Marrocos devido à fome e à clausura, o aprisionamento de soldados portugueses nas almogavérias ou nos trabalhos em redor das Praças e, é claro, a Batalha de Alcácer Quibir, pela quantidade invulgar de cativos a que deu origem.
A Porta da Almedina de Safim
D. Rodrigo de Castro, Governador de Safim, numa carta a D. João III, fala do perigo de que a fome nas Praças portuguesas constituía em termos de deserções nas suas tropas:
“Muitas vezes escrevi a Vossa Alteza a grande necessidade que tínhamos de mantimentos, e como não havia nenhum na cidade, e que como todo o pó do biscoito do celeiro era comido e assim por nossos pecados não houvera nenhum trigo nem cevada (…) Faço tudo saber a Vossa Alteza e porque, se nos não vier mantimento de hoje em vinte dias, a maior parte da gente não poderá deixar morrer à fome, ou desamparar a cidade, porque se irão para Azamor, e outros para terra de Mouros, o que já começam a fazer.” (RICARD, 1948, p. 249)
Um renegado da praça de Arzila foi mestre João, artilheiro, tido como muito bom homem por Bernardo Rodrigues, que se tornou mouro e foi viver para Fez com a sua mulher, onde fabricava artilharia grossa, “que no cerco de 1516 nos fez grande dano e nojo” (LOPES, 1925, p. 335). Bernardo Rodrigues acrescenta que este homem voltou a Arzila com a sua mulher por duas vezes, acabando por morrer na cidade: “Veio a este reino com sua mulher e se tornou a ir levando sua mulher outra vez a Fez, e depois se tornou a vir, e veio a morrer nesta cidade, velho e cansado, e se mandou enterrar em São Vicente de Fora; e sua mulher, Catarina Fernandes, está hoje viva nesta cidade em casa de Luís Felipe, feitor da alfandega desta cidade, que também foi cativo em seu tempo d’el-rei de Fez, e por esta antiga amizade a recolheu em sua casa, onde está assaz honrada e acatada dele e de sua mulher”. (RODRIGUES, [156-] 1915, p. 159)
Outro renegado de Arzila foi Diogo Fernandes, natural de Britiande, e guarda da masmorra da praça. O homem foi seduzido para se tornar mouro por Omar Querqui, mouro cativo e cozinheiro do conde, e uma noite libertou 11 cativos da masmorra e fugiram todos para Alcácer Quibir e dali para Fez. (RODRIGUES, [156-] 1919, pp. 205-208)
David Lopes refere que “muitos outros cristãos, artilheiros e oficiais de todo o género de armas, assim, espingardas, bestas, ferros de lanças, lançam-se entre os mouros ou sendo cativos oferecem-se para exercer os seus ofícios e tanto dano causam à cristandade”. (LOPES, 1925, p. 335)
A Muralha de Arzila
Nos Anais de Arzila contam-se também muitas histórias de mouros convertidos ao Cristianismo, fosse por serem cativos, fosse por livre vontade, como em 1518, “se tornou cristão um mouro de Artur Rodrigues, alferes da bandeira, o qual se chamou como seu senhor Artur Rodrigues (…) ele se tornou cristão, ou por o ter na vontade, ou por ver quanto honrados os outros mouriscos eram”. (RODRIGUES, [156-] 1915, pp. 241-242)
Em 1521 “vieram dois mouros de cavalo tornar cristãos, os quais eram guardas da Ponte. O conde os recebeu muito bem e, porque um deles era amigo ou parente de Artur Rodrigues, se pôs nome Álvaro Rodrigues, o qual, por ter os dentes muito grandes, lhe chamavam o Dentudo; o outro se pôs nome João Coutinho”. (RODRIGUES, [156-] 1915, p. 337)
Em 1525 outro mouro, cuja mulher e filho se encontravam cativos em Arzila, entregou-se e tornou-se cristão. “O muito afamado e estimado Diogo da Silveira, alumiado pela graça do Espírito Santo, veio buscar e demandar a fé de nosso senhor Jesus Cristo”. Diogo da Silveira tinha sido cativo em 1517, mas foi resgatado por ser homem rico, que possuía mais de 2.500 colmeias na Serra de Benagorfate. “E Diogo da Silveira homem de grande corpo e de muito boa e gentil disposição, muito alvo e de poucas carnes, muito bem acostumado e o melhor regrado, assim em sua casa, como fora dela, e homem que falava muito bem e de grandes exemplos, ditos tanto ao propósito que toda pessoa folgava de o ouvir”. Após a sua conversão foi autor de inúmeras façanhas pelo lado português. (RODRIGUES, [156-] 1919, pp. 5-9)
Em 1532 “se veio tornar cristão um mouro, a quem se pôs nome Manuel Coutinho, mancebo bem disposto, aparelhado para todo o bem, e assim saiu por seu merecimento e valentia, que em pouco tempo mereceu lançarem-lhe o hábito e se fez um assinado homem, como em muitas partes desta historia se verá, deixando-me Deus chegar a seu tempo”. O homem passou a integrar o corpo de almogávares de Arzila e acabou por se casar com a viúva de um seu companheiro chamado Artur Rodrigues. (RODRIGUES, [156-] 1919, pp. 221-223)
A Couraça e o Baluarte da Couraça de Arzila
A crueldade com que eram tratados os renegados pelas autoridades de um lado e de outro era enorme, dando um sinal claro que a traição não era tolerada. Assim foi com os processos da inquisição que levaram à fogueira vários cativos de Alcácer Quibir que se converteram e posteriormente fugiram, assim também foi com vários almocadéns mouriscos capturados pelos mouros, caso dos irmãos João Vaz e Gonçalo Vaz de Arzila.
A história de Gonçalo Vaz é especialmente triste, sobretudo pela extrema violência que encerra. Gonçalo era um alfaqueque mouro que comerciava com as autoridades de Arzila. Um dia, no ano de 1510, levou para a cidade uma sua mulher, muito formosa, e ambos se converteram. Ele tomou o nome de Gonçalo Vaz, ela de Maria Dias. Gonçalo Vaz era muito forte e tido como homem ousado e valente, e passou a integrar o corpo de almogávares de Arzila. Conhecedor dos terrenos de Benagorfgate e arredores, de onde era natural, alcançou feitos notáveis e inclusive trouxe para o lado dos portugueses outros mouros, entre os quais um seu irmão, que tomou o nome de João Vaz. No mês de abril desse ano um mouro de nova combinou com o alcaide de Alcácer de lhe entregar os dois almocadéns mouriscos, Pero de Menezes e Gonçalo Vaz. Foi ganhando a confiança dos de Arzila, até que uma noite conseguiu um estratagema em que os almogáveres saíram da cidade, 25 de cavalo entre os quais o alcaide-mor Estêvão Coelho e Gonçalo Vaz, para supostamente defenderem uma atalaia de um ataque de mouros. Quando chegaram ao local, o mouro de sinal deu três assobios e a emboscada estava consumada. Os almogávares fugiram, mas Gonçalo Vaz correu na direcção do mar e caiu nas rochas, partindo uma perna. Passou uma noite numa furna, onde foi salvo no dia seguinte. Para se tratar, foi a Tânger na armada de Diogo Lopes Sequeira, onde esteve todo o Verão, mas ficou coxo para sempre e acabou por regressar a Arzila. Durante a viagem de regresso, a caravela em que seguia foi atacada por duas fustas de Tetuão e Gonçalo Vaz aprisionado. Em Tetuão sofreu uma morte terrível, que Bernardo Rodrigues descreve assim:
“Gonçalo Vaz que em poder d’Almenderim, alcaide e senhor de Tetuão, estava, que o mais cruel inimigo de cristãos de nosso tempo era, logo mandou ordenar uma grade, onde o puseram no meio da praça ou soco, atado e aspado, sem se poder bulir com as mãos, nem pés, e sendo juntos mais de vinte mil almas, entre os quais era sua mãe e irmãos e parentes, rogando-lhe quisesse negar a fé de nosso senhor Jesus Cristo, mas ele, com muito fervor de morrer por ela, não tão somente dizia que não, antes os desonrava e dizia muitas injurias e blasfémias contra eles e contra a regra de Mafamede, dizendo que por Jesus Cristo e por Santa Maria morria, e que não sentia, nem havia de sentir martírio, nem tormento de coisa que lhe fizessem; e logo os ministros do demónio começaram a obrar para que estavam juntos, não havendo um só algoz, como entre nós, antes sendo todos juntos algozes, começando cada um a tratar das carnes do paciente; e porque os brados que ele dava todos eram chamando por Santa Maria e por seu Glorioso Filho, e dizia muitas blasfémias contra sua religião e Mafamede, o que eles não podendo sofrer intentaram em lhe arrincar e despedaçar a língua, porque não pudesse falar, e asi o fizeram, trabalhando por lha arrancarem; tratando-lhe dos beiços e dentes, com tenazes e mordaças lhos fizeram todos em pedaços, e depois de não poder falar, chegando-se mais a ele, lhe tiraram as unhas dos dedos dos pés e das mãos, e atrás delas os dedos e os pedaços da carne, guardando-lhe todavia os olhos, por mandado do alcaide Almenderim, para que vise os tormentos que lhe davam; e neste trabalho e tormento o tiveram dois dias e duas noites, sem nunca deixarem de o atormentar, até que não tendo sangue em todo o corpo acabou de espirar e dar a alma a nosso senhor Jesus Cristo, por cuja fé ele padeceu e sofreu tudo o que se há contado”. (RODRIGUES, [156-] 1915, pp. 52-61, 169-174 e 220-226)
Representação da batalha de Alcácer-Quibir publicada por Miguel Leitão de Andrade na obra “Miscelânea” em 1629
Marc-André Nolet refere que o período de grande influência dos renegados em Marrocos se situa entre os anos de 1578 e de 1727, subdividindo-o em três partes: ascensão, apogeu e declínio.
A ascensão começa precisamente com a Batalha de Alcácer Quibir, quando cerca de 16.000 portugueses são feitos prisioneiros e muitos deles vêm a ocupar importantes lugares no aparelho de estado, fosse como generais, fosse como conselheiros do Sultão Ahmed El-Mansur. O apogeu inicia-se em 1603 com a morte de Ahmed El-Mansur e período subsequente de jogos internos pelo poder, em que os elches têm um papel decisivo nas lideranças das várias facções em disputa. O declínio é determinado pela tomada do poder pela Dinastia Alauíta em 1664, que considera que os renegados tinham demasiada influência em Marrocos. Com a morte de Mulai Ismail em 1727, os elches perdem toda a sua influência, passando a ser utilizados como simples carne para canhão. (NOLET, 2008, p. 22)
No entanto, a existência de renegados em Marrocos vinha em crescendo desde o advento da expulsão dos mouriscos e judeus, e Alcácer Quibir é já um marco em que o próprio exército marroquino inclui milhares de renegados, muitos deles com funções no topo da hierarquia. Segundo Luís Costa e Sousa, o número de elches no exército marroquino seria de cerca de 2.500 (SOUSA, 2009, p. 70). Os Cherifes Sádidas já utilizavam os renegados em grande escala antes de Alcácer Quibir e inclusivamente na batalha, a tropa de elite do Sultão era constituída por elches. Diego de Torrés refere que o sultão tinha uma guarda pessoal composta por 2.000 renegados e turcos a cavalo e munidos de arcabuzes. (TORRES, 1636, p. 319)
A Skala da Casbah de Essaouira projectada por Théodore Cornut
D. Pedro de Meneses, Capitão de Ceuta, informa D. João III numa carta datada de 1550 da existência de renegados e de turcos trabalhando nas fundições de Fez: “Artilharia funde muita em Fez, porque tem muito metal e grandes artífices dela, e por pecados nossos os mais cristãos arrenegados e alguns turcos” (RICARD, 1951, p. 401). O sector do armamento, sobretudo da artilharia, foi desde sempre um dos principais campos em que os renegados colaboraram com as autoridades de Marrocos.
O aproveitamento dos conhecimentos europeus em termos de armamento era mesmo aplicado às armas neurobalísticas, como se percebe neste trecho de uma carta enviada por António Leitão de Gamboa, Capitão de Santa Cruz do Cabo Guer, a D. João III: “Prouve a Nosso Senhor que um Cristão português, de nome Alexandre Gonçalves que no tempo de Simão Gonçalves se foi tornar mouro, besteiro e homem manhoso que lá fazia bestas, ao qual eu tinha mandado seguro rogando-lhe que se viesse, e estando na cilada com eles duas horas ante manhã, considerando o risco que esta vila e eu corria de tão manhoso ardil, deliberou fugir e fazer este serviço a Deus e Vossa Alteza, que certo foi grande, como adiante direi (…) Como pela manhã acharam o dito Alexandre menos, por trazer todas as nozes (a noz era uma peça de marfim ou de corno que servia para segurar a corda de uma besta) das bestas dos seus besteiros, porquanto era quadrilheiro deles, houveram-se por sentidos e desarmaram-se do seu propósito”. (CÉNIVAL, 1939, pp. 337-338)
Muitos portugueses ingressavam no corso berberisco. Um renegado português que ficou célebre na guerra do corso foi Chaban Rais, que comandava um navio chamado O Caranguejo, de 16 canhões e 175 homens. A sua história termina numa viagem de três meses pelo Norte da Europa onde, após saquear dois barcos no Golfo da Gasconha, foi aprisionado pelo corsário holandês Cornelis Verbek. (COINDREAU, 2006, pp. 89-90)
Outro foi João Vaz. Conta Bernardo Rodrigues que um pescador de Tavira de nome João Vaz Maio, tendo vivido em Huelva e no Porto de Santa Maria, onde perdeu o seu dinheiro, foi para Arzila com a sua mulher e filhos. Tinha um barco de cinco remos, que levou consigo, que se juntou aos outros quatro ou cinco que constituíam a frota de pesca da cidade. João Vaz era tido como “muito fraco e cobarde no serviço d’el-rei”, recusando-se normalmente a fazer serviços de barco para o capitão, como seriam ir a Tagadarte para transportar gente entre Arzila e Tânger, os quais eram serviços arriscados devido à presença sempre possível de encontros com corsários. Certo dia fugiu para Larache com o seu filho de 13 anos e ambos se fizeram mouros. João Vaz tornou-se arrais de um barco corsário “e fez-se um leão contra a sua natureza, cometendo coisas contra toda a razão, indo a Castela e ao Algarve, seu natural, com seu barquinho, onde tomou muitos cristãos, e depois em fusta, com as quais idas e entradas fez muitas presas e danos na costa do Algarve”. (RODRIGUES, [156-] 1919, pp. 154-155)
David Lopes conta que João Vaz se juntou em Larache a seis outros navios de remos e três fustas de dezasseis bancos, vindos de Argel, Tetuão e Beles, e com eles “João Vaz fez coisas espantosas”. Uma vez foi a Faro onde desembarcou 100 homens e fez entre 50 e 60 cativos, outra vez foi à foz do Guadalquivir, onde desembarcou 50 homens e fez 20 cativos. Outra vez entrou no recife de Arzila e atacou uma caravela, raptando três homens e roubando tâmaras e courama. Em 1531 foi morto “às lançadas dos nossos” diante do Rio de Larache. (LOPES, 1925, pp. 336-337)
Gibraltar
Simão Gonçalves, português mulato, era filho de pai branco e mãe negra. Nasceu em Ceuta, onde o seu pai, de nome Jacob Galego, vivia, e foi criado em Lagos pela sua mãe, Inês Gonçalves. Usava o apelido da sua mãe por ser bastardo. “Ele era realmente um filho autêntico desse Estreito que deveria atravessar tão frequentemente ao longo da sua vida, dessas paragens perigosas onde a fronteira hesita, fronteira geográfica, militar e religiosa entre o Islão e a Cristandade”. Aos 14 anos começa a trabalhar no barco de um comerciante de Lagos chamado João Annes. Casou-se aos 15 anos em Lagos, pela Igreja, com uma mulata chamada Domingas Soares, de quem tem um filho, Jácome. Numa viagem a Itália são aprisionados entre Nápoles e Palermo e Simão passa 7 ou 8 anos como remador nas galeras turcas. Sobreviveu devido à sua robusta constituição física. Várias vezes teve a possibilidade de ser resgatado, mas tal nunca aconteceu, porque ninguém pagava o elevado valor do resgate que pediam por ele. Quando percebe que nunca será resgatado faz-se turco, é circuncisado e vai para o Penhão Beles (actual Velez de la Gomera), na costa mediterrânica de Marrocos, onde se torna corsário. Em Marrocos “conheceu carnalmente muitas mulheres mouras (…) porque em terra de Mouros (…) eles vivem mais em concubinagem que em casamento”. Em Beles conheceu outro renegado português, chamado Baltasar Fernandes, antigo capitão da nau S. Pedro, “que estava acompanhado por dois rapazes mouros com os quais se deitava e eles se acariciavam como os Mouros costumam quando se entregam às suas obscenidades”. Fez diversos raids na costa do Algarve, em Lagos, Albufeira, Faro, Tavira e também em Málaga. O seu amigo Baltasar fugiu para Ceuta, mas Simão, apesar de ter tido oportunidade de fazer o mesmo, nunca tentou a fuga.
Numa incursão a Albufeira no ano de 1555 é feito prisioneiro pela Esquadra do Estreito e levado para Lisboa onde é entregue ao tribunal da inquisição. No tribunal “este mulato de estatura elevada, corpo possante, barba rala, cheio de cicatrizes, afligido por uma claudicação pronunciada, contava em silêncio os remos das galeras e o chicote, o arcabuz e a faca, toda a violência dos homens sobre os espaços líquidos do mar interior”. Surpreendeu-o o seu amigo Baltasar, presente no tribunal como testemunha. Foi condenado a prisão perpétua. Um ano depois a pena é-lhe reduzida para prisão domiciliária e o uso do sanbenito, hábito penitenciário dos condenados pela inquisição. Dois anos depois e pena é comutada. “Muçulmano por desespero (…) por capricho feliz do destino, as qualidades distinguidas pelo rei de Portugal e seus conselheiros, que lhe iriam dar a sua oportunidade menos de 4 anos após a sua condenação, foram as mesmas que tinham valido para a sua promoção no Islão. Como se tivesse triunfado uma certa forma de justiça”. (BENNASSAR, [1989] 2006, pp. 43-62)
A Skala de Salé
As referências que Simão Gonçalves fez no tribunal da inquisição sobre a sexualidade no seio dos renegados são relevantes, como esta declaração de um deles ilustra, ao dizer que “o demónio que assombrava as suas noites e o dirigia em direcção ao Islão tomava rostos de mulher e falava-lhe de liberdade” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 494). Um denominador comum à generalidade das conversões de cativos era a sua relação com o amor, já que constituía um factor de estabilidade emocional, criação de laços familiares e de integração social. Num contexto europeu extremamente castrador e culpabilizador do prazer, no qual a fornicação era considerada um pecado mortal, a liberalidade do Islão em relação ao prazer sexual e à facilidade com que eram possíveis casamentos, inclusive com várias mulheres, e relações de concubinagem com escravas, para além do caracter temporário com o qual a sociedade muçulmana aceitava essas relações, era extremamente atractiva para homens em situação de risco e carência.
A conversão e casamento eram inclusivamente uma solução para situações de relações proibidas, como fossem as que cativos tinham com mulheres muçulmanas, para além de evitar a homossexualidade que se generalizava em muitos dos presídios de Marrocos. No entanto, e mesmo sendo consideradas como proibidas e reprimidas, as relações de sodomia com jovens rapazes aprisionados eram frequentes. Estes jovens eram chamados bardaxes, designação que terá origem no persa bardag e que significa jovem escravo passivo sexual (MOTT, 2015, p. 19). As descrições de casos de sodomia com estes bardaxos são inúmeras e eram vulgares sobretudo entre os elches, incluindo os próprios alcaides, como o alcaide Morato ou o alcaide Roduão. (MOTT, 2015, pp. 18-27)
Mateus Velho foi capturado no Estreito de Gibraltar pelos turcos com 13 anos de idade. Foi para Argel durante dois anos e depois para Istambul, onde após três anos se fez turco. Foi circuncisado, vestia-se à turca e tomou o nome de Osaím. Tornou-se corsário, regressando a Argel e daí foi para Fez e depois Marraquexe, onde ingressou no exército Sádida. Participou, do lado marroquino, na Batalha de Alcácer Quibir. No ano seguinte fugiu para Mazagão e depois voltou para Portugal, onde se casou com uma mulher chamada Branca Arminda. Roído pelo remorso, entregou-se à inquisição oito anos depois, sem que houvesse uma razão que o obrigasse a tal. (BENNASSAR, [1989] 2006, pp. 188-189)
João Lourenço, residente no Cabo de S. Vicente, foi capturado em 1576 e levado para a terra dos mouros onde acabou por se converter ao Islão, tendo inclusivamente sido circuncisado. Após a sua fuga foi julgado pelo Tribunal do Santo Ofício em Lisboa. Nos vários interrogatórios a que foi sujeito declarou ter consentido fazer-se mouro porque os seus familiares não o quiseram resgatar nem teve oportunidade para fugir. Apesar da conversão, declarou que “não foi a mesquitas, nem participou em cerimónias, pois não tinha sido obrigado a isso, nem tal lhe pareceu bem e nem ele ser mouro no seu coração”. O acórdão dos inquisidores foi no sentido de confirmar a sua sinceridade enquanto crente na fé católica e foi condenado “com penas espirituais”. (JESUS, 2017, pp. 279-280)
A Porte de la Marine construída pelo renegado Inglês Ahmed El-Inglizi em Essaouira
No período inicial, entre 1578 e 1603, que Nolet chama de ascensão, correspondente ao reinado de Ahmed El-Mansur Ed-Dahabi, O Dourado, cognome de resulta da sua condição de vencedor da Batalha de Alcácer Quibir, os elches aumentam exponencialmente em número, mas a sua influência política não é ainda marcante, salvo raras excepções, como por exemplo os casos de Reduan e Jaoudar Pacha: “No período de 1578 a 1603, da vitória na Batalha dos Três Reis (Alcácer Quibir) à morte de Ahmed al-Mansur, indica uma subida em força dos renegados. Ora este período, qualificado de ascensão dos renegados, caracterizou-se acima de tudo por um grande número de renegados. Ultrapassando os 20.000 indivíduos, eles constituíam uma nova casta de elite muito importante para a modernização do país”. (NOLET, 2008, p. 71)
É o período do seu aproveitamento para a modernização de Marrocos com fins militares, de construção de infraestruturas e fortificações, de desenvolvimentos das técnicas de navegação e de construção naval. No domínio da construção, o seu papel foi de grande importância. Desde logo nas infraestruturas militares, com a construção de fortificações, como a das muralhas de Rabat atribuídas ao renegado inglês Ahmed El-Inglizi, e as de Salé, a construção de vários fortes, de pontes e estradas, muitos das quais da responsabilidade de portugueses.
Alcácer Quibir é um marco no aproveitamento dos renegados, que Ahmed El-Mansur soube explorar de forma brilhante. Do contingente português capturado, apenas os cavaleiros, a sua minoria, tinham possibilidade de serem resgatados. Os restantes elementos, soldados de infantaria, escudeiros, bagageiros, cozinheiros, carpinteiros, ferreiros, etc, etc, não tinham qualquer hipótese de resgate. A sua conversão ao islão, para além de ser religiosamente um acto de piedade, era uma forma de reestruturar os exércitos Sádidas, substituindo os janízeros turcos pelos soldados portugueses, afastando o perigo que os Otomanos representavam para a independência de Marrocos. “Uma vez convertidos, estes homens não tinham qualquer esperança de retorno, já que o Papa e a Inquisição condenavam os apóstatas e julgavam-nos no seu regresso ao país, se os conseguissem capturar”. (NOLET, 2008, p. 54)
O local da Batalha de Alcácer Quibir
Nolet atribui uma importância capital aos renegados portugueses convertidos após a Batalha de Alcácer Quibir, afirmando que foram utilizados pelo Sultão Ahmed El-Mansur na construção do Estado marroquino moderno e na própria garantia da independência de Marrocos face aos turcos e espanhóis: “Ele utilizou renegados como funcionários, militares, governadores, enfim, como homens para todo o serviço no Estado. Os fundos de que dispôs graças à Batalha dos Três Reis, combinados ao grande número de cativos que resultaram dessa batalha e aos aprisionamentos feitos no mar pelos corsários, deram-lhe uma base sólida para atingir os seus fins. O Estado teve aliás algum sucesso e Marrocos resistiu, do século XV ao século XIX, tanto ao imenso Império Espanhol, como ao imenso Império Otomano. Nenhum dos dois titãs conseguiu pôr a mão no país que estava, contudo, situado entre os dois rivais”. (NOLET, 2008, p. 109)
António Borges Coelho, na sua obra Inquisição de Évora 1533-1668 relata vários casos de soldados aprisionados em Alcácer Quibir que foram julgados pela inquisição de Évora. “Nos autos de 1624 e 1625 saíram a queimar dois soldados de Alcácer Quibir, respectivamente Pero Gonçalves Tovar (o Pão Mole) e Luís Álvares Matias” (COELHO, [1987] 2018, p. 245). Outro foi caso de um sapateiro de Faro chamado Brás Fernandes que foi para a batalha com 26 anos. Esteve três anos na prisão em Fez, de onde tentou duas fugas frustradas. Foi levado para Argel, onde foi vendido a um renegado espanhol chamado Mustafá que o torturou para o converter, o que acabou por acontecer. Na cerimónia da conversão percorreu as ruas de Argel montado num cavalo, com uma flecha na mão, após o que foi circuncisado. Um ano depois conseguiu fugir com outro espanhol chamado António Ruiz. Chegados a Múrcia, foram presentes à Inquisição Espanhola, que enviou Brás Fernandes à Inquisição de Évora. Borges Coelho refere que “Brás Fernandes não é o único sobrevivente renegado de Alcácer Quibir. Acompanharam-no, por exemplo, Domingos Fernandes, 25 anos, de Mértola, e centenas se não milhares de outros”. (COELHO, [1987] 2018, p. 262)
O antecessor de Ahmed El-Mansur, Mulai Abdelmalek (o Maluco das crónicas portuguesas) tinha como braço direito um português de nome Reduan ou Reduão, que, conforme referido anteriormente, tomou o seu lugar durante a Batalha de Alcácer Quibir, no seguimento da sua morte por envenenamento. Queiroz Velloso refere-se a Reduan da seguinte forma, quando Abdelmalek se ausenta de Marraquexe para dar luta ao seu sobrinho Mohamed El Mutawakil e confia a Reduan o poder: “Abdelmalek saiu de Marraquexe, deixando por governador o alcaide Reduão, um renegado português, inteligente e corajoso, que trouxera de Argel, e a quem dera o alto cargo palaciano de camarista, como homem de sua plena confiança” (VELLOSO, 1935, pp. 327-328). Esta passagem revela bem a importância de Reduan na própria governação de Marrocos, ao ficar em Marraquexe no lugar do Sultão durante a sua ausência.
Outro episódio que mostra o poder de Reduan é relatado por Sebastian de Mesa quando Ahmed El-Mansur é aclamado Sultão, sucedendo ao seu irmão morto. El Mansur teria hesitado em assumir o cargo, mostrando-se alheado dos acontecimentos, sendo chamado à razão de forma drástica pelo renegado português: “Estava Mulay Hamet bem alheio de ser senhor de Africa, pelo pouco que foi tido e estimado em vida do irmão; testemunha Reduan Elche, Renegado Português, que lhe deu uma bofetada, de que nunca se fez caso, nem dela se fez repreensão”. (MESA, 1630, p. 88)
A Casbah de Boulaouane, umas das muitas onde os renegados cumpriam funções militares
As referências aos vários alcaides renegados que constituíam a corte de Ahmed El-Mansur são contraditórias nos vários textos consultados, podendo inclusivamente ter existido alcaides com o mesmo nome, sendo pessoas diferentes. É inclusivamente o caso de Reduan, numa passagem do texto de Mesa sobre a ocultação do cadáver de Mulai Abdelmalek na Batalha de Alcácer Quibir: “O Maluco, que estava a cavalo, vendo a sua vanguarda desbaratada, e os Árabes a fugir, suspeitou que tinha havido traição, que era o que mais se temia; e como o veneno tivera efeito, arrebatou-lhe uma dor tão veemente, que caiu morto com o dedo posto na boca. Mostrou valor neste ponto, pois advertiu com sinal tão mudo, que menosprezava a vida, e não temia a morte, para que a sua honra permanecesse. Mostafá Pique, Alcaide da sua guarda, cobriu-lhe o rosto, e entrou na liteira onde podia andar, fingindo ter-lhe dado um desmaio: e esta antecipada diligência, quis dizer que a deixou mandada. Ficou à guarda do corpo um Elche chamado Manzorrico, o qual recebia as ordens dos que vinham, e a elas respondia; dando a entender serem do Maluco: e se alguém vinha perguntar alguma coisa, metia a cabeça dentro da liteira, e logo dizia, o Xerife manda, que se faça tal, e tal coisa: isto era com tanta destreza, que os da sua guarda entendiam ser assim”. (MESA, 1630, p. 73)
Para além de Reduan, o exército marroquino incluía outros renegados portugueses ocupando altos cargos, caso do Alcaide Tabibe, que serviu de intérprete do Xerife nos interrogatórios aos nobres portugueses cativos na batalha (VELLOSO, 1935, p. 398). Em relação a Almanzorico, Henry de Castries diz que o seu nome provavelmente seria a forma como os cristãos lhe chamavam e corresponderia a uma colagem de duas palavras, Almansor + rico. “Almanzorico era o mais poderoso dos Qaids, chegando a ser nomeado Vice-rei do Sudão”. Era também chamado Qaid Monsor Abderahman ou Monsor Rico, como refere Castries. (CASTRIES, 1925, p. 84)
Após Alcácer Quibir, Ahmed El-Mansur começou a dar aos alcaides renegados lugares de maior confiança, promovendo “o alcaide Ruduão, castelhano, e o alcaide Mansorico, o alcaide Jaudar, natural de Tanger, o alcaide Solimão, seu estribeiro-mor, e o alcaide Mamut Zarcon”. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 25)
Na sua chegada a Fez, o Xerife decide aceitar resgatar 80 fidalgos portugueses e “buscar todos os moços que se acharam da batalha d’el-rei D. Sebastião de quinze anos para baixo, e os mandou circuncisar e vestir à mourisca e ordenando-lhe muitas vantagens deixou em Fez trezentos moços e levou consigo a demasia para Marrocos (Marraquexe) para servirem das portas adentro e confiar deles sua pessoa. E fez alcaide destes moços Jaudar, e de sua casa o alcaide Brahen Sufiane com o título de alcaide dos alcaides, homem que foi benemérito de todos os lugares por sua boa natureza e foi grande amigo dos fidalgos e geralmente de todos os cristãos” (SALDANHA, [160-] 1997, p. 27). As crianças e os adolescentes eram cativos de que os mouros não abriam mão, já que podiam ser educados e moldados facilmente. Eram convertidos em cerimónias colectivas e tornavam-se normalmente militares fiéis e dedicados. O princípio era o mesmo que os turcos usavam para formar as unidades de janízaros. (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 339)
A Koutoubya de Marraquexe
Deixando em Fez o seu filho herdeiro Mulai Xeque Al-Mamoun, partiu para Marraquexe onde foram resgatados por uma embaixada portuguesa os 80 nobres já cortados. “E a seu filho mais velho, Mulei Xeque, fez jurar por seu herdeiro, e lhe deixou dois mil renegados, quatro mil azuagos e quatro mil xarquis e mil spahis, que é gente de cavalo, estes mui bem pagos e contentes” (SALDANHA, [160-] 1997, p. 31). “E deixando o alcaide Amet em Alcacere e o alcaide Acem Batuera em Tetuam se partiu para Marrocos onde entrou já no ano de setenta e nove. E foi recebido com grandes festas levando consigo dois mil e quinhentos cristãos cativos, e os moços para o serviço de sua casa, e quatro mil andaluses, dois mil turcos, quatro mil azuagos e outros tantos xarquis, e dois mil espahis com suas espingardas, tudo gente paga e muito exercitada nas armas de sua profissão que são escopetas grandes como mosquetes e que tiram onça e meia de bala, e dois mil renegados, muito boa gente, e, por serem de mais confiança, os ia antepondo a toda a mais soldadesca e não ficava a guarda da sua casa senão deles” (SALDANHA, [160-] 1997, p. 33). O sultão sentia-se inclusivamente mais tranquilo com a sua guarda de renegados, já que eram indivíduos desenraizados, totalmente fiéis, para quem a vida era o exército.
Ahmed El-Mansur organizou o seu exército de forma a satisfazer as necessidades e gostos das várias comunidades que o compunham, com particular cuidado para a sua elite, os renegados. Sendo a alimentação um dos aspectos fundamentais, tinha como responsável pela cozinha e transporte de víveres um português cativo de Alcácer Quibir, de nome Bakhtiar. Os soldados estrangeiros do exército estavam divididos em seis corpos, dos quais era o “4º os chancharya, especialmente encarregados da alimentação e do transporte de víveres; o seu chefe Bakhtiar era dos prisioneiros feitos na Batalha de Oued El Makhazin” (ELOUFRANI, 1889, pp. 196-197). Converteram-se assim milhares de portugueses, que, juntamente com o dinheiro dos resgates dos nobres aprisionados, permitiram a Ahmed El-Mansur criar um exército poderoso, com o qual invadiu de seguida o Mali.
Saldanha tem esta descrição dos estrangeiros que ingressavam nos corpos de elite de Ahmed El-Mansur: “Estes eram andaluzes, azuagos que eram de Tunes a levante, xarquis que eram de Tunes até Fez, turcos que eram dois mil e não se aceitava nenhum outro, e renegados portugueses e espanhóis que iam em grande crescimento, e estes ia o xerife acariciando muito“. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 49)
Em 1589 o sultão envia um poderoso exército para conquistar o império Songhai do Mali para explorar o ouro do Níger, comandado pelo renegado Joudar Pacha, nativo de Las Cuevas, nas Asturias. O corpo expedicionário era composto por “3.000 homens dos quais 500 renegados cristãos, 8.000 dromedários e 1.000 cavalos de carga destinados a abastecer o exército mais importante alguma vez enviado através do Sahara” (LUGAN, 2011, p. 169). Segundo As Sai’di, citado por Bernard Lugan, “o pacha Jouder foi colocado à frente da expedição; tinha consigo uma dezena de generais, o alcaide Mostafa-el-Torki, o alcaide Ahmed el-Harousi-el-Andalousi, o alcaide Ahmed ben-Haddad el-Amri (…) o alcaide Ahmed ben-Atiya, o alcaide Ammar el-Fatase o renegado, o alcaide Ahmed ben Youssef o renegado, o alcaide Ali ben Mostefa o renegado (…) Enfim o alcaide Bou Chiba el-Amri e o alcaide Bou Ghetta el-Amri. Dois tenentes-generais comandavam as alas do exército, Bem Hassen Friro o renegado a ala direita e Qâsem el-Andalousi, o renegado, a ala esquerda”. (LUGAN, 2011, p. 169)
Um alcaide português influente era Abdalá Sincos, elche que tinha oitocentos soldados sob o seu comando. “Era português e posto que casado e com filhos e muito rico” (SALDANHA, [160-] 1997, p. 431). Outro elche português que se distinguiu como militar foi Amu Beja, conhecido como Hamou Bijou ou Hamet ben Jau. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 513)
O Borj Nord ou Borj An-Nar de Fez, ou Castelo do Fogo, vendo-se em primeiro plano o canhão Maimouna usado pelo exército marroquino na Batalha de Alcácer Quibir
O reinado de Ahmed El-Mansur é especialmente rico em construções de infraestruturas militares, como muralhas e fortalezas, apoiando-se no grande incremento que os elches deram. Foi um reinado extremamente longo (1578-1603) e iniciou-se precisamente no dia da Batalha de Alcácer Quibir, no qual são feitos milhares de cativos, entre os quais homens de grande competência, apreendida grande quantidade de armamento e cobradas importantes somas em resgates.
O Borj Nord e o Borj Sud de Fez são dois fortes cuja construção foi iniciada por Abdelmalek e concluída por Ahmed El-Mansur (KAFAS, 2016, p. 212). Estas fortificações, que defendem exteriormente Fès El Bali, a cidade velha, bem como as defesas da Fès Jdid, Fez Nova, foram terminadas após a Batalha de Alcácer Quibir e fortemente munidas de artilharia e soldados aí deixados por Ahmed El-Mansur ao seu filho herdeiro Mulai Xeque El-Mamoun.
Sobre o Borj An-Nar, refere Kafas: “É evidente que este edifício foi completamente concebido nos seus mais ínfimos detalhes antes da sua construção. Uma verdadeira obra saída da mão de um mestre que dispunha de um plano de execução preciso” (KAFAS, 2016, p. 214). É uma estrutura quadrangular com baluartes de orelhões em cunha nos seus cantos, um dos quais apoiado num impressionante alambor, dispondo de 56 canhoneiras e rodado de um fosso com altura de entre cinco e sete metros. A semelhança entre estes fortes e os que eram na época construídos na Europa, leva muitos autores a atribuir a sua construção a renegados europeus.
António Almagro coloca muitas reservas a esta posição, por dois motivos, seja o facto de Ahmed El-Mansur ser fortemente influenciado pela experiência turca, mas principalmente porque “a impressão que estas fortificações dão é a de que os seus projectistas não tinham muita experiência relativamente a ataques realizados por exércitos munidos de artilharia pesada e que copiaram meramente modelos vistos noutros locais, sem pensarem muito na sua utilidade ou o risco que o desenho das suas defesas envolvia. É muito provável que a construção destas fortalezas tivesse, nalguns casos, um objectivo mais intimidatório e propagandístico do que eficiência militar”. (ALMAGRO, 2017, p. 118)
O Castelo das Cúpulas de Larache
As duas fortalezas de Larache, o Castelo das Cúpulas (Hisn Laqbibat, Hisn El-Fath ou Castelo da Conquista, Castelo Português ou de San António, como lhe chamariam posteriormente os espanhóis) e o Castelo das Cegonhas (também conhecido como Hisn Laqáliq, Hisn El-Nasr ou Castelo da Vitória, Castillo de Santa Maria ou de Nuestra Señora de Africa), são atribuídas ao Sultão Ahmed El-Mansur, que terá supostamente utilizado na sua construção engenheiros militares italianos ao serviço de D. Sebastião, cativos na Batalha de Alcácer Quibir. Na Planta de 1606 da autoria de João Mateo Benedetti, existente nos Arquivos da Torre do Tombo e publicada e comentada por António Dias Farinha (FARINHA, 1987, pp. 7-8), o Forte das Cegonhas ainda não está representado, mas apenas o das Cúpulas, o que não deixa dúvidas em relação à maior antiguidade deste último. Aliás, o já referido Alcaide Mansorico surge na obra de António de Saldanha Cronica de Almançor Sultão de Marrocos como alcaide dos Andaluses e “natural de Cordova” (SALDANHA, [160-] 1997, p. 47), pessoa a quem é encomendada pelo Sultão Almançor a reparação de uma e a construção de outra, das duas fortalezas de Larache: “E com toda a brevidade mandou ao alcaide Mansorico que fosse a Larache fazer a fortaleza nova e fortificar a velha que estava na barra, que tudo se fez em seis meses, e lhe deixou sessenta peças de artilharia de bronze e trezentos soldados de guarnição”. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 105)
Quanto a Benedetti, não seria um desses renegados, já que na legenda da sua planta se pode ler Planta de Larache feita por João Mateo Benedetti a sua Majestade Católica muito antes de […] em poder de cristãos em Africa. (FARINHA, 1987, pp. 7)
Planta de Larache de 1606 de João Mateo Benedetti. Arquivo Nacional Torre do Tombo
Eloufrani também se refere às fortalezas de Ahmed El-Mansur em Larache: “De entre as construções erigidas por Elmansour, podemos ainda citar os dois fortes construídos em Larache, e dos quais um tem o nome de Hisn-elfath; são duas magníficas e sólidas obras” (ELOUFRANI, 1889, p. 261). Cruzando a informação de Saldanha e de Eloufrani, parece evidente que, tendo as duas a marca do Sultão Ahmed El-Mansur, uma foi reconstruída e modernizada e a outra construída de raiz, já que as duas apresentam traços de modernidade para a época, com os seus baluartes pentagonais providos de orelhões, muito ao gosto do estilo renascentista italiano.
Após a morte de Ahmed El-Mansur em 1603, entramos no chamado apogeu dos renegados, como Nolet o designa. Neste período, Marrocos mergulha numa guerra civil, na qual os renegados têm um papel decisivo em termos de influência política sobre os vários campos em disputa pelo poder. O contributo nesta fase já não é o da simples modernização das técnicas militares, navais ou de construção de fortificações, mas de um contributo intelectual, sobretudo para a instrução das próprias elites marroquinas e de influência palaciana.
“O último ponto da contribuição para a construção do Marrocos moderno durante a guerra civil é o do estabelecimento de uma elite intelectual. A idade de ouro dos renegados foi (…) uma época em que os renegados tinham estabelecido uma rede de conhecimentos. Nesta linhagem, os renegados tinham já contribuído muito com os seus conhecimentos tecnológicos sob o período de Ahmed al-Mansur, continuaram a contribuir para a modernização de Marrocos, sobretudo pela instrução” (NOLET, 2008, p. 87). Henri Roberts, agente inglês em Marrocos, descreve as forças do Sultão numa carta escrita em 1603, como sendo compostas por 4.000 Renegados, os seus melhores soldados, 4.000 Andaluzes, 1.500 Zouaoua, Turcos e outros soldados, todos formando um efectivo de 40.000 homens, aos quais podemos juntar 200.000 Árabes, “tropa na qual não se pode contar”. (CASTRIES, 1925, p. 222)
O Forte das Cegonhas de Larache
Mas este período, se constitui um apogeu em termos qualitativos do papel dos renegados, é também marcado por uma diminuição do seu número, fruto do caos que se viveu em Marrocos entre 1603 e 1609 e que provoca muitas deserções e fugas de elches. (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 529)
O português Rui Gomes, homem de 35 anos natural de Serpa e morador em Beja, apresentou-se no ano de 1606 na Casa do Despacho da Santa Inquisição de Lisboa, onde contou que, tendo 14 anos decidiu partir para Tânger. Na travessia do Estreito de Gibraltar foi feito cativo com alguns companheiros e levado para Tetuan e depois para Fez. Em Fez foram espancados para se tornarem mouros, ao que Rui Gomes acabou por aceder.
“Disse que queria ser mouro e o vestiram em trajos de mouro e lhe puseram nome Abdalá e disse as palavras que os mouros em tais actos costumam dizer, que são: ‘ley ley Alah, Maomet la sol la la’, que quer dizer Deus grande e Mafoma é o seu profeta, e logo foi retalhado. E do dito tempo em diante se tratava como mouro, posto que não fazia o salá. E por algumas vezes jejuava o jejum do Ramadão e por dissimular e secretamente comia em alguns deles, mas no dia da Pascoa do Ramadão se vestia de brocado, e vestidos de festa. E por confiar dele declarante el-rei Muley Amete o fez alcaide de uma terra que chamam Quiteo e lhe deu outros ofícios muitos e lhe deu tudo o que podia mas que na verdade ele confitente nunca em seu coração foi mouro nem lhe pareceu que a dita seita de Mafamede era boa para a salvação da alma nem que se podia salvar nela (…) e comunicava em todo o dito tempo que esteve nas ditas partes de Africa com os cristãos que lá havia aos quais dizia que era cristão e os ajudava, como dirão Pero César e António de Saldanha e os mais cristãos que agora vieram de Africa por via do embaixador de Alemanha, procurando sempre por todas as vias achar alguma ocasião para fugir para terra de cristãos, e não a houve porquanto a ele o casaram em Fez com duas mulheres, o dito rei, de uma das quais teve um filho e de outra uma filha que será de cinco anos e o menino de quatro; e também por ser alcaide que sempre tinha debaixo do seu poder muitos soldados, não pode haver a dita ocasião mais cedo”. (SALDANHA, [160-] 1997, pp. 595-596)
A inquisição quis saber se conhecia pessoas que se fizeram elches e residiam em Portugal. Rui Gomes denunciou um tal Gaspar que “segundo sua lembrança e foi cativo em Tangere sendo atalaia e levado a Fez aonde esteve por muito tempo cristão e tem para si que é português e ele o conheceu cristão em casa d’el-rei de Fez e depois se tornou mouro e se chamava Abdarramão Cavalinho e serviu a ele declarante de seu soldado e por mouro se publicava sendo casado com uma moura e fazia o que os mais mouros faziam”. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 598)
Manuel da Rosa era um marinheiro de Portimão capturado pelos Turcos em 1619 quando pescava entre Sevilha e San Lucar, que se tornou corsário, tendo participado em ataques na zona das Canárias e no Algarve. Após a sua captura no Estreito de Gibraltar foi julgado pela Inquisição de Lisboa. Confessou ter-se tornado mouro em Argel, onde fora vendido a um Turco chamado Esteballi, mas que o fez por obrigação, já que “no seu coração nunca deixou de ser cristão”. Manuel da Rosa relatou que ouvia missa em Argel, já que os cristãos tinham “um modo para ouvirem missa na Capela de Santa Catarina que está dentro de uma taberna“. Segundo as declarações do réu, “nessa taberna, onde sub-repticiamente estava a referida capela, os frequentadores pareciam Turcos, mas ‘eram no coração cristãos”. Á semelhança da generalidade dos réus do Tribunal do Santo Ofício, negou ter frequentado mesquitas ou ter participado em orações “daquela seita”. (JESUS, 2017, p. 281, citando processo do Tribunal do Santo Ofício)
Jerónimo Balançuela, natural de Lagos, foi capturado em 1645 ao largo do Cabo de S. Vicente por uma esquadra de nove navios Turcos quando regressava do Brasil e daí foi levado para Argel. À data da sua captura tinha oito anos e apresentou-se voluntariamente no Tribunal do Santo Ofício de Coimbra 17 anos depois. Contou que se tornou mouro quatro anos após a sua captura, devido aos maus tratos que sofreu, mas “sempre foi cristão e nunca se apartou na nossa Santa Fé Católica em que fora criado, e doutrinado” (JESUS, 2017, p. 284, citando processo do Tribunal do Santo Ofício). Serviu num navio corsário comandado por um renegado flamengo chamado Mahamet, tendo participado em oito ou nove ataques a navios juntos das costas de Portugal e Castela. Certa ocasião, diante da Praia da Tocha, atirou-se ao mar com outros arrenegados e entregou-se. Foi também condenado a penas espirituais.
A Medina de Fez
As histórias de Gaspar Ramos, Simão Mendes, Luís Barreto e Sebastião Pais da Veiga ilustram bem a relevância que os renegados portugueses tiveram nas cortes de Ahmed El-Mansur e Mulai Xeque El-Mamoun, ao ponto de ocuparam cargos de grande relevo na hierarquia do Estado. Quis o destino juntá-los da forma como de seguida se relata. (BENNASSAR, [1989] 2006, pp. 280-281 e 478-508)
Gaspar Ramos, natural de Estremoz, era de origem humilde. Era pajem de um fidalgo de nome Diogo Lopes de Sequeira, comandante de um destacamento do exército português na Batalha de Alcácer Quibir, onde foi capturado com a idade de 15 anos. Levado para Marraquexe, tornou-se mouro à custa de bastonadas, mudando o nome para Jafar. Durante 14 ou 15 anos esteve ao serviço de Mulai Zidane, irmão do sultão Mulai Xeque El-Mamoun, desempenhando funções relativamente modestas, como a edução do filho de um alcaide, tendo chegado a comandar um pequeno destacamento de 1.500 homens. Aos 28 anos casou-se com uma jovem moura com quem viveu 19 anos de quem teve dois filhos.
Simão Mendes foi outro dos prisioneiros de Alcácer Quibir. Era Algarvio e um verdadeiro aventureiro, que aos 18 anos cumpria serviço militar em Mazagão. Regressou a Portugal, onde se casou, mas quando soube da notícia de que D. Sebastião recrutava homens para atacar Marrocos abandonou a sua mulher e ingressou de novo no exército. Tinha 33 anos quando foi capturado e procurou diversas vezes fugir e ser resgatado pelos trinitários, mas sem resultado. Resistiu um longo período no cativeiro em Fez antes de se converter, fruto da sua idade, temperamento e capacidade de resistência. Acabou por se tornar mouro por mão do poderoso alcaide Almançor Gutierrez, que preparava a instalação do sultão Mulai Xeque em Fez, e o aconselhou a circuncisar-se e adoptar os hábitos muçulmanos. Converteu-se, tomando o nome de Reduan. Simão Mendes subiu rapidamente na hierarquia do exército do sultão. Foi capitão da guarda do príncipe durante seis anos e acompanhou Almançor Gutierrez na conquista do Reino de Tigurini, no coração do Deserto do Sahara. No seu regresso a Fez, esmagou uma revolta de xerifes locais, comandando uma força de elches e de andaluses, o que lhe valeu a confiança do sultão, que lhe ordenou que cegasse os prisioneiros com um ferro em brasa. Simão não terá conseguido executar a ordem com as suas próprias mãos, mas o sultão nem por isso diminuiu a confiança que depositava nele. Casou-se sucessivamente com duas filhas de renegados, Fátima, de origem Corsa, e Sofia, filha de um renegado de Huelva, de quem teve nove filhos.
Luís Barreto era filho de um agricultor abastado de Santarém e sobrinho de um monge franciscano, que o educou e o enviou com a idade de 14 anos para Salamanca, onde estudou teologia. No seguimento da morte do tio decide ir para Tânger, com 17 anos de idade, sendo capturado durante a viagem pelos piratas de Tetuan. A sua captura deu-se 10 anos após Alcácer Quibir. Foi levado a pé até Marraquexe, fazendo uma escala em Fez onde o sultão Mulai Xeque o converteu facilmente ao Islão, tomando o nome de Ali. Era conhecido como o monge pelo rei de Fez, pelo facto de ter estudado para religioso e o sultão considerava-o um dos seus renegados preferidos. O sultão confiava-lhe as tarefas mais íntimas possíveis, como verificar se a sua comida não estava envenenada, assisti-lo “ao despertar e deitar” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 483), acompanhá-lo nas suas saídas do palácio. Dirigia a Casa Real, tinha a seu cargo a educação de 200 jovens renegados, era alcaide do paiol e do arsenal. Mulai Xeque ainda o nomeia responsável pelo escudo e armadura do soberano, “cargo honorífico (…) que faz dele um familiar permanente do rei” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 486). Era casado com Aja, filha de um renegado de Coimbra, de quem tinha duas filhas.
A Bab Boujeloud em Fez
Sebastião Pais da Veiga era um fidalgo de Lisboa, filho de Nicolau Fernandes e de Margarida Pais. Viveu na corte de Lisboa até à idade de 12 anos, sendo então enviado para a corte de Madrid, para junto de Cristóvão de Moura, um nobre com influência junto de Filipe II. Foi capturado aos 15 anos na Batalha de Alcácer Quibir, juntamente com três primos seus, sendo estranho não ter pertencido ao lote de fidalgos resgatados. Durante cinco anos esteve ao serviço de um alcaide vassalo do sultão Ahmed El-Mansur, resistindo à conversão, mas converteu-se após receber 500 bastonadas e tomou o nome de Soliman. A sua ascensão junto do sultão inicia-se com o cargo de escudeiro do rei, seis anos depois alcaide da soldadesca, tendo na sua guarda pessoal mil e quinhentos homens de cavalaria e infantaria. “Era também cobrador dos impostos reais e das taxas cobradas pelo rei sobre as mercadorias, responsável pelo pagamento do soldo aos homens da guerra. Resumindo, tesoureiro-mor (ou ministro das finanças) do reino de Fez, gestor das finanças do rei e dos seus exércitos. Para aqueles que o conheceram, era o mais poderoso favorito do rei, e segunda personalidade do reino!” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 484)
Tornou-se um homem poderosíssimo, chegando ao cargo de Vice-Rei de Fez. Aos 43 anos tinha várias casas, um vasto palácio, jardins, estábulos com inúmeros cavalos, riquezas, negócios, escravos e um séquito de servidores. Várias testemunhas do seu processo no Santo Ofício dizem que o seu relacionamento com os comerciantes cristãos não era apenas negócio. Um dos comerciantes que Sebastião conhecia bem era o também português Leonel de Quadros, que tinha casa em Fez e nessa cidade tinha negócios e resgatava cativos. Leonel afirmou que Sebastião “saboreava com prazer os pratos portugueses e não hesitava em comer toucinho” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 490). Tinha um harém digno das Mil e Uma Noites, com 84 mulheres de todas as idades e origens, de quem teve vários filhos. Ele próprio afirmou que entre as favoritas “estava Betusa, que lhe dera um filho, Hamet que tinha 20 anos em 1610, Liasmina, cuja criança, uma rapariga, morreu com tenra idade, e Yerma, da qual não teve filhos (…) casou-se com as duas últimas, e em 1606, com a idade de 43 anos, com uma terceira, Bernia, filha de um renegado, que pôs no mundo uma filha (…) os testemunhos confirmaram o modo de vida sumptuoso, as concubinas, esposas e crianças deste homem poderoso que todos tinham amado e estimado pois ele frequentava e ajudava os meios cristãos de Fez, escravos ou comerciantes”. (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 503)
A Praça Jema’ El-Fna em Marraquexe
O período em que estes renegados viveram é extremamente conturbado, já que a morte de Ahmed El Mansur em 1603 mergulha o País numa guerra fratricida, pelo facto de os seus filhos disputarem o poder ferozmente. Desde 1583 que El-Mansur escolhera o seu filho Mulai Xeque El-Mamoun como herdeiro do trono, instalando-o em Fez, mas um dos outros filhos, Mulai Zidane, instalado em Marraquexe não reconhece o irmão como sucessor. O fosso entre Fez e Marraquexe acentua-se e Mulai Zidane tira partido da vida faustosa que Mulai Xeque leva em Fez, incitando à revolta os xerifes do Sul, acusando ao mesmo tempo o rei, Ahmed El-Mansur de ser condescendente com a situação. “Ele era conivente com as orgias onde o vinho jorrava sem parar, entregando-se às carícias dos seus lindos árabes” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 485). El-Mansur manda então prender Mulai Xeque em Meknés, mas a confusão instala-se com a morte do sultão.
Zidane proclama-se rei de Fez, mas outro dos filhos, de nome Abdellah Abu Faris, proclama-se rei em Marraquexe. Zidane manda então libertar Mulai Xeque, procurando o seu apoio, mas Mulai Xeque, com o apoio dos renegados, reassume o poder. Durante os sete anos que se seguem a guerra civil prossegue, com o poder em Fez e Marraquexe a passar pelas mãos dos três irmãos de forma provisória, com o apoio incondicional dos nossos renegados, Sebastião Pais da Veiga (Soliman), Gaspar Ramos (Jafar), Simão Mendes (Reduan), e Luís Barreto (Ali), a Mulai Xeque. O seu poder aumenta desmesuradamente.
Em 1609, Mulai Xeque El-Mamoun refugia-se na Península Ibérica fazendo-se valer da influência de Sebastião Pais da Veiga junto da Coroa Espanhola (BENNASSAR, [1989] 2006, pp. 487-488). Sebastião Pais da Veiga e um grupo de renegados fiéis a Mulai Xeque refugiam-se nas montanhas do Rif, onde esperam o momento para a vingança. Numa primeira fase instala-se em Vila Nova de Portimão, acompanhado de “sua mãe Jawhar dita Khayzourane, as suas mulheres, os seus filhos mais pequenos, os seus governadores…seja, um total de 258 pessoas” (HACHIM, 2017, p. 305). Segundo Jehanne-Marie Gandin, citada por Mouna Hachim, cada dia “o consumo normal da casa do xerife e dos seus alcaides exigia o modesto aprovisionamento de 500 pães, doze alqueires de farinha, uma novilha; e cada dois dias para além disso, uma vaca, doze carneiros, 24 galinhas, arroz, mel, etc…sem contar com o que se tinha que dar a cada alcaide em particular”. (HACHIM, 2017, p. 305)
Barcos no porto de Agadir
Durante a ausência de Mulai Xeque El-Mamoun, Pais da Veiga aproveita-se da tomada do poder em Fez por Abdellah Abu Faris para retomar as suas funções na corte, jurando fidelidade ao novo sultão. Nesse ano de 1609 estala uma revolta no Suss liderada por um morabito chamado Brahim. Sebastião Pais da Veiga é então nomeado Vice-Rei do Suss para onde se desloca, munido de credenciais que atestam essa nomeação (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 488). Escolhe para o acompanhar, Gaspar Ramos, Simão Mendes, Luís Barreto e um mouro de Granada chamado Brahem. Mouna Hacchim tem uma afirmação contraditória com este apoio de Pais da Veiga a Abu Faris ao comentar “o caso de Abou-Faris, assassinado (…) quando estava prostrado em plena oração, pelo renegado português Soliman Morbara, por ordem do sobrinho Abd-Allah filho de al-Mamoun (HACHIM, 2017, p. 308). Assim sendo, a sua nomeação não teria partido de Abdellah Abu Faris, mas de outro Abdellah, seu sobrinho. É irrelevante para a nossa história.
Chegados a Agadir acontece o inesperado. Embarcaram numa caravela portuguesa roubada por um corsário inglês e entregaram-se à inquisição espanhola em Lanzarote. No julgamento foram identificados por três mulheres resgatadas pelo comerciante português Leonel de Quadros. As informações que deram ao tribunal foram importantes e constituíram um salvo-conduto para Madrid. O conhecimento e amizade que desenvolveram durante anos em Marrocos permitiram-lhes fazer declarações consistentes e concertadas, que foram bem acolhidas pelos inquisidores. E se poderá parecer estranho que “para se tornarem cristãos abandonaram mulheres, crianças, poder, honras e riquezas” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 489), a verdade é que não foi a fé nem o remorso que os moveram, mas a perigosa situação política que se vivia. A sublevação de Brahim no Suss fora vitoriosa e Mulai Zidane preparava-se para conquistar Fez com o seu apoio. Os alcaides portugueses tinham sido fiéis a Mulai Xeque e a Abu Faris, e o seu regresso a Fez ser-lhes-ia fatal.
O Palácio Bahia em Marraquexe
Com a conquista de Fez por Mulai Xeque El-Mamoun em 1610, apoiada por Filipe II de Espanha, em troca do porto de Larache (LUGAN, 2011, p. 177), e a consolidação do poder por Mulai Zidane em Marraquexe, Marrocos fica de novo dividido em dois reinos, que apenas seriam reunificados com a implantação da Dinastia Alauíta em 1664. Até essa data governariam em Fez os descendentes de Mulai Xeque El-Mamoun e em Marraquexe os descendentes de Mulai Zidane.
Com a queda da Dinastia Sádida e a tomada do poder pelos Alauítas, entramos no período do declínio dos renegados, já que o seu poder político cai, mas a sua influência no país mantém-se à custa do controle económico sobre sectores chave, como por exemplo o do resgate de cativos. “Apesar de os renegados terem regredido na estrutura administrativa do novo estado marroquino, parece que continuaram a participar na sua evolução com a ajuda de uma nova ‘arma’, a economia. É verdade que os renegados contribuíram por vezes para gerar dinheiro aos soberanos marroquinos nos períodos precedentes, sobretudo durante a guerra civil posterior à morte de Ahmed El-Mansur em 1603. O seu novo papel sob os Alauítas era sobretudo o de comerciantes. Graças aos seus conhecimentos das línguas e dos costumes europeus, puderam apoderar-se de um lugar chave no sector comercial em grande progressão, o comércio de cativos”. (NOLET, 2008, p. 103)
A sua influência nas estruturas militares também é relevante, como no exército, em destacamentos específicos, sendo frequentemente colocados nas franjas do território, em Casbahs longínquas de onde não podiam sair livremente. O inglês Tomas Pellow, após a sua conversão e casamento, foi colocado numa Casbah em Temsna, com 600 outros renegados, franceses, espanhóis, portugueses e italianos, e posteriormente, num grupo de 3.200 pessoas, homens e mulheres, na Casbah de Tanisna (PELLOW, 1890, pp. 80-81). Durante a sua permanência em Marrocos, participou em inúmeras campanhas militares, a maioria delas nas fronteiras do país. A Casbah de Agourai encontra-se ligada a uma lenda envolvendo portugueses, que tem uma base real. Reza a lenda que o sultão Mulai Ismail contava entre as suas 500 mulheres com uma mulher portuguesa que, ao passar pelo local com o rei, viu uma fonte e chamou-lhe água do rei, designação que deu origem ao topónimo Agourai, facto que é, no entanto, negado por diversos estudiosos marroquinos que defendem que o termo agourai é indubitavelmente um termo Amazigh. Nesse local, Mulai Ismail teria mandado construir uma Casbah, a pedido da sua mulher, para acolher cativos portugueses. Não foi certamente assim, mas sabemos que Agourai era um centro de concentração de tropas de renegados europeus e suas famílias. O próprio Thomas Pellow prestou aí serviço durante alguns anos e foi de Agourai que executou a sua fuga falhada até Mazagão. (PELLOW, 1890, pp. 154-159)
A Casbah de Agourai
Agourai ou Água do Rei, o facto é que o local é identificado com a presença de famílias descendentes de cativos portugueses, que se terão estabelecido aí. Na revista Le Maroc en Mutation, referenciada na bibliografia, pode ler-se: “Fundada pelo Sultão Moulay Ismail, a cidadela de Agourai assegurava funções múltiplas: lugar de encarceramento de piratas (vários descendentes de portugueses, supostamente, vivem ainda em Agourai com um nome arabizado)” (CHATTOU e GONIN, 2010, p. 43). De entre esses nomes figura o de Ouled Bertkhiz, ou filhos dos portugueses.
O renegado espanhol Sidi Ahmed El-Andalusi é talvez o renegado mais conhecido do tempo de Mulai Ismail. Era um dos alcaides mais próximos do sultão, juntamente com o embaixador Abdallah Ben Aicha. Era o responsável pelas conversações com os padres redentores e intérprete nas negociações. (NÉANT, 1724, p. 77)
“O cônsul francês Jean Baptiste Estelle referiu que as forças de Mulai Ismail contavam com quarenta mil mosqueteiros, em grande parte renegados”. Para além disso, o trabalho dos europeus na Daracana de Fez, uma espécie de prisão-fábrica de armamento, produzia “quatrocentos canhões por mês, muito belos e de grande qualidade”. (MILTON, 2006, p. 145)
O irlandês Carr, fundidor de profissão, ficou célebre pelos canhões que fabricava. Mulai Ismail ofereceu-lhe cinco mulheres, muitas riquezas, chegou a nomeá-lo Qaid, ou General, e mesmo governador de uma das fronteiras com a Guiné. Outro renegado do tempo de Mulai Ismail foi um cirurgião espanhol chamado Laureano, que mudou o nome para Sidi Ahmed, que se tornou no físico particular do sultão e que nutria um ódio muito especial aos escravos cristãos (BUSNOT, [1714] 2017, pp. 48-49). Refira-se aliás que muitas das atrocidades cometidas contra os escravos europeus eram da responsabilidade dos renegados, fosse para mostrar trabalho, fosse por uma questão de contrariar o sentimento de culpa que tinham por terem traído os seus. (MILTON, 2006, pp. 145-146)
Deste comportamento dos renegados vem designação depreciativa dada pelos cativos aos torcionários, sobretudo aos femininos, larifa com um motrete de cuscus à cabeça, significando pessoa de pouco valor encarregada de serviço fácil, como chicotear, espancar, torturar ou enforcar (SALDANHA, [160-] 1997, p. 522). Até há muito pouco tempo a Laarifa, a que sabe ou que conhece, termo derivado do verbo arafa, saber ou conhecer, era uma figura tenebrosa existente na sociedade marroquina. Um misto de coscuvilheira, intriguista e informadora da polícia, que, usando um véu que escondia a sua identidade, passava o tempo nos locais públicos a ouvir as conversas, a semear a discórdia no seio das famílias e a encorajar os divórcios. Para além de informadora da polícia, era utilizada pelas autoridades para entrar nas casas particulares, por exemplo em acções de despejos, já que os agentes masculinos não podem entrar nos domicílios onde hajam mulheres.
A Skala de Salé
Conforme referido, os anos de 1603 a 1610 provocaram uma sangria nos renegados em Marrocos, fruto da instabilidade política que se vivia, com a disputa do poder entre os três filhos de Ahmed Al-Mansur, Mulai Xeque, Mulai Zidan e Abu Faris, as várias sublevações de morabitos um pouco por todo o país, e a instituição das Repúblicas Mouriscas do Bouregreg e de Tetuan (TERRASSE, [1947] 2016, pp. 210-223). Essa sangria foi também possível porque a inquisição compreendeu a oportunidade de aproveitar a situação, abrandando as penas normalmente aplicadas aos apóstatas e encorajando a sua deserção.
Mas a importância dos elches na sociedade marroquina ultrapassou largamente as esferas das técnicas militares, de construção naval ou de construções militares. Foi sobretudo um contributo de modernização, na organização do aparelho de Estado, da cobrança de impostos e de investimento no conhecimento e instrução (NOLET, 2008, p. 21). “O impacto dos renegados em Marrocos foi assim muito importante. As consequências da vinda de homens originários de todos os países da Europa, de todas as classes sociais e de todos os meios, abastados ou pobres, criaram uma mistura de indivíduos que trabalharam juntos para o proveito de um único Estado, pelo menos para a maior parte deles. Voluntariamente ou pela força, estes homens, e estas algumas mulheres, ocuparam praticamente todas as funções do Estado de Marrocos, à excepção daquelas associadas com o país da rebelião” (NOLET, 2008, p. 112). O seu papel, se bem que enquadrado num quadro de guerra, de conflito e de sofrimento, foi determinante para uma aproximação entre Marrocos e a Europa, para o aprofundamento do conhecimento mútuo e para a preparação do terreno para as futuras relações diplomáticas que se seguiriam.
“Quer tenham querido ou não, os renegados tiveram um papel de intermediários entre duas civilizações, entre duas culturas, que se detestavam bastante menos do que se disse ou do que se pensa.” (BENNASSAR, [1989] 2006, p. 566)
Muito obrigado por este artigo, você tem algum artigo sobre a família vargas
Bom dia. Eu não me debruço sobre genealogia, mas sei que o actual nome de família marroquino Bargach tem origem na emigração para Rabat de famílias ibéricas de apelido Vargas durante o período da expulsão dos mouriscos e criação da República Corsária do Bouregreg
Mille merci cher ami
Mon plaisir. Choukran sadiqi