O Castelo de Aguz em Souira Qadima
O Castelo de Aguz em Souira Qadima aparenta exteriormente uma situação de monumento estável e recuperado, transmitindo a quem por ali passa uma sensação de tranquilidade, que a sua implantação isolada junto ao mar acentua.
Mas a realidade é bem diferente. De facto, o processo de degradação em que o imóvel se encontra é real e acelerado, tendo-se produzido duas derrocadas no seu interior, que podem antever a ruína parcial de dois dos panos da sua muralha. A situação exige medidas de imediato, já que a sua fragilização estrutural é um dado adquirido, e durante o próximo inverno a acção das chuvas pode ter efeitos devastadores.
A Delegação Regional de Marrakech do Ministério da Cultura de Marrocos tem consciência desta realidade, mas a situação difícil em que se encontra vário do património de origem portuguesa na sua jurisdição, seja o Castelo de Aguz, sejam os imóveis da cidade de Safi, casos do Castelo do Mar, da Kechla e das próprias Muralhas da Cidade, seja ainda a Igreja Portuguesa de Essaouira, envolve verbas avultadas e requer uma intervenção apoiada.
Porta encimada por “cachorros” e Baluarte Sueste
O Castelo de Aguz, a última fortificação a ser construída pelos portugueses na costa Atlântica de Marrocos, em 1519, e a única após o desastre da Mamora de 1515, insere-se na política de construção de presídios para controlo e domínio da navegação marítima.
Essa política, baseada na construção de fortalezas dependentes administrativamente das praças-fortes mostrou-se desastrosa, já que apenas aquelas que evoluíram para cidadelas, como Mazagão e Santa Cruz do Cabo Guer, tiveram um tempo de vida que justificou a sua fundação. Tanto a Fortaleza Ben Mirao, como o Castelo Real de Mogador e o Castelo de Aguz apenas resistiram às investidas das tribos da Duquela durantes escassos anos, concretamente entre quatro e oito, constituindo um investimento esbanjado pela Coroa Portuguesa.
Estas fortalezas encontravam-se completamente isoladas e ocupadas por guarnições de reduzida dimensão, não tendo meios navais disponíveis para combater os ataques corsários, nem meios terrestres para controlar a sua área envolvente, nem tão pouco meios logísticos para apoiar os navios que faziam a rota da costa africana, apoio que, diga-se em abono da verdade, também não se justificava pela sua proximidade ao território de Portugal.
Pormenor do Baluarte Sueste
A política dos presídios não tem relação com a política do degredo, ou seja, do envio para as franjas do império de condenados para expiar os seus crimes, que em Marrocos apenas teve uma expressão com algum significado durante o século XV, já que, com a descoberta do Brasil, esse território passou a constituir o destino dos degredados, destino mais longínquo e do qual raramente regressavam.
O presídio, termo que encontramos para designar a generalidade das praças-fortes portuguesas, não era assim uma grande prisão, apesar de também designar uma fortificação onde os seus ocupantes se encontravam encerrados, mas era sobretudo uma forma de aprisionar os lugares seguros da costa, inviabilizando a sua utilização por navios inimigos.
Este modelo de controlo territorial da fronteira marítima através da política dos presídios evoluiria em termos conceptuais durante o século XVII duma forma muito mais sustentada e racional, já que Filipe II, ao unificar a Península Ibérica, ficou senhor das duas metades do Mundo partilhado pelo Tratado de Tordesilhas “e nascia o primeiro sistema verdadeiramente Mundial de fortificações” (COBOS GUERRA, 2014, p. 113). A Coroa Hispânica enfrentava então as restantes potências navais, Inglaterra, Holanda, França e Império Otomano e as suas armadas corsárias. O modelo é inicialmente posto em prática no Mediterrâneo e “consistia em ocupar ou inutilizar mediante fortificações próprias qualquer baía ou porto suficientemente grande para albergar uma frota inimiga, sabendo que as galeras de guerra no Mediterrâneo não podiam sobreviver a uma tempestade se não tivessem um porto seguro, e os portos seguros não eram assim tantos”. (COBOS GUERRA, 2014, p. 117)
É nesta perspectiva que se pode compreender a construção do Castelo de Aguz em 1519, num momento em que a Coroa Portuguesa já não alimentava a ilusão da criação de um reino português em Marrocos, ilusão que terminara em 1515 com o desastre da Mamora e o início do desmoronar do Protectorado da Duquela no ano seguinte.
Baluarte Sueste e pano Sul, ambos assentes em alambor
O Castelo de Aguz implanta-se no extremo Norte da Praia de Souira Qadima, local onde desagua o Oued Tensift, o Rio Tenerife das crónicas portuguesas. No início do século XVI o local revestia-se de importância estratégica para as aspirações de Portugal, já que garantia uma presença militar no principal ancoradouro entre Safim e Santa Cruz do Cabo Guer, tendo em conta que a pretensão de manter uma fortaleza em Mogador se revelara impossível, como provou o curtíssimo tempo de quatro anos que o Castelo Real esteve em mãos portuguesas.
David Lopes refere que o castelo de Aguz foi edificado em 1507 ou 1508, já que “Diogo de Azambuja em Agosto de 1508 aparece já seu capitão, ao mesmo tempo que de Safim”. (LOPES, 1989, pág. 29) Este facto é, no entanto, desmentido por vários autores, como Jorge Correia, que afirma que “apesar de a propriedade sobre o lugar registar doações a partir de 1508, a decisão da construção de um castelo de pedra e cal avançaria somente a partir de 1519”. (CORREIA, 2008, p. 346)
A construção é realizada por proposta de D. Nuno de Mascarenhas, Governador de Safim, ao Rei de Portugal, com o apoio do bispo dessa Praça, D. João Subtil. “D. Nuno de Mascarenhas propõe a D. Manuel I uma obra no então designado sítio de Aguz, financiada pela coroa mas organizada, orientada e defendida a partir de Safim. Do mesmo ano data a missiva de D. João Subtil, bispo daquela cidade, descrevendo o projeto para um grande castelo cercado por água em dois dos seus lados” (CORREIA, 2008, p. 346). Por esse motivo o Castelo também é conhecido como Castelo Mascarenhas, sendo ainda designado Casbah Lahjar (castelo das pedras em árabe).
Aguz seria assim uma fortaleza dependente da Praça de Safim e construída por iniciativa dos seus governantes.
Castelo de Aguz por A. Luquet, 1941, Serviços Históricos de Marrocos
O desenho e o método construtivo postos em prática seguem um processo que os portugueses utilizavam normalmente para construir as suas fortalezas em território hostil e que tinha por objectivo fazê-lo no mais curto espaço de tempo e na máxima segurança.
Por um lado, a concepção da fortaleza assentava num projecto-tipo, com base numa planta quadrangular e torreões circulares nos seus vértices, fossem quatro ou dois, situação que permitia uma racionalização de meios. Por outro lado, os materiais eram transportados de Portugal, num sistema de pré-fabricação, o que acelerava o processo construtivo e evitava riscos desnecessários com a eventual recolha e fabricação no local. As pedras de cantaria eram transportadas já talhadas, os elementos de madeira, como vigas e tábuas, prontos a utilizar, bem como a cal, pregos e restantes acessórios. A construção definitiva era precedida da montagem no sítio de uma estrutura pré-fabricada de madeira, para abrigo dos materiais, operários e militares, em torno da qual se construía a estrutura definitiva.
Esquema de construção das fortalezas
A utilização deste método expedito deu origem à Lenda de Aguz, “segundo a qual os portugueses, numa só noite, teriam erguido a fortaleza, com o auxílio dos anjos”. (CRUZ, página electrónica citada)
David Lopes refere assim este facto:
“Mas aqui a tradição é acompanhada de maravilhoso, pois reza que as pedras foram levadas de Portugal e o castelo edificado no espaço de uma noite”. (LOPES, [1937] 1989, p. 29)
Este método de construção é descrito nas fontes da época em relação a outras fortificações, como a Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer, cuja crónica anónima traduzida por Pierre de Cénival refere que João Lopes Sequeira “assentou e armou ali um castelo de pau que levava já ordenado e feito; pôs-lhe artilharia e fez logo ao redor do castelo outro muito forte de pedra e cal, em que se meteu a fonte dentro, e com artilharia defendia aos mouros que lhe não impedissem a obra.” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, p. 216)
Esta construção inicial de uma estrutura provisória precedendo a construção definitiva é confirmada por Rafael Moreira na descrição da construção do Castelo de S. Jorge de Mazagão em 1514, referindo que menos de um mês após a visita do Duque de Bragança, “D. Manuel já enviava um superintendente com materiais para as obras – 40 vigas, 440 tábuas e 17 mil pregos – o que sugere uma primeira veloz construção de madeira efémera”. (MOREIRA, 2001, p. 32)
Fachada Nascente
O Castelo de Aguz é um imóvel de grande elegância, cuja silhueta acompanha o declive do terreno, conferindo-lhe uma notável ligeireza e ondulação. Extremamente simples, tem uma forma quadrangular com 35 metros de lado e dois baluartes circulares em vértices opostos.
Os baluartes, com sete metros de diâmetro, apresentam cinco aberturas para fogo de artilharia, duas das quais para fogo rasante aos panos de muralha e três para fogo directo. Sobre a porta de entrada e noutros pontos estratégicos observam-se cachorros para suporte de mata-cães, concebidos para arremesso de pedras ou descargas de líquidos ferventes. Dos lados Sul o Poente, a estrutura assenta num alambor que lhe serve de quebra-mar.
A sua traça é semelhante à das fortificações da cidade de Safim, seja pelo cunho pessoal dos Arrudas, seus prováveis projectistas segundo João Campos (CAMPOS, 2008, p. 113), seja pelo cunho dos construtores que em obra executaram os seus projectos. Um elemento comum a todas elas é a configuração e proporções dos merlões e ameias e a forma das aberturas situadas no eixo dos merlões, constituídas por duas fiadas de pedras verticais e uma peça horizontal que as suporta, com o característico rasgo vertical para observação e o triângulo inferior para tiro mergulhante.
Apesar de a presença portuguesa no local não ter ultrapassado os cinco anos, Aguz chegou a abrigar uma pequena comunidade, como atesta o facto de Duarte Fogaça ter sido nomeado prior da sua igreja em 1520. A partir de 1524-1525 desaparecem as referências ao Castelo de Aguz nos documentos portugueses, não se sabendo se foi abandonado pela sua inutilidade, ou se foi conquistado pelos guerreiros Regraga.
Uma das aberturas dos merlões
O castelo é construído em alvenaria de pedra de três panos, com dois metros de espessura, sendo os dois panos exteriores de pedra com assentamento escalonado com fiadas de regularização, argamassados com cal e areia, e o pano interior de alvenaria pobre, constituído por uma amálgama de pedra de menores dimensões e argamassa. O pano exterior que constitui a face exterior do edifício eleva-se até ao topo da muralha para construir os merlões, enquanto o pano interior e o pano exterior que constitui a face interior do edifício apenas se elevam até à altura necessária para construírem o caminho de ronda ou adarve.
O imóvel terá sido recuperado após o ano de 2000, já que a obra de Pedro Dias A Arquitectura dos Portugueses em Marrocos apresenta imagens do castelo datadas desse ano e parcialmente arruinado. Pelas imagens e pela observação actual dos panos, percebe-se que apenas foram reparadas as zonas em ruína, não se tendo conferido às alvenarias uma uniformidade física, que hoje se reflete em áreas extremamente desgastadas e sem rejuntamento e outras rejuntadas, diga-se, sem grande esmero.
Imagem que ilustra o contraste entre as zonas desgastadas e as zonas rejuntadas
No mês de Maio de 2017 visitei o castelo por duas vezes, nos dias 17 e 23. Na segunda vez tive a possibilidade de entrar no seu interior, situação facultada pelo meu amigo Dr. Azzedine Karra, Director Regional de Cultura de Marraquexe.
O interior do imóvel é um espaço livre infestado por colonização vegetal. Segundo Pedro Dias, no ano 2000 ainda era possível observar no pano da muralha as marcas dos barrotes que constituíam a cobertura dos edifícios que lhe estavam adossados (DIAS, 2002, p. 192).
Seria bastante interessante sondar o local para perceber como essas construções se dispunham e eventualmente por os seus vestígios em evidência, e voltar a abrir o acesso aos baluartes, hoje entaipado.
Vista interior geral
Mas o que mais impressiona quando se entra no local são os dois grandes rombos que se observam nos panos Norte e Poente, fruto da derrocada da alvenaria por acção do efeito de lavagem das águas das chuvas na superfície horizontal do caminho de ronda. Estas derrocadas deixaram o miolo da parede, constituído pela tal alvenaria pobre, totalmente desprotegido, e sobre o qual a acção das chuvas será muito mais erosiva que é nos panos exteriores.
A situação exige medidas urgentes, já que a fragilização que resulta destas derrocadas poderá provocar outras de dimensão muito maior, se afectarem também a face exterior da muralha, atingindo os merlões, seteiras e mata-cães e puserem em causa o próprio contraventamento estrutural do imóvel.
As questões do financiamento são determinantes para que uma intervenção se possa iniciar.
As derrocadas dos panos Norte e Poente
No entanto, a questão de fundo não está na intervenção física em si, que é necessária e urgente, mas na utilização e gestão do imóvel, única forma de assegurar a sua sobrevivência sustentada e manutenção regular.
Sendo Souira Qadima um local essencialmente de turismo nacional e sazonal, a utilização do imóvel poderá encarar uma gestão de apoio a esse turismo e geradora de receitas, consentânea com as suas características e valor patrimonial. Ao mesmo tempo, e apoiada em acções de promoção e integração em circuitos mais alargados, pode procurar também atrair um outro turismo, não tão dependente da sazonalidade como é o turista tradicional que hoje procura o local.
Para tal, há que encontrar apoios, sensibilizar entidades e envolver a própria comunidade de Souira Qadima, numa solução que vá ao encontro das suas necessidades de criação de um espaço de utilização colectiva, neste imóvel que faz parte da sua identidade e do nosso passado comum.
É UMA VERGONHA ESSE PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE NÃO SER PRESERVADO E DIVULGADO,ISSO É HISTÓRIA,BEM ,AQUI NO BRASIL A EDUCAÇÃO É UMA VERGONHA.PARABÉNS PELO ESTUDO MEU MESTRE,MUITA SAÚDE E SUCESSO E MUITO OBRIGADO POR ME INFORMAR PRECIOSIDADES E PODE ESTAR CERTO QUE VALORIZO MUITO SUA OBRA.
Portugal já fez alguma coisa por esse património, Temos o exemplo da Fundação Gulbenkian| Mas o financiamento dessas obras de preservação tem que ser compartilhadas e preservadas depois! Interessante também ver os livros sobre a arquitectura e o urbanismo de origem portuguesa: “Património de Origem Portuguesa no Mundo”, dedicados à América do Sul, Ásia e África.Que bibliotecas tem estes livros?
Cara Maria
Muitas vezes a inércia e a burocracia são responsáveis pelo arrastar de situações. É verdade que a Fundação Calouste Gulbenkian apoiou com o projecto e financiou a reabilitação da Torre de Menagem de Arzila (Borj El-Kamra) e promoveu a realização de um projecto para a reabilitação da Catedral de Safi, projecto que aguarda uma decisão. Como diz, e bem, o património tem que ser recuperado e depois preservado, ou seja, gerido de forma sustentável, ou volta a degradar-se. Aguz é um exemplo típico de imóvel recuperado e degradado pelo abandono.
Caro Marco
É verdade que dói o coração ver património em estado arruinado. Também é verdade que a recuperação do património português em Marrocos envolve inúmeros imóveis, muito dinheiro e existem prioridades. O Castelo do Mar de Safi é talvez a primeira. Aguz é outra, a Igreja portuguesa de Essaouira, outra. Estão a ser realizadas intervenções (como em Alcácer Ceguer) e existem esforços comuns a ser delineados para conseguir financiamentos. Portugal não pode ficar indiferente e a Embaixada de Portugal em Rabat está empenhada em fazer o possível em cooperação com as entidades marroquinas. Vamos ver.
Para o que a Unesco classifica como Património Mundial existem mecenatos que financiam a restauração dos patrimónios ameaçados pela ruína e julgo que o processo para a solicfitação dos financiamentos deveria ser encaminhado por Marrocos e por Portugal! Como por exemplo a associação World Monuments Fund Portugal (WMFP) OFFICERS
José Blanco, President
Isabel Cruz Almeida, Vice President
Director, DGPC, Vice President
Antonio Pedro Coelho, Treasurer
Maria João Sande e Lemos, Secretary
O Castelo de Aguz não está classificado como Património Mundial mas sim pelo Dahir (Decreto) de 23 de fevereiro de 1943. No entanto existe um grupo de trabalho Luso-Marroquino que está a preparar uma candidatura do património da cidade de Safi a Património Mundial, que poderá eventualmente incluir Aguz. Não incluindo, existem outras possibilidades no âmbito de candidaturas a programas de cooperação transfronteiriça, também em estudo.
http://lematin.ma/journal/2016/un-atelier-d-etudes-preside-par-l-ambassadeur–du-portugal-au-maroc/263385.html