O autor deste blogue realizou um conjunto de cinco vídeos sobre a presença portuguesa em Marrocos para o Instituto Camões e a Embaixada de Portugal em Rabat, cuja versão em língua portuguesa completa aqui se apresenta, encontrando-se em preparação duas outras versões, uma em língua árabe e outra em língua francesa, das quais se apresentam os episódios já terminados.
PORTUGAL EM MARROCOS
O Estreito de Gibraltar
“A pirataria, no Mediterrâneo, é tão velha como a história”. (BRAUDEL, [1949] 1990, Tomo II, p. 617)
Desde o declínio do Império Romano que os piratas Norte Africanos, conhecidos como piratas da Barbária ou piratas barbarescos, atacavam navios mercantes e povoações costeiras da Europa, de forma indiferenciada, buscando apenas o saque que daí obtinham. A partir do século XII a sua actividade ganha outros contornos, já que passa a integrar-se no contexto da guerra entre muçulmanos e cristãos, com o início dos ataques aos navios que transportam os cruzados para a Palestina e ataques aos portos que lhes davam apoio. Continue Reading
A Cidadela de Mazagão, que se constitui no Mellah ou Bairro Judeu de El Jadida, 50 anos após o abandono da praça pelos Potugueses
O período da ocupação da costa Atlântica de Marrocos por Portugal, através da criação de uma rede de praças-fortes, que marca o início da época da Expansão Portuguesa, é um período de grandes transformações políticas e sociais, que ficaria marcado pela intolerância, perseguições e expulsões das minorias religiosas. Portugal e Marrocos passam a ser duas margens de um Mundo onde essas minorias se relacionam, tentando sobreviver e preservar a sua identidade, enfrentando forças poderosas que infernizavam a sua existência.
Os Judeus tiveram um papel determinante para a sobrevivência económica das praças Portuguesas e para o relacionamento institucional entre Portugal e Marrocos, já que eram uma comunidade aceite pelos dois lados e um veículo do entendimento entre ambos. Mais do que isso, foram um elo de ligação entre as várias religiões e etnias, que permitiu estabelecer pontes e um diálogo, fundamentais para a solução de muitos problemas da vida quotidiana das várias comunidades. Continue Reading
O Borj Nador, atalaia portuguesa da Praça de Safim, construída em 1510 na falésia de Sidi Bouzid
As praças-fortes portuguesas em Marrocos organizavam-se de modo a subsistir num contexto extremamente hostil, o que levou os portugueses a abri-las para o mar, de onde chegavam os abastecimentos e o auxílio militar, e voltando costas à terra, a fonte de todos os perigos. No entanto, as Praças não podiam viver totalmente dissociadas do território envolvente, pelo menos daquele que se encontrava mais próximo. Todas elas dispunham de um chamado Campo Exterior, área extramuros de utilização diurna, defendida por elementos construídos de carácter precário aliados a procedimentos rotineiros, onde se recolhia lenha, se desenvolvia uma agricultura de subsistência e onde o pouco gado podia pastar. Mas o campo exterior não era apenas isso, já que cumpria um papel muito importante enquanto escape à sensação de aprisionamento em que a população de encontrava, permitindo saídas fora de portas, especialmente necessárias para o equilíbrio psicológico dos habitantes.
Este texto aborda o campo exterior de três praças-fortes, Arzila, Tânger e Mazagão. A definição dos seus campos exteriores é o resultado do cruzamento de diversa informação, desde logo a análise do trabalho de Adolfo Guevara realizado sobre Arzila, a pesquiza de fontes bibliográficas, o estudo da cartografia disponível, a topografia do terreno, a toponímia e as evidências que os seus elementos deixaram nas cidades actuais ao nível do traçado urbano e de zonas homogéneas. Continue Reading
A Couraça e o Baluarte da Couraça de Arzila
David Lopes é um autor admirável. Foi um ilustre historiador e professor de Língua e Literatura Francesa e Língua e Literatura Árabe, licenciado em Lisboa com o Curso Superior de Letras, e estudou em Paris, na École Nationale des Langues Orientales Vivantes e na École Pratique des Hautes Études. Deixou uma importantíssima bibliografia, da qual salientamos, de entre muitas outras obras, a edição dos Anais de Arzila: crónica inédita do século XVI de Bernardo Rodrigues e os Textos em Aljamía Portuguesa. O prefácio da obra de David Lopes, História de Arzila durante o Domínio Português (1471-1550 e 1577-1589), começa da seguinte forma: “Os filhos de D. João I é um livro admirável” (LOPES, 1925, p. VII). Nesse prefácio, David Lopes faz o elogio do autor desse livro, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, incontornável historiador, cientista social e político português da segunda metade do século XIX, e tece considerações sobre a ideia de que a História tem uma grande carga de subjectividade e de poesia por parte de quem a escreve, ou a revive, correndo o risco de, poeticamente, se afastar da própria História. “Todas as ideias preconcebidas que são o nosso ser espiritual vão alterar a pureza da nossa visão actual. São outras tantas causas de erros e de falsos juízos. Não importa. As cousas inertes do passado só revivem coadas pela nossa sensibilidade. Por força, alguma cousa da alma do historiador passará para a alma das cousas e dos homens objecto do seu estudo” (LOPES, 1925, p. IX).
O meu elogio a David Lopes não é apenas uma identificação com o seu pensamento e admiração pela sua obra, como, inevitavelmente, uma partilha da sua própria identificação e admiração por Oliveira Martins, cuja dimensão histórico-poética está patente nesta passagem do seu livro Os filhos de D. João I, ao referir-se aos habitantes de Ceuta expulsos da sua cidade aquando da conquista portuguesa de 1415: “A mourama fugira chorando, sumira-se na espessura dos arvoredos dos arrabaldes da sua cidade perdida. E durante essa noite, em volta de Ceuta, ouvia-se um coro de povo escondido, em ais e doridas perguntas pelas mães e pelos filhos. Dir-se-ia que as moitas dos jardins e o arvoredo das hortas falavam, que gemiam na tristeza da noite, e que eram lágrimas as folhas pendentes balouçadas pelo vento mansamente” (MARTINS, [1891] 1983, p. 51). Continue Reading
As torres da Cadeia e do Rebate do Castelo Real de S. Jorge de Mazagão
A ocupação da costa Marroquina por Portugal concretizou-se através de vários tipos de estruturas construídas, fossem a própria ocupação e fortificação de cidades e cidadelas existentes, caso de Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila, Tânger, Safim e Azamor, fossem a construção de fortalezas isoladas, funcionando como estruturas satélite das praças-fortes.
A política de controlo o território com fortalezas isoladas revelou-se um verdadeiro desastre, já que das que foram construídas apenas demonstraram alguma viabilidade as duas que evoluíram para cidadelas, Santa Cruz do Cabo Guer e o Castelo Real de S. Jorge de Mazagão, tendo as outras duas, o Castelo Real de Mogador e o Castelo de Aguz, sobrevivido em mãos Portuguesas escassos anos, apesar de ser inegável que em termos de metodologia de construção terem sido um sucesso, já que o seu processo construtivo foi extremamente engenhoso, prático e eficaz.
As outras duas cuja construção falhou, concretamente a Fortaleza da Graciosa e S. João da Mamora, constituíram reveses com consequências decisivas para a própria política Portuguesa em Marrocos, que confirmaram que o sonho de um Reino Português no País não passou de uma ilusão. Continue Reading
O que resta do Memorial a D. Sebastião em Douar Souaken, no local onde se convencionou ter ocorrido a Batalha de Alcácer Quibir
“O verdadeiro renegado era um pobre diabo que apenas ocupava empregos subalternos, que era enviado para todas as expedições perigosas e que, muito raramente, saboreava os prazeres sem luxo do repouso numa qualquer Casbah. Morrer num combate, tornar-se num desordeiro, arriscar a tortura para conseguir fugir, eram estas as suas hipóteses de futuro”. (TERRASSE, 1926, p. 191-192)
Esta afirmação de Henri Terrasse espelha a realidade da generalidade dos renegados, que, enquanto indivíduos convertidos ao islão e integrados na sociedade marroquina, não usufruíam regra geral dos direitos dos cidadãos comuns, mantendo-se num estado de semi-captividade. Não é difícil compreender porquê, já que na sua grande maioria mudavam de campo por razões de sobrevivência, com extrema reserva mental, comparáveis aquelas que os cristãos-novos tiveram quando se converteram ao cristianismo, ou seja, quando tinham que escolher entre ser cativos ou homens livres.
Mas a regra geral tinha muitas variantes, como adiante se verá. Continue Reading
Após a conquista de Ceuta em 1415, Tânger torna-se uma obsessão para a coroa de Portugal. Em 1437 um grande e mal planeado ataque comandado pelo infante D. Henrique fracassa, constituindo um rude golpe para as aspirações portuguesas. A opção é então tomar Alcácer Ceguer, facto que ocorre em 1458, já no reinado de D. Afonso V. No ano de 1464 D. Afonso V faz uma nova tentativa para conquistar Tânger, seguida de outros ataques menores, todos sem sucesso. A tomada de Tânger revelava-se como difícil de concretizar.
“Em 1471 surgiu nova oportunidade: beneficiando de um clima de volubilidade política no reino de Fez, D. Afonso V depressa organizou uma expedição que, desta vez, visaria Arzila, uma cidade desprovida de um porto seguro mas dotada de uma fértil região agrícola. Subjugada Arzila tornar-se-ia muito mais fácil o cerco da cidade de Tânger pelo sul.” (DÁVILA, obra citada)
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Tânger vista do Cabo Malabata
As Praças-fortes portuguesas em Marrocos organizavam-se de modo a subsistir num contexto extremamente hostil, frequentemente assediadas pelo inimigo e sujeitas a um bloqueio económico terrestre, o que levou os portugueses a abri-las para o Mar, de onde chegavam os abastecimentos e o auxílio militar, criando estruturas defensivas para garantir o controlo das frentes ribeirinhas, como as Couraças, e voltando costas à Terra, a fonte de todos os perigos.
No entanto, as Praças não podiam viver totalmente dissociadas do território envolvente, pelo menos daquele que se encontrava mais próximo. Era criado assim o chamado Campo Exterior, área extramuros de utilização diurna, defendida por elementos construídos de carácter precário aliados a procedimentos rotineiros, onde se recolhia lenha, se desenvolvia uma agricultura de subsistência e onde o pouco gado podia pastar.
Mas o Campo Exterior não era apenas isso, já que cumpria um papel muito importante enquanto escape à sensação de aprisionamento em que a população de encontrava, permitindo saídas fora de portas, especialmente necessárias para o equilíbrio psicológico dos habitantes. Continue Reading
O arco da Couraça de Alcácer Ceguer
A história de Alcácer Ceguer encontra-se intimamente ligada ao Estreito de Gibraltar e à travessia entre as suas margens. Assim foi no período do Al-Andalus, servindo de base para o embarque dos exércitos muçulmanos durante as várias ofensivas na Península, como durante o período das praças-fortes portuguesas, assegurando uma continuidade do domínio da navegação ao longo da costa marroquina, uma espécie de vigia de alerta à actividade do corso da barbária.
Apesar disso, Alcácer Ceguer nunca assegurou o domínio territorial terrestre português na margem Sul do Estreito, apesar da sua reduzida distância a Ceuta e Tânger, devido à irregularidade do terreno e à luta constante que as tribos da região e o poder do Reino de Fez impuseram. À semelhança de todas as outras praças-fortes, Alcácer foi um reduto fechado ao território envolvente, abrindo-se apenas para o mar, tenda na sua Couraça o elemento prático e simbólico dessa abertura.
Abandonada após a evacuação portuguesa, a cidadela degradou-se e tornou-se num sítio arqueológico. Desde há alguns anos que começou a ser escavada e estudada e hoje os seus principais vestígios encontram-se em recuperação e valorização, permitindo uma visita esclarecedora daquilo que foi o castelo da travessia durante o período da ocupação portuguesa. Continue Reading
Este artigo pretende apresentar alguns factos e opiniões que contribuam para o conhecimento da fatídica jornada portuguesa em Alcácer Quibir e a visão que dela ficou expressa de um e outro lado deste conflito.
Aquele que ficou conhecido como o maior desastre militar europeu fora da Europa continua a alimentar polémicas, opiniões controversas e resistências ao apuramento dos factos de forma objectiva, sendo-lhe atribuídas várias designações, Batalha de Alcácer Quibir, Batalha de Oued El Makhazen ou Batalha dos Três Reis. Batalha dos Três Reis, que podia ser dos Dois, Três ou Quatro Reis, já nela participaram dois reis, D. Sebastião e Mulai Abdelmalek, um ex-rei, Mohamed Moutaouakil e um futuro rei, Ahmed Al-Mansour.
Não deixa de ser irónico que uma batalha que determinou de forma tão drástica o futuro de Portugal tenha sido dirigida no seu momento decisivo por dois portugueses, de um e do outro lado da contenda, o Rei D. Sebastião e o renegado Reduan (ou Reduão), um português convertido ao Islão, lugar-tenente de Mulai Abdelmalek, que assumiu no decurso da batalha o comando das operações do exército marroquino após a morte do Sultão. Continue Reading
Dois dos torreões do muro de atalho Poente da Muralha de Tânger
A Muralha foi o elemento fundamental do processo de apropriação das cidades de Marrocos por Portugal e sua transformação em Praças-fortes. Foi através da Muralha que as cidades foram redimensionadas, estruturadas e defendidas, garantindo a sobrevivência do poder da Coroa Portuguesa nessas ilhas implantadas num mar tempestuoso e a segurança das suas guarnições e habitantes.
A Muralha, entendida como um conjunto de estruturas defensivas em permanente evolução, num período da história da arquitectura militar em que as armas de arremesso mecânico foram substituídas pelas armas de fogo, alterando profundamente as técnicas de defesa e de ataque, ultrapassou nas Praças de Marrocos o simples conceito de limite entre dois territórios, tornando-se num instrumento de gestão da vida no seu interior e da forma como se relacionava com os territórios envolventes, fosse a Terra, fosse o Mar. Continue Reading
Interior da Habs Qara ou “Prisão Cara” de Meknés
O arquitecto Cara, figura referenciada como o construtor das Masmorras de Meknés, a célebre Habs Qara ou Prisão Cara, é um dos mitos de portugueses em Marrocos, talvez o mais intrigante e o menos documentado. Se é verdade que não existe qualquer referência a Cara nas fontes históricas, também é verdade que, para o senso comum, a sua existência é naturalmente aceite e, facto surpreendente, em alguns relatos actuais a sua lenda adquire contornos bem reais, como adiante se verá.
Falar de Cara é falar do Sultão Mulai Ismail, seu suposto empregador, e falar de Mulai Ismail é falar de escravatura branca, entre outras coisas, muita dela feita de histórias também envolvendo portugueses.
Mas Mulai Ismail tem outras ligações a portugueses, que a maior parte das pessoas desconhece, sejam reais ou mitos, que aqui se abordam, apesar da escassez de textos que as confirmem, integrando-as no seu contexto, que é o do reinado deste sultão controverso. Continue Reading
A Porta da Vila da Cidadela de Mazagão
“Não havia espaço que não estivesse cheio de recordações: uma pedra, a esquina de uma rua, um largo. Os Mazaganistas formavam um corpo com seus muros. Defendê-los era a sua razão de viver e de esperar. Muitos deles não imaginavam qualquer destino fora dos muros da fortaleza.” (VIDAL, [2005] 2008, p. 51)
No ano de 1541, no seguimento da tomada de Santa Cruz do Cabo Guer pelo Xerife Mohamed Ech-Cheikh, Portugal decide reformular a sua filosofia de ocupação da costa do chamado Marrocos Amarelo, concentrando forças numa fortificação inexpugnável, construída de raiz segundo os princípios mais avançados da arquitectura militar do Renascimento. Essa fortificação, a Cidadela de Mazazão manteve-se inviolada em mãos portuguesas até 1769, data em que um cerco realizado pelo Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah obrigou à sua evacuação, sendo os seus habitantes transferidos para a Amazónia, onde fundaram a cidade de Vila Nova de Mazagão.
Os Mazaganistas, como ficaram conhecidos, foram quatro ou cinco gerações de pessoas que viveram isoladas numa área de meia dúzia de hectares, em permanente sobressalto e de carência de bens de alimentação e condições de conforto, desenvolvendo uma série de subterfúgios para atenuar o tédio e a ansiedade, que caracterizou esta comunidade resistente e guerreira. Continue Reading
Contrariamente ao que muita gente pensa, em Essaouira não existem vestígios da curta permanência portuguesa no local, que não ultrapassou os quatro anos. Poderão eventualmente restar algumas pedras do antigo Castelo Real de Mogador, reutilizadas na construção do Borj El Barmil, mas todos os elementos de arquitectura militar e civil existentes, tanto na cidade, como nas ilhas situadas ao seu redor, são originários do século XVIII, em obras promovidas pelo Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah e construídas na quase totalidade por renegados europeus.
Existem sim, vestígios de edifícios de ocupação portuguesa, cuja construção foi promovida ou custeada por portugueses durante o mesmo século XVIII, concretamente uma Igreja e um imóvel onde esteve instalado o Consulado de Portugal. Aparentemente, ambos os edifícios nada têm a ver com as características da arquitectura portuguesa, mas apresentam aspectos interessantes que vale a pena mencionar, e que um estudo mais aprofundado pode revelar aspectos até hoje desconhecidos. Continue Reading