O Morabito de Sidi Chachkal junto ao Cabo Beddouza
A ocupação da costa marroquina pelos portugueses processou-se em diferentes etapas e assumiu formas diversas ao nível do seu modelo, fruto das condições geopolíticas de cada momento e das próprias características de povoamento do território em questão.
A frase de David Lopes “um reino português em Marrocos era sonho irrealizável com os nossos parcos recursos em gente e dinheiro” (LOPES, [1937] 1989, p. 12) foi uma realidade constante durante os 354 anos que durou a presença portuguesa, marcada por uma existência de praças-fortes isoladas, dependentes dos abastecimentos do exterior, constantemente ameaçadas pela hostilidade do território envolvente, como bem exprimiu Oliveira Martins, ao afirmar que “ficávamos nas praças de Marrocos como a bordo das nossas naus; porém as naus iam, vinham, livremente pelos mares, multiplicando a força, distribuindo o castigo; ao passo que as praças de África eram pontões imóveis, ancorados, constantemente batidos pelas vagas da mourama tempestuosa”. (MARTINS, 1947. p. 258-259)
Os pressupostos que levaram D. João I a conquistar Ceuta e posteriormente a impelir a coroa portuguesa a continuar a ocupação costeira de Marrocos, como a asfixia do Reino de Fez através do corte do seu acesso ao mar, o controle do comércio das caravanas ou a posse do trigo da Duquela afinal saíram frustrados, e Marrocos revelou-se “um sorvedouro de gente e dinheiro”. (MORENO, 1994, p. 15)
Como também diria David Lopes, “não vemos assim D. Henrique fechar os olhos às realidades querer conquistar um país que Portugal, de pouca população e pobre, não podia abarcar. Um realista como ele sempre se revelou não podia ter tão estulta pretensão; e se algum dia teve esse sonho, filho da inexperiência primeira, deve ter acordado dele quando o mar imenso se começou a abrir diante das suas caravelas. Os perigos eram aí, afinal, menores e as vantagens maiores”. (LOPES, [1937] 1989, p. 12)
Praças portuguesas fundadas no século XV
A ocupação inicia-se no ano de 1415 com a conquista de Ceuta, a mais importante cidade costeira de Marrocos, que constituiu uma operação extremamente bem planeada por D. João I, que três anos antes já se ocupava dos seus preparativos. Num dia apenas a cidade é tomada e a totalidade dos seus 30.000 habitantes são expulsos ou chacinados, ficando reduzida a uma guarnição militar de 1.600 homens, aos quais se juntariam muitos corsários, aventureiros e degredados. Ceuta é destruída e totalmente saqueada.
Em 1437 dá-se a primeira tentativa para conquistar Tânger, um autêntico desastre militar da responsabilidade do Infante D. Henrique, que se revelou um péssimo estratega. A operação foi mal planeada e mal conduzida no terreno, e apenas o sacrifício do Infante D. Fernando e de outros companheiros permitiu que o que restava do exército português fosse autorizado a embarcar, apenas com a roupa que tinha no corpo.
A opção seguinte é conquistar Alcácer-Ceguer em 1458, presa fácil para o poder de fogo da artilharia portuguesa, após o que se realizam duas outras tentativas falhadas para tomar Tânger, a cobiçada, que não caía. 1468 é o ano da destruição de Anafé, que os portugueses não ocupam porque sabem não terem meios para a manter. A cidade ficaria arruinada durante três séculos, ocupada de forma precária por corsários e tribos Berberes.
A silhueta da costa de Marrocos no Estreito de Gibraltar, dominada pelo Jebel Mussa
A estratégia para tomar Tânger altera-se e passa por tomar Arzila, isolando Tânger pelo Sul. É organizada a maior esquadra até então, incluindo 477 navios e 30.000 homens. A cidade rende-se perante tal força militar, mas os portugueses não aceitam a rendição e cometem o massacre dos seus habitantes e o saque. Ao saber destas terríveis notícias, os habitantes de Tânger e de Larache abandonam as suas cidades. Afinal a invencível Tânger seria ocupada sem combate.
Nesse mesmo ano de 1471 Safim torna-se vassala da Coroa Portuguesa e é estabelecida uma feitoria na cidade. O acordo previa o pagamento de um tributo em géneros pelos mouros de pazes e em troca Portugal garantia-lhes protecção e livre comércio nos seus domínios. Em 1486 passa-se o mesmo com Azamor, que se torna vassala, pagando um tributo em sáveis, peixe muito abundante no Rio Morbeia.
No ano de 1489 esta caminhada de ocupação da costa de Norte para Sul esbarra com o erro táctico de construir uma fortaleza no interior de Marrocos, que se chamaria Fortaleza da Graciosa, na confluência do Rio Lucus com o Rio Makhizen, ou Rio da Ponte, curiosamente no local onde viria a ser travada a Batalha de Alcácer-Quibir. Local insalubre, apenas navegável em parte do ano, sem possibilidades de abastecimentos e reforços eficientes. A meio da construção o rei de Fez cerca o local e os portugueses são obrigados a renderem-se. As suas vidas são poupadas pela amizade que existia entre Mulai Sheikh e D. Afonso V.
Este fracasso, aliado ao facto de o governador de Tenerife, ou Adelantado Mayor das Canárias, iniciar a construção de uma fortaleza frente às Canárias, entre o local da actual cidade de Sidi Ifni e Tarfaya, à revelia dos acordos Ibéricos, volta as atenções de Portugal para o Sul de Marrocos, não sem antes construir a única fortaleza portuguesa no Mediterrâneo, o Castelo de Beni Boufrah.
Praças portuguesas fundadas no século XVI
Como resposta à tentativa espanhola de construir a chamada Fortaleza de Santa Cruz do Mar Pequeno, os portugueses constroem a de Santa Cruz do Cabo Guer, no ano de 1505, no local da actual Agadir, e, nesse mesmo ano, a de Ben Mirao, no Rochedo do Diabo, alguns quilómetros mais a Norte. Inicia-se assim uma caminhada de sentido inverso, de Sul para Norte, agora de forma substancialmente mais rápida porque a costa Sul de Marrocos era bastante despovoada e Portugal já era senhor das duas cidades mais importantes, se bem que numa relação de vassalagem.
No ano seguinte é construído o Castelo Real de Mogador no local da actual cidade de Essaouira e em 1508 Safim é conquistada, tornando-se na principal cidade de Portugal na costa Sul de Marrocos. Nuno Fernandes de Ataíde, conhecido como o nunca está quedo é nomeado seu capitão em 1510 e estabelece um vasto território de mouros de pazes que vigoraria até 1516.
1513 é o ano da conquista de Azamor, atacada por 500 velas portuguesas e 15.000 homens, que, segundo vários autores terão colocado os seus defensores em fuga sem oferecerem resistência. No ano seguinte é construído o Castelo de S. Jorge de Mazagão no local onde D. Jaime, Duque de Bragança, desembarcara para conquistar Azamor, o extremo Poente da Praia de Haouzía.
Em 1515 Portugal volta ao Norte e comete outro enorme erro táctico, ao tentar construir uma fortaleza no interior da barra do Rio Cebú, no local da Mamora, à sombra de uma colina que lhe foi fatal. O vice-rei de Meknés coloca aí a sua artilharia e massacra 4.000 portugueses e afunda 100 navios. O desastre da Mamora marca irremediavelmente o fim da expansão portuguesa em Marrocos, que mesmo assim ainda incluiria a construção do Castelo de Aguz no local de Souira Qadima, mas já sem nenhuma perspectiva estratégica.
Marrocos Verde e Marrocos Amarelo
A ocupação da costa de Marrocos por Portugal fica dividida em duas zonas distintas, uma a Norte e outra a Sul, que alguns cronistas chamam Marrocos Verde e Marrocos Amarelo (SANTOS, 2009, p. 3), que se distinguem uma da outra pelo clima, geografia, tipo de culturas e criação de gado, e pelo próprio enquadramento político _ enquanto no Marrocos Verde o poder do Rei de Fez se faz sentir de forma eficaz, no Marrocos Amarelo existe uma autonomia das tribos, que gerem de forma independente o seu território.
Entre as duas zonas fica um território que os portugueses nunca controlaram, um hiato na ocupação da costa, que garante ao Reino de Fez o acesso ao mar e onde se situam importantes ninhos corsários que permanentemente põem em causa a segurança da navegação e do abastecimento das praças. A partir dessas bases de piratas, concretamente de Larache, da Mamora, de Salé e de Anafé saem diariamente dezenas de embarcações, sobretudo “xavecos” em busca de presas, muitos deles comandados por mouriscos expulsos da Península sedentos de vingança.
Tipologias de ocupação do território
As diferenças entre as duas zonas estendem-se ao próprio modelo de ocupação. Enquanto que no Marrocos Verde dominam as cidades conquistadas, Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger, juntando-se a fortaleza de Beni Boufrah, cuja origem portuguesa alguns autores colocam em causa, no Marrocos Amarelo domina a ocupação com fortalezas, Ben Mirao, Castelo Real de Mogador e Castelo de Aguz, mais duas que evoluiriam para cidadelas, Santa Cruz e Mazagão, juntamente com as duas cidades vassalas conquistadas à posteriori.
Esta diferença tem basicamente a ver com o tipo de povoamento existente na costa de Marrocos, mais denso e concentrado no Norte, contrastando com a falta de estruturas urbanas no Sul, que os portugueses solucionam com a construção de fortalezas, geralmente dependentes de uma praça, segundo um modelo hierarquizado. A necessidade de construção dessas fortalezas num curto espaço de tempo, já que era durante a construção que a sua situação era mais vulnerável, levou ao desenvolvimento de um processo de construção expedito, baseado em projectos-tipo, na pré-fabricação de elementos e na montagem de estruturas provisórias em madeira como abrigos temporários.
As praças entre 1542 e 1550
Se o desastre da Mamora foi a razão para que a expansão em Marrocos não prosseguisse, a queda de Santa Cruz do Cabo Guer em 1541 foi o pretexto para o início da evacuação das praças. Santa Cruz é a única praça que cai por razões militares, após um cerco de seis meses pelas forças do Xerife Mohamed Ech-Cheikh. Tal como a Mamora, Santa Cruz fora construída à sombra de um monte, o Pico, localização fatal para a sua sobrevivência. Apesar de as vidas dos portugueses terem sido poupadas pelo Xerife, devido à sua amizade pelo capitão da praça, D. Guterre de Monroy, com cuja filha inclusivamente se vem a casar, a queda de Santa Cruz foi traumatizante para a moral portuguesa.
No ano seguinte, Portugal decide reformular a filosofia da ocupação no Marrocos Amarelo, evacuando Safim e Azamor e transformando o velho Castelo de S. Jorge de Mazagão numa superfortaleza, numa cidadela construída de acordo com os princípios mais avançados da arquitectuta militar da época, que acabaria por constituir a joia da coroa portuguesa em Marrocos.
As praças após 1550
Em 1550 dá-se a evacuação de Arzila e Alcácer Ceguer no Marrocos Verde, mantendo-se apenas as duas posições estratégicas no Estreito, Ceuta e Tânger. Arzila ainda voltaria a mãos portuguesas entre 1577 e 1589, como adiantamento pela participação de Portugal na Batalha de Alcácer Quibir.
O resto é sobejamente conhecido _ Tânger seria dada como dote à Inglaterra em 1662, Ceuta não aclamou o rei de Portugal após a restauração de 1640 e a soberania espanhola sobre a cidade seria reconhecida através do Tratado de Lisboa em 1668 e Mazagão seria evacuada em 1769, transferindo-se a sua população para a Amazónia, onde foi fundada Nova Mazagão.
Cronologia da presença portuguesa em Marrocos
No esquema anterior é evidente a ocupação de apenas 4 praças durante o século XV, a manutenção de 12 posições durante a primeira metade do século XVI, apenas 3 no século XVII e 1 só no século XVIII.
Refira-se também que as fortalezas tiveram uma vida efémera em mãos portuguesas, entre 4 e 9 anos apenas, o que mostra bem a dificuldade de manter posições militares isoladas neste território hostil e também a sua inutilidade, tendo em conta a facilidade com que foram abandonadas.
O modelo de controlo territorial posto em prática por Portugal em Marrocos revelou-se desastroso, já que se baseou na persecução de objectivos inatingíveis, desperdiçando recursos inutilmente. Esta falta de entendimento do modelo a implementar tentou ser corrigido a partir da queda de Santa Cruz do Cabo Guer, mas o suicídio de Alcácer Quibir acabaria com o sonho marroquino português.
Gibraltar, no outro lado do Estreito
Este modelo de controlo territorial da fronteira marítima evoluiria em termos conceptuais durante o século XVII através da política dos presídios, duma forma muito mais sustentada e racional, já que Filipe II, ao unificar a Península Ibérica, ficou senhor das duas metades do Mundo partilhado pelo Tratado de Tordesilhas “e nascia o primeiro sistema verdadeiramente Mundial de fortificações” (COBOS GUERRA, 2014, p. 113). A Coroa Hispânica enfrentava então as restantes potências navais, Inglaterra, Holanda, França e Império Otomano e as suas armadas corsárias.
O novo modelo é posto em prática no Mediterrâneo e “consistia em ocupar ou inutilizar mediante fortificações próprias qualquer baía ou porto suficientemente grande para albergar uma frota inimiga, sabendo que as galeras de guerra no Mediterrâneo não podiam sobreviver a uma tempestade se não tivessem um porto seguro, e os portos seguros não eram assim tantos”. (COBOS GUERRA, 2014, p. 117)
Essas fortalezas eram totalmente dependentes de abastecimentos exteriores, como as praças portuguesas de Marrocos, mas não tinham os problemas de coexistência com uma população hostil, já que não pretendiam interferir com o interior do território, mas apenas inviabilizar a utilização dos portos seguros. Localizavam-se em pontos isolados, aproveitando ao máximo as condições naturais do terreno, como ilhotas ou penínsulas. “Esta é a origem da palavra presídio, que em espanhol acabou adquirindo o significado de uma prisão isolada da qual é muito difícil sair”. (COBOS GUERRA, 2014, p. 117)
O Rochedo de Gibraltar visto da Serra Ximeira de Ceuta
Refira-se que o termo presídio era já bastante utilizado pelos portugueses ao referirem-se às praças de Marrocos, não só pelos motivos referidos por Fernando Cobos, ou seja, por constituírem locais aprisionados de difícil acesso, mas sobretudo devido à política do degredo, que Portugal incrementa após a conquista de Ceuta, enviando os seus condenados para expiarem os seus crimes nas franjas do império. Já anteriormente a 1415 os condenados eram frequentemente degredados para o Algarve. O degredo seria generalizado sobretudo após a descoberta do Brasil e constituiu uma forma inteligente de expulsar os indesejáveis, permitindo-lhes uma integração numa sociedade nova e contribuindo para a colonização dos novos territórios ocupados.
Assisti à sua conferência no Colombo a 25 Maio 2016 ! Aqui ficam os meus agradecimentos por todo o conhecimento que tão bem transmitiu a todas as pessoas presentes. Foi um prazer ouví-lo.
Obrigado pelo seu comentário e pela sua presença na conferência
Muito Bom! !!!
Parabéns por este belíssimo trabalho de cronologia Histórica Portugal! !!!
Bem Haja!!!
Carlos Torcato
Obrigado
excelente trabalho 🙂 parabéns!
Obrigado
Artigo excepcional! Vou recomendar para meus colegas e também para alunos e ex-alunos. Parabéns.
Agradeço o seu interesse e a partilha.
Cumprimentos
Adorei! Muito obrigado pela transmissão de conhecimentos tão bem organizada.
Obrigado. A visualização no espaço é sempre muito esclarecedora
Excelente trabalho. Parabéns.
Obrigado. Cumprimentos
Adorei ler. Parabéns!
Obrigado