O Castelo de Beni Boufrah. foto Mark Wilkinson
Os testemunhos da presença portuguesa em Marrocos localizam-se na costa do Estreito de Gibraltar e na costa do Oceano Atlântico, não existindo provas ou evidências concretas que confirmem uma presença também na costa Mediterrânica.
Apesar disso, existem referências contraditórias em relação a determinados locais da costa do Mediterrâneo, que alguns autores defendem ter origem portuguesa, afirmação desmentida por outros, mas que as recentes intervenções arqueológicas, acções de reabilitação e estudos das fontes têm contribuído para esclarecer. Um desses locais é o Castelo de Beni Boufrah, normalmente conhecido como Torres de Alcalá ou Qal’a al-Sanhaja, uma fortaleza situada no cimo de uma colina sobranceira ao mar localizada nas proximidades do Peñon Velez de la Gomera, o Rochedo Beles das crónicas portuguesas.
Este artigo pretende ser mais um contributo para o esclarecimento da história desta fortaleza e da polémica em que tem estado envolvida.
A costa Atlântica de Marrocos de Tânger ao Bojador
As aspirações de dominar as costas de Marrocos foram uma constante durante o século XV e inícios do século XVI. Em 1424 ou 1425, já depois de conquistada Ceuta, Portugal empreende uma acção para se apoderar das ilhas Canárias. O plano era não só ocupar as ilhas de Lanzarote e Fuerteventura, já ocupadas pelos espanhóis, como também as ilhas ainda sem ocupação, como a Grande Canária. Esta tentativa falha, mas o infante D. Henrique tenta a via diplomática, já que o direito de posse das ilhas pertencia a Maciot de Béthencourt, primo e sucessor do seu conquistador, Jean de Béthencourt, que havia vendido esses direitos à Coroa Espanhola. Face à recusa do Rei de Castela, D. Henrique tenta o apoio do Papa, mas em vão. (CÉNIVAL, 1934, p. 205)
Henrique promove então várias expedições durante os anos seguintes para a descoberta da costa de África, que culminam com a passagem do Cabo Bojador por Gil Eanes em 1434, que ultrapassou o dito cabo mais cinquenta léguas (ZURARA, [1448] 1841, p. 59).
“Como recompensa, o infante D. Henrique recebe, em 22 de Outubro de 1443, o monopólio da navegação para além do Cabo Bojador, doação completada, a 25 de Fevereiro de 1449, por um acto concedendo-lhe os direitos sobre as mercadorias entradas em Portugal provenientes da região situada entre o Cabo Cantin e o Cabo Bojador. É um primeiro ensaio de apropriação da costa Sul de Marrocos, onde se edificarão mais tarde os assentamentos portugueses de Safi, de Mogador, de Santa Cruz do Cabo de Gué e de Massa.” (CÉNIVAL, 1934, p. 206)
Mas a 8 de Julho desse mesmo ano de 1449 o Rei de Castela concede a Juan de Guzman, duque de Medina Sidónia, a costa entre o Cabo Aguer e o Cabo Bojador, situação que a Coroa Portuguesa contesta ao Tribunal de Roma, tendo o Papa Nicolau V emitido uma bula no ano de 1454 que declara “que Ceuta e outras aquisições portuguesas, realizadas ou a realizar, nos locais da sua vizinhança, assim como a costa de África, desde os cabos Bojador e Nam até à Guiné e para lá, pertencem à coroa de Portugal”. (CÉNIVAL, 1934, p. 206)
Portugal prossegue então as suas conquistas em Marrocos, com as tomadas de Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger, enquanto que Castela apenas consolida o seu domínio sobre as Canárias e constrói a fortaleza de Santa Cruz de la Mar Pequena na região de Sidi Ifni.
A costa Mediterrânica de Marrocos entre Ceuta e Al-Hoceima
No Acordo de Toledo, assinado a 6 de Março de 1480, Portugal e Castela resolvem a questão africana, com a renúncia portuguesa às Canárias e a aceitação do direito de Portugal sobre a Guiné, sobre as ilhas a descobrir para lá das Canárias e sobre a conquista do Reino de Fez. (CÉNIVAL, 1934, p. 208)
Com o Tratado de Tordesilhas, assinado a 7 de Junho de 1494, é fixado o meridiano que passa 370 léguas a Oeste de Cabo Verde como limite das conquistas de Portugal e de Espanha, e são regulamentadas outras questões Africanas, como a definição dos limites do Reino de Fez. Castela considerava que existia um Reino de Velez, ao qual pertenciam Caçaça e Melila, que reivindicava para si, considerando que essa área do Mediterrâneo não pertencia ao Reino de Fez, situação que Portugal acabou por aceitar. Mais difícil foi acordar o limite Sul do Reino de Fez, ficando implícito que a região situada entre o Cabo Nam e o Cabo Bojador estaria fora da esfera de Portugal. (CÉNIVAL, 1934, p. 209-211)
A contenda prossegue. No Sul, Portugal consolida a sua posição através da construção das Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer, Ben Mirão e o Castelo Real de Mogador e estabelece acordo de vassalagem com as autoridades de Safim e Azamor, até que em 18 de Setembro de 1509 é assinado o Tratado de Sintra que estabelece que “Portugal abandonava a Castela Velez de la Gomera e o seu território até Caçaça e Melila. Por seu lado, a rainha de Castela cedia a Portugal todos os direitos que ela poderia ter sobre o território que se estendia desde o limite Oeste do território de Velez, até aos cabos Bojador e de Nam, à excepção da Torre de Santa Cruz de Mar Pequeña, que continuava espanhola”. (CÉNIVAL, 1934, p. 211)
O texto do Tratado de Sintra é mais preciso em relação ao limite Oeste do território de Velez, que no fundo marcava a fronteira entre as “conquistas” de Portugal e as de Espanha no Mediterrâneo:
“Primeiramente, foi entre eles concordado, firmado e assentado que o dito rei de Portugal, porque se evitem os ditos males e danos que os ditos Mouros dali de Belez fazem aos Cristãos e gentes dos ditos reinos de Castela, deixe e largue, desde este dia para sempre jamais, à dita senhora rainha de Castela, de Leão e de Granada etc, para ela e seus herdeiros e sucessores e para seus reinos e senhorios, o dito lugar de Belez da Gomeira, com o seu porto e Pinhão e fortaleza em que ela está feita, e com todos seus termos, e assim mesmo toda a costa que desde o dito lugar de Belez há até aos lugares de Melila e Caçaça, com todos e quaisquer lugares e povoações em que a dita costa agora existem e existirão, e com todos os termos delas, contando que contra a parte da cidade de Ceuta não se possa meter nem estenda o termo do dito lugar de Belez mais de até seis léguas por costa.” (CÉNIVAL, 1934, p. 215-216)
A fronteira seria assim a seis léguas a Poente de Velez, ou entre 30 e 36 quilómetros, o que corresponde sensivelmente ao lugar de El Jebha. Uma nota sobre o texto, concretamente sobre a expressão “O rei de Portugal (…) deixe e largue (…) o dito lugar de Belez”, expressão que não pressupõe que a área estivesse ocupada efectivamente pelos portugueses, mas que os portugueses cediam aos castelhanos os direitos de “conquista”, o que é completamente diferente, já que não existem nas crónicas portuguesas da época referências à construção de fortalezas ou de outras construções militares pelos portugueses na costa do Mediterrâneo.
El Jebha, limite da área do “Reino de Velez” e da zona de “conquista” espanhola segundo o Tratado de Sintra de 1509
Portugal tinha uma estratégia de expansão essencialmente atlântica e vocacionada para a costa ocidental africana e a busca do caminho marítimo para a Índia. A progressão das conquistas, da construção de fortalezas e de criação de feitorias na costa atlântica de Marrocos são um claro indicador dessa estratégia, sem prejuízo de que existisse um comércio significativo no Mediterrâneo, sobretudo com Itália. Acresce que na costa do Rif não existiam grandes cidades com importância comercial, nem uma produção cerealífera significativa, facto que era agravado por condições topográficas adversas e por uma população extremamente aguerrida.
As acções portuguesas no Mediterrâneo foram basicamente ataques a navios corsários, havendo apenas duas empresas com algum significado e com características distintas, mas sem que por isso fossem reveladoras de uma estratégia “mediterrânica” portuguesa.
Em 1490 é levada a cabo uma missão de destruição da Vila de Targa, sem objectivo de a tomar para a manter em mãos portuguesas. O ataque a Targa foi confiado a D. Fernando de Meneses que partiu com 50 velas do Algarve “providas de muita, e boa gente, que levavam muitos cavalos”, fazendo escala em Gibraltar, onde se juntaram alguns navios castelhanos e de Ceuta. Contas feitas, seriam uns 2.000 homens, entre os quais 130 cavaleiros. A vila foi tomada facilmente porque os mouros fugiram para a serra. “E, porém, alguns foram mortos, e cativos, e a Vila toda roubada, e queimada, e derrubada pelo chão”. Encontraram 25 navios que aprisionaram, bombardas, pólvora e outras armas, e muitas ferramentas. Levaram consigo 30 cristãos que encontraram cativos. (PINA, [15–] 1792, p. 103-104)
Em 1520, D. Manuel iniciou o processo de sondagem do Rio de Tetuan para nele fazer uma fortaleza, como descreve Damião de Góis (GÓIS, 1566-1567, IV Parte, Cap. XLVIII, fl. 63-64). Segundo o cronista, no ano de 1520 o Rei mandou D. Pedro Mascarenhas sondar a boca do rio para aí construir uma fortaleza que inviabilizasse a actividade dos corsários de Tetuan a partir do local. D. Manuel chegou a informar D. Carlos de Espanha da sua intenção, mas o projecto foi abandonado.
A impressionante Fortaleza de Targa
As fontes árabes consultadas não se referem ao Castelo de Beni Boufrah antes do século XIV, apesar de Anouar Akouh atribuir a sua construção ao sultão Almóada Ibn Yacoub al-Muahidin no século XIII, que terá edificado o castelo como defesa de rectaguarda da intervenção Almóada no al-Andalus (MACROPEDIA FRANÇAIS, 2019, página electrónica citada).
El-Bekri refere no século XI apenas duas fortificações na costa do Rif. Colouê Djara, ou os Castelos de Garet, “praça-forte que ocupa o cume de uma montanha que é absolutamente inexpugnável. Daí chega-se a Melila, cidade antiga, rodeada de uma muralha de pedra e protegendo uma cidadela muito forte, uma mesquita aljama, um banho e alguns bazares”. Mais à frente El-Bekri atribui a fortificação de Melila a Abdarramão III (EL-BEKRI, [1068] 1913, p. 178).
Al-Idrisi não se refere a esta fortificação na sua “Primeira Geografia do Ocidente”, escrita no século XII, referenciando na costa do Rif, na região de Ghumara, o burgo fortificado de Tiguissas, o porto de Qasr Tazzaka, o burgo fortificado de Ma’mura, o burgo fortificado de Mastassa, o Hisn (castelo) Karkal e a cidade de Badis, junto ao Peñon Velez ou Rochedo Beles e o porto de Budhakkur ou Nakur, que já não pertence aos Ghumara. (AL-IDRISI, [1154?] 1999, p. 252)
Abd al-Haqq al-Badisi, na sua obra “El-Maqsad (Vies des Saints du Rif)”, escrita em 1311-1312 e traduzida e anotada por G. S. Colin, menciona no seu texto a fortaleza por duas vezes. A primeira menção é quando fala de uma tal Montanha da Elevada ou Jabal al-‘Aqaba, que diz “que domina Badis do lado da Fortaleza (Qal’a) dos Sanhaga” (EL-BADISI, 1926, p. 84). A segunda referência é uma menção feita por um peregrino sobre uma vaca que errava pelo campo desgarrada “e que pertencia às gentes de El Qal’a, aos Aulad Yadir” (EL-BADISI, 1926, p. 94). Al-Badisi designa assim a fortaleza como Qal’a at Sanhaga (o nome surge escrito desta forma na tradução de G. S. Colin, mas atrevemo-nos a dizer que será mais correcto escrever Qal’at as-Sanhaja) e situa-a “entre Yallis e Badis”, acrescentando que “é habitada pelos Aulad Yadir” (referência no anexo “Geografia Física e Etnica” de G. S. Colin em EL-BADISI, 1926, p. 244).
Sobre esta última referência, o tradutor da obra G. S. Colin tem uma nota que diz o seguinte: “Qal’at Sanhaga, localidade com ancoradouro, situada entre Yallis e Badis, a cerca de quatro quilómetros desta última. É na praia de El-Qal’a que, a 30 de Agosto de 1564, devem ter desembarcado as tropas espanholas que tomaram a cidade de Badis e ocuparam o Penon. Este local é hoje conhecido pelo nome de El-Braz el-Qal’a, que se deve às quatro torres que se elevam ainda sobre as ruínas da fortaleza.” (EL-BADISI, 1926, p. 197)
Léon Africain também não fala da fortaleza na sua obra “Descrição de Africa” escrita no século XVI, referenciando na zona Terga ou Targa, porto de pesca, Bedis ou Badis “pelos Espanhóis denominada Velles de Gumera”, o porto de Ielles (Cala Iris), Tegassa, a cidade amuralhada de Gehba e o grande porto de Mezemme, junto da actual Al-Hoceima. (LÉON AFRICAIN, [1530) 1897, p. 271-280)
O Peñon Velez em 1575 por Georg Braun e Franz Hogenberg, e o Castelo de Beni Boufrah. In Civitates Orbis Terrarum
São várias as referências à origem portuguesa do Castelo de Beni Boufrah.
Elie Primaudaie cita Diego Suarez Montañés, cujo verdadeiro nome era Diego Suarez Corvín, um militar e escritor espanhol que refere que “em 1499 o rei de Portugal mandou construir uma fortaleza num lugar chamado Kala, situado a uma pequena distância a Oeste de Badis, com o objectivo de vigiar os movimentos dos corsários desta cidade e de os ter sob controlo; mas tendo reconhecido rapidamente a dificuldade de abastecer o local, ordenou o seu desmantelamento. A pequena guarnição que ocupava o castelo retirou-se para Ceuta” (PRIMAUDAIE, 1872 pág. 120). Primaudaie, em nota de roda-pé, acrescenta que castelo foi abandonado no ano de 1504.
Cesar Morán Bardón refere que o castelo tem grandes similaridades com as fortificações da Península Ibérica e também atribui a autoria da sua construção aos portugueses, referindo que a fortaleza foi “levantada nos princípios do século XVI por Dom Manuel, rei de Portugal” (MORÁN BARDÓN, 1919 p. 42).
Para Patrice Cressier a origem europeia da Fortaleza de Beni Boufrah é evidente ao afirmar que “mesmo que seja possível que ela tenha ocupado um local de fortificações muçulmanas anteriores, a fortaleza de Alcalá é certamente uma construção cristã: nenhuma das suas características corresponde ao que conhecemos noutros lugares da arquitectura militar marroquina” (CRESSIER, 1983, p. 51). Cressier também atribui a sua construção aos portugueses, e o seu objectivo era fazer face aos ataques corsários. Aliás, Cressier afirma que os portugueses constroem várias fortalezas na costa do Rif (CRESSIER, 1981 pág. 87-92 e 164-165), sendo o Castelo de Beni Boufrah a mais importante de todas. Outra seria a Torre de Mestassa, no local onde hoje se situa Cala Iris. No entanto os escritos de Cressier encerram uma aparente contradição, já que o autor refere que “J. L. L’Africain, descrevendo a região, não a menciona. Ela surge, em contrapartida, um pouco mais tarde num documento cartográfico espanhol datado de 1565 (publicado em Africa, Julho de 1930, p. 165). Ela teria assim sido edificada entre cerca de 1515 e 1565” (CRESSIER, 1983, p. 51). A contradição que apontamos é que em 1515 já estava em vigor o tratado de Sintra e a “posse” espanhola do local.
A tese da origem portuguesa desta fortaleza é retomada por Elboudjay que refere que “a fortaleza de Torres al-Qal‘a, cuja existência é já mencionada por alguns textos de viajantes a partir de 1499, fazia parte das terras cedidas aos Espanhóis a partir de 1508” (ELBOUDJAY, 2003 p. 297).
O suposto abandono do castelo pelos portugueses em 1504 é confirmado por Onieva e Pino de Oliva, citados por Elboudjay. Onieva afirma que “foi construído em 1499 pelo Rei D. Manuel e uma guarnição portuguesa aí residiu durante cinco anos antes do seu abandono”. (ELBOUDJAY, 2003 p. 296)
Gravura do Peñón de Vélez de la Gomera de Jodocus Hondius’s de 1606, vendo-se à esquerda o Castelo de Beni Boufrah. In Mapa de Fez e do Reino de Marrocos
Gravura do Peñon Velez de Gaspar Bouttats de 1692, vendo-se do lado esquerdo o Castelo de Beni Boufrah. In “Sacr. Caes. Mati. Leopoldo, has Turcis ereptas, et favente Deo eripiendas Hongariae civitates, aliasque Turcias”
Dora Bacaicoa Arnaiz defende a autoria espanhola da fortaleza, ao referir que a construção de Beni Boufrah pelos espanhóis é confirmada por “J. M. de Osorio Fernandez Vaina, comandante da praça do Penon de Vêlez, que escreveu em 1791 que a fortaleza de Torres de Alcala foi construída pelos Espanhóis nos tempos do desembarque para a conquista do Penon, pelo vice-rei da Catalunha Dom Garcia de Toledo, em 1564, e que a partir daí nunca tinha sido utilizada pelos Marroquinos” (BACAICOA ARNAIZ, 1953, p. 192).
Carlos Gozalbes Cravioto esclarece que esta afirmação encerra de um duplo erro, já que “por um lado nos diz que foi construída pelos espanhóis durante a conquista, quando se tratou de outra fortificação e por outro lado nos diz que se construiu em 1564, quando sabemos com total certeza que já existia no ataque de 1525” (GOZALBES CRAVIOTO, 2017, p. 37).
Segundo Gozalbes Cravioto, o erro pode estar numa interpretação errada que foi feita da carta de Nicolás Polanco a Pedro Hoyos, secretário do rei, sobre a conquista do Peñon e que diz o seguinte:
“Viemos com bom tempo até à costa da Berberia a uma praia chamada de Alcalá, légua e meia do Peñón por terra e por mar de uma milha italiana (…) começamos a andar (…) Quando arribámos a estas praias (de Vélez), tivemos dois encontros com os berberiscos que vencemos e pusemos em fuga, ficando nós na vila. Chegaram também alguns bergantins da praia de Alcalá, de onde ancoraram as galeras, construindo-se um forte pelas necessidades para desembarcarem”. (GOZALBES CRAVIOTO, 2017, p. 38)
O autor comenta que o forte construído em 1565 não foi em Alcalá, mas nas proximidades do Peñon. E acrescenta que “todos estes erros e a relativa originalidade da sua estrutura como fortificação, foram sem dúvida, as causas que conduziram a atribuir uma origem moderna e cristã (portuguesa ou castelhana) a este castelo.” (GOZALBES CRAVIOTO, 2017, p. 38)
O Castelo de Beni Boufrah. Foto Jitenshaman
A posição de Gozalbes Cravioto, de que o Castelo de Beni Boufrah é um castelo de origem marroquina, é partilhada por Miguel Tarradell que atribui a sua construção aos Árabes, afirmando que será “de uma época difícil de determinar”. Tarradell “exclui qualquer responsabilidade na construção do castelo aos Portugueses. Segundo ele, trata-se de uma ‘fortaleza árabe’ de época difícil de determinar e faz notar que ‘apresenta uma grande similaridade com as fortalezas construídas pelos árabes’. Acrescenta que não há ‘nenhuma parte do edifício onde se podem apreciar influências europeias”. (ELBOUDJAY, 2003 pág. 296)
Anouar Akouh, conforme já referido, situa a sua construção no século XIII e atribui-a aos Almóadas (MACROPEDIA FRANÇAIS, 2019, página electrónica citada).
Esta “polémica” sobre a origem do castelo, em termos de ser português/espanhol ou marroquino encerra uma questão mais vasta que é a das características da generalidade das fortificações costeiras do Rif. De facto, não podemos encarar o Castelo de Beni Boufrah como um caso isolado, mas no seu contexto, que é o de um conjunto de fortificações costeiras com localização estratégica e concebidas em “rede”.
Plano del Peñón de Vélez de la Gomera y costa con el lugar de igual nombre de 1564. Archivo General de Simancas (planta que assinala as movimentações das tropas espanholas para conquistar o Peñon)
É indiscutível que a função do castelo e das restantes fortificações da costa rifenha era combater os perigos que vinham do mar.
No entanto, se fossem de origem cristã (portuguesas ou espanholas) a sua função seria a de confinar as populações da zona, aprisionar os principais portos e embarcadouros, cumprindo assim a função de “presídio” (no sentido de aprisionar os locais com condições para servirem de portos), eventualmente submeter tribos locais, e estariam abertas ao mar, de onde os seus abastecimento e o socorro viria em caso de ataque, voltando costas à terra, origem de todos os perigos. A relação estreita com o mar seria assim a sua característica determinante e quanto mais dentro do mar se situassem mais seguras seriam.
Pelo contrário, se fossem fortificações de origem marroquina, independentemente de apresentarem traços construtivos árabes ou berberes, a sua função seria a de vigiar o mar e defender a operacionalidade dos principais portos e ancoradouros, cumprindo uma função de atalaias e de estruturas de defesa da costa. Estariam abertas ao território interior e protegidas do mar, origem de todos os perigos. A sua implantação em locais inacessíveis a partir do mar seria determinante para cumprirem a sua função. Não temos dúvidas de que as fortificações costeiras do Rif estão nesta segunda categoria.
O próprio “temperamento” dos rifenhos não permitiria a criação das chamadas zonas de Mouros de Pazes como os portugueses constituíram no trapézio Norte de Marrocos e na Duquela. Sobre o carácter aguerrido dos Rifenhos, Auguste Mouliéras descreve a forma como os Beni Itteft e os Bek’kouya, tribos que habitam a zona de Bades, se relacionavam no século XIX com a guarnição da Fortaleza do Peñon Velez de la Gomera:
“As duas tribos, Bek’kouya e Beni Itteft, fornecem cada dia, uma de cada vez, dez guardas, encarregues de vigiar os actos e movimentos dos Espanhóis confinados ao seu rochedo (Peñon de Velez). É proibido a esses Europeus por o pé no continente. (…) O ódio ao espanhol está de tal forma vivo nos Berberes, que eles se recusam a vender ao seu inimigo víveres ou água doce, mesmo a peso de ouro (…) A guarnição recebe de Espanha a água e os víveres. Tiveram mesmo que trazer da metrópole a areia e as pedras destinadas a construir o forte e as casas particulares (…) Os Beni Itteft e Bek’kouya abominam estes conquistadores europeus. Cada vez que os seus olhares se viram para o ilhéu maldito, pronunciam maldições terríveis, pedindo a Deus que os ajude a atirar ao mar esses infiéis, esses intrusos, cujas entranhas devorariam de bom grado.” (MOULIÉRAS, [1895-1899] 2017, p. 87-88)
Cala Iris ou Yallis, local da Torre de Mestassa
Nos séculos XV e XVI assiste-se a uma fortificação da costa do Rif como forma de fazer face aos ataques dos corsários europeus e às pretensões colonialistas de Portugal e de Espanha. No inventário do património cultural do Rif de Er Rbati, grande parte das construções defensivas são atribuídas à Dinastia Sádida, mas esta opinião não é confirmada por outros autores, como Ahmed Tahiri, que referem que o Rif nunca foi verdadeiramente controlado pelos Sádidas, mantendo-se uma área em poder dos Oatácidas mesmo após a sua conquista da cidade de Fez.
São inúmeras as torres de vigia datadas dos séculos XV e XVI, patentes nos trabalhos de Cressier e no inventário do património cultural do Rif de Er Rbati. São na sua esmagadora maioria simples torres sem condições para albergar uma guarnição militar, e, como tal, sem condições de defesa, o que pressupõe estarem inseridas num território “amigo”. São exemplos as torres de Tizgane, Stehat, Bni Bouzra, Amter, Metioua ou Mastasa. (ER BATI, 2011, p. 8-9)
Fazemos notar que uma atalaia apenas tem essa função quando associada a uma base para a qual o alerta é transmitido, seja de forma local para um determinado ancoradouro ou para um conjunto de aldeias de determinada área, seja através de um sistema de alerta “em cadeia”, ou seja, de atalaia em atalaia, encaminhando a mensagem para uma base militar ou cidade que é necessário prevenir no caso de um ataque eminente. Para além disso, as atalaias exigem um sistema de logística regular ou, como era geral nas atalaias das praças-fortes portuguesas, apenas tinham ocupação diurna. Este aspecto é mais um argumento para a conotação das torres de vigia do Rif com um sistema defensivo local e não como postos avançados de uma política colonial.
Castelo de Beni Boufrah ou Torres de Alcalá visto da praia
O Castelo de Beni Boufrah implanta-se no topo de uma colina sobranceira ao mar, a uma cota de 90 metros de altura, e apresenta uma planta quadrangular irregular, dispondo de 5 torres circulares, 4 nos seus cantos e outra de protecção à porta de acesso. A presença marcante das torres na paisagem deu origem à actual designação da fortificação, Torres de Alcalá, nome que deriva do Árabe Al-Qal’a, ou “torre”.
Esta localização eminentemente defensiva em relação ao mar e de difícil acesso em termos de abastecimentos inviabilizaria a sua manutenção em ambiente hostil. Se tivesse sido construída pelos portugueses, seria situada na praia, em contacto directo com a água, como são exemplos Ben Mirão, junto ao Cabo Guer, o Castelo Real de Mogador, o Castelo Real de S. Jorge de Mazagão ou o Castelo de Aguz.
O próprio processo de construção nesta localização, que era sempre baseado na instalação prévia de um “castelo de pau”, ao redor do qual se fazia a construção definitiva, teria muito poucas hipóteses de ser viável.
Planta do Castelo de Beni Boufrah da autoria de Patrice Cressier
O Castelo tem as dimensões de 26 metros de lado, muros com 1,60 de espessura, torres com alturas que variam entre 4.50 e 5.70 metros, com diâmetros aproximados de 5,00 metros. Todo o conjunto apresenta um embasamento em pedra e é construído em taipa, panos e torres, estas últimas com utilização de uma cofragem circular, cujas marcas das “agulhas” ou “cangalhas” são bem visíveis. O arqueólogo-conservador Abdelatif Elboudjay, que escavou o local, descreve o material do enchimento das torres, de composição bastante heterogénea, como sendo constituído por “pedras calcárias, pequenos seixos, gravilha, lajetas de pedra e ligante à base de cal”. (ELBOUDJAY, 2003 pág.295)
A tipologia do castelo é teoricamente similar à da generalidade das fortalezas portuguesas em Marrocos, de forma quadrangular com torreões circulares nos vértices, mas essa tipologia em si não é suficiente para caracterizar o castelo como português. De facto, aquilo que do ponto de vista construtivo “afasta” Beni Boufrah da arquitectura militar portuguesa da época é precisamente o processo construtivo, a taipa, que a generalidade dos “debuxadores” do período da transição como Diogo Boitaca, Francisco Danzilho ou os irmãos Diogo e Francisco de Arruda tinham como um material pouco eficaz para fazer face às novas técnicas da pirobalística, conceito aliás que seria posteriormente revisto. O facto de exigir uma fabricação “in situ” dificultava também o processo construtivo em si, optando-se invariavelmente pela alvenaria ordinária de pedra rematada nos seus pontos sensível com pedra aparelhada, transportada já talhada de Portugal.
O Castelo de Beni Boufrah antes das obras de reabilitação de 2019
Por outro lado, a taipa circular, apesar de patente em certas construções em Portugal, nomeadamente em moinhos de vento no Alentejo e Algarve (BEXIGA, 2005 pág. 243-247), é atípica e de aplicação complexa. Contrariamente, em Marrocos, e sobretudo na arquitectura Berbere, a taipa é um processo largamente utilizado, seja na arquitectura popular, seja na arquitectura erudita.
O Castelo de Beni Boufrah, que apesar de á data das imagens apresentadas ainda não tinha sido recuperado, apresenta-se como um edifício bastante bem construído com o seu embasamento em pedra para “elevar” os panos de taipa e protege-los da acção das águas e permitir uma implantação da edificação de forma integrada nas irregularidades do terreno rochoso.
As torres circulares do Castelo de Beni Boufrah
Como conclusão, direi que o Castelo de Beni Boufrah é um imóvel de construção marroquina, inserido numa rede de fortificações e torres de vigia da costa do Mediterrâneo para fazer face às investidas dos corsários e exércitos de Portugal e de Espanha.
A proximidade da presença espanhola no Rochedo Beles justificava que não fosse uma simples torre de vigia, mas uma fortaleza, que Gozalbes Cravioto avança que deveria ter ocupação esporádica (GOZALBES CRAVIOTO, 2017, p. 49-51), ou seja, que seria utilizada para acolher populações em caso de ataques.
No entanto, os resultados das investigações realizadas no âmbito da sua recente recuperação, que desconhecemos, poderão trazer informações mais concretas, já que são visíveis nas imagens vestígios de edifícios no seu interior, ou seja, que teria condições para acolher uma guarnição em permanência.
شكرا للاستاذ فريدريكو مينديز بولا على هذا البحث الذي سلط الضوء على فترة من تاريخ منطقة بني بوفراح والتي هي منطقتي :ذلك أود أن أصحح معلومة في هذا المقال تتعلق ببرج مسطاسة حيث أنه لا يتواجد بمنطقة كلايريس cala irisوإنما بمسطاسة علب 3 كلمترات أو أربع جهة الغرب من cala iris والبرج لازال موجودا الا الأن على تلة تطل على البحر رغم أن نصفه العلوي تهدم الى أنه لا يزال شامخا الى الأن وعندي صورة له لو اردتها سارسلها لك . في الحقيقة كنت أعرف أن قلعة بني بوفراح أصلها برتغالي بينما لم أكن أعرف أن برج مسطاسة هو برتغالي الاصل حيث كنت أظنه من أثار المرينين حيث يشاع هنا في الموروث الشفهي المتداول ان من بناه هو السلطان الاكحل المريني.. وشكرا
صديقي العزيز
إن موضوع التواجد البرتغالي على ساحل الريف، ليس بالأمر التوافقي. في الواقع كانت هناك معادة بين كل من البرتغال و إسبانيا ١٥٠٩ بسينترا تم فيها الاعتراف لدى الإسبانيين الحق في التواجد على ساحل الأبيض المتوسط.وتبعا لذلك فإن فترة التواجد البرتغالي في هذه المنطقة كانت جد وجيزة.
لكن هناك مؤرخون أمثال « كريسيرمونتانيش » و « إيلبودجاي » يجزمون بأن تأسيس كل من « مستاسة » و «بني بوفراح » هو تشييد برتغالي بكل المقاييس، بينما هناك آراء مضادة…
Excelente divulgação! Obrigada.
Excelente artigo. No ano passado desenvolvi a minha actividade profissional em Al Hoceima e nessa altura referiram-me a origem desta construção associada aos portugueses. Agora, graças as suas indicações consigo compreender. Obrigado mais uma vez.
Al Hoceima, apesar de ser uma cidade de formação relativamente recente, fica numa área de grande riqueza patrimonial, sobretudo em termos de vestígios arqueológicos. Local do antigo Reino de Nakur e do porto de Al-Mazama, base de embarque das mercadorias provenientes do Sahara via Sijilmassa, destruídos pelos Vikings e posteriormente pelos Almorávidas, pela concorrência que faziam a Marraquexe, (e cujos vestígios infelizmente foram parcialmente destruídos pela construção de um resort implantado na baía), local do desembarque das forças franco-espanholas durante a Guerra do Rif, onde ainda são visíveis as “covas de lobo” onde os rifenhos resistiram…