O autor deste blogue realizou um conjunto de cinco vídeos sobre a presença portuguesa em Marrocos para o Instituto Camões e a Embaixada de Portugal em Rabat, cujas versões em língua portuguesa e árabe se apresentam, encontrando-se em preparação uma outra versão, em língua francesa.
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A Casbah de Boulaouane junto ao Oued Oum er-Rbia ou Rio Morbeia
“O verdadeiro renegado era um pobre diabo que apenas ocupava empregos subalternos, que era enviado para todas as expedições perigosas e que, muito raramente, saboreava os prazeres sem luxo do repouso numa qualquer Casbah. Morrer num combate, tornar-se num desordeiro, arriscar a tortura para conseguir fugir, eram estas as suas hipóteses de futuro”. (TERRASSE, 1926, pp. 191-192)
Esta afirmação de Henri Terrasse espelha a realidade da generalidade dos renegados, que, enquanto indivíduos convertidos ao islão e integrados na sociedade marroquina, não usufruíam regra geral dos direitos dos cidadãos comuns, mantendo-se num estado de semi-captividade. Não é difícil compreender porquê, já que na sua grande maioria mudavam de campo por razões de sobrevivência, com extrema reserva mental, comparáveis aquelas que os Cristãos-Novos tiveram quando se converteram ao Cristianismo, ou seja, quando tinham que escolher entre ser cativos ou homens livres. Mas a regra geral tinha muitas variantes, como adiante se verá. Continue Reading
O Estreito de Gibraltar
“A pirataria, no Mediterrâneo, é tão velha como a história”. (BRAUDEL, [1949] 1990, Tomo II, p. 617)
Desde o declínio do Império Romano que os piratas Norte Africanos, conhecidos como piratas da Barbária ou piratas barbarescos, atacavam navios mercantes e povoações costeiras da Europa, de forma indiferenciada, buscando apenas o saque que daí obtinham. A partir do século XII a sua actividade ganha outros contornos, já que passa a integrar-se no contexto da guerra entre muçulmanos e cristãos, com o início dos ataques aos navios que transportam os cruzados para a Palestina e ataques aos portos que lhes davam apoio. Continue Reading
O Estreito de Gibraltar, porta do Mediterrâneo
Entre os séculos XV e XVIII o Mediterrâneo, incluindo o chamado Mar dos Algarves ou Mar das Éguas, actual Golfo de Cádiz, estava pejado de corsários que faziam do tráfico de escravos o seu maior negócio. A actividade corsária envolvia meios consideráveis, em homens e navios, e garantia lucros fenomenais para os seus intervenientes, fosse nos valores dos resgates cobrados, fosse no aproveitamento da mão de obra escrava que assegurava.
O corso atraiu milhares de aventureiros em busca de riqueza fácil, que ajudaram a desenvolver as técnicas de navegação e construção naval, deu origem à concentração de um enorme número de cativos de diversas nacionalidades, que exigia a existência de grandes espaços para a sua concentração, criou um sistema de resgates com intermediários das mais diversas proveniências, e foi responsável por grandes movimentos populacionais, fossem populações deslocadas das áreas costeiras, fossem os chamados renegados, sobretudo europeus, que acabaram por se integrar nas sociedades Norte-Africanas.
Entre este conjunto extremamente dispare de pessoas, sobretudo daquelas que se encontravam “em trânsito”, se assim lhes podemos chamar, fossem corsários, fossem cativos das galés ou das masmorras, fossem ainda comerciantes, desenvolve-se uma linguagem mestiça, chamada Língua Franca, que permitia um entendimento entre os vários intervenientes, sem que fosse utilizada a língua materna de uns ou de outros. Continue Reading
Interior da Habs Qara ou “Prisão Cara” de Meknés
O arquitecto Cara, figura referenciada como o construtor das Masmorras de Meknés, a célebre Habs Qara ou Prisão Cara, é um dos mitos de portugueses em Marrocos, talvez o mais intrigante e o menos documentado. Se é verdade que não existe qualquer referência a Cara nas fontes históricas, também é verdade que, para o senso comum, a sua existência é naturalmente aceite e, facto surpreendente, em alguns relatos actuais a sua lenda adquire contornos bem reais, como adiante se verá.
Falar de Cara é falar do Sultão Mulai Ismail, seu suposto empregador, e falar de Mulai Ismail é falar de escravatura branca, entre outras coisas, muita dela feita de histórias também envolvendo portugueses.
Mas Mulai Ismail tem outras ligações a portugueses, que a maior parte das pessoas desconhece, sejam reais ou mitos, que aqui se abordam, apesar da escassez de textos que as confirmem, integrando-as no seu contexto, que é o do reinado deste sultão controverso. Continue Reading
Imagem que se convencionou identificar com Saída Al-Hurra, mas que se trata da representação de uma heroína da independência grega, de nome Laskarina Bouboulina. Pintura patente no Museu Nacional de História de Atenas
Durante o último quartel do século XV Portugal ocupava as quatro cidades costeiras mais importantes do chamado trapézio do Norte de Marrocos, também conhecido pelos cronistas portugueses como Marrocos Verde _ Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger.
A oposição à presença portuguesa na região não se inseria no quadro do conflito entre os Reinos de Portugal e de Fez, mas era feita de uma forma mais ou menos autónoma por um conjunto de alcaides, antigos nobres do derrotado Reino de Granada, que transportaram para Marrocos a guerra aos cristãos que os haviam expulsado da Península.
De entre estes destacou-se uma mulher, de nome Aicha, conhecida como Saída Al-Hurra, a Senhora Livre, que ficou na História como a grande opositora à ocupação portuguesa, alargando o âmbito da guerra ao invasor da simples guerrilha terrestre para a guerra no mar, conferindo-lhe um carácter mais alargado e estratégico, usando a diplomacia como arma e aproveitando os próprios rendimentos da guerra para promover o desenvolvimento da sua região. Continue Reading
Tetuan vista de Ain Bouanen
Na Primavera de 1437 a guarnição portuguesa de Ceuta ataca a cidade de Tetuan, arrasando-a completamente. Tetuan ficaria abandonada durante cerca de meio século, servindo de base para os ataques portugueses ao interior do território, sendo apenas reedificada por volta de 1484 por mouriscos expulsos de Granada, comandados por Sidi Ali Al-Mandarí, o Almendarim das crónicas portuguesas.
O controlo esporádico das fortificações de Tetuan por Portugal consta inclusivamente da crónica da tentativa falhada para conquistar Tânger desse mesmo ano, tendo o exército que fez o percurso entre Ceuta e Tânger por terra, pernoitado junto aos muros da cidade na noite de 10 para 11 de Setembro.
O ataque português não foi devidamente reconhecido pelos historiadores, sendo a destruição de Tetuan erradamente atribuída aos espanhóis, que alguns autores defendem a teriam arrasado em 1400.
A Habs Qara ou Prisão Qara de Meknés
“Ser escravizado era uma possibilidade muito real para qualquer pessoa que viajasse no Mediterrâneo, ou que vivesse na costa de lugares como Itália, França, Espanha e Portugal, e até tão a Norte como a Inglaterra e a Islândia”. (DAVIS, 2003, obra citada)
Segundo Robert Davis, só entre os anos de 1530 e 1750 foram feitos cativos pelos corsários turcos e norte-africanos entre 1 milhão e 1,25 milhões de europeus. Apesar de este número ser incomparável aos cerca de 12 milhões de africanos escravizados pelos europeus, a verdade é que os efeitos do corso na costa Sul da Europa foram devastadores, pela insegurança, instabilidade, despovoamento e consequências negativas na actividade económica que causou.
Apenas a título de exemplo, refira-se que em Portugal, para fazer face a esta situação, “el-rei D. Pedro concedeu aos moradores de Lagos o direito de andarem armados (…) a concessão régia deste privilégio dá bem ideia do ambiente de guerra latente que se vivia.” (LOUREIRO, 2008, p. 23)
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O Rio Mocazím a montante do local da Fortaleza da Graciosa
Larache era no início do século XV um importante porto de corsários do Norte de Marrocos, que atacavam a navegação portuguesa e faziam razias nas costas do Algarve. No ano de 1417 uma força Portuguesa saída de Ceuta destrói a cidade, que ficaria abandonada temporariamente, sendo repovoada posteriormente, mas não fortificada. Após a conquista de Arzila em 1471, Larache volta a ser abandonada pelos seus habitantes, com medo de eventuais ataques Portugueses.
Portugal comete então dois erros estratégicos que teriam consequências negativas para a própria consolidação das posições que ocupava então no Norte de Marrocos. Por um lado, não ocupa Larache, tarefa simples pelo facto de o poder fazer sem resistência e que permitiria controlar a barra do Rio Lucos e um importante porto de abrigo. Por outro lado, decide construir uma fortaleza numa ilha do Rio Lucos, no interior do território, 15 km a montante da sua foz, num local insalubre, apenas acessível durante o Inverno e, consequentemente, sem condições de abastecimento e socorro.
As obras da fortaleza iniciam-se na primavera de 1489, mas nunca seriam acabadas. Continue Reading
A Mesquita Hassan II em Casablanca
No ano de 1468 uma armada portuguesa aportava em Anafé para uma missão punitiva. Anafé era uma base de corsários mouros particularmente activos em ataques a navios de Portugal e incursões de saque nas costas do Algarve. Os resultados da intervenção portuguesa foram devastadores para a cidade, que foi arrasada e assim permaneceu por mais de três séculos.
Durante esse período Anafé teve uma ocupação precária e esporádica, sendo utilizada por tribos nómadas que nas suas ruínas procuravam abrigo sazonal e por corsários oriundos de Salé, que a utilizavam como base para as suas operações de pirataria e para “acolhimento” de cativos europeus. Nas colunas da sua prisão, conhecida por “Prisão Portuguesa”, foram encontradas inscrições com caracteres latinos, testemunhos desse período de guerra naval que opôs europeus e norte-africanos, e que escravizou milhares de indivíduos de ambos os lados. Continue Reading
O Castelo de Beni Boufrah. foto Mark Wilkinson
Os testemunhos da presença portuguesa em Marrocos localizam-se na costa do Estreito de Gibraltar e na costa do Oceano Atlântico, não existindo provas ou evidências concretas que confirmem uma presença também na costa Mediterrânica.
Apesar disso, existem referências contraditórias em relação a determinados locais da costa do Mediterrâneo, que alguns autores defendem ter origem portuguesa, afirmação desmentida por outros, mas que as recentes intervenções arqueológicas, acções de reabilitação e estudos das fontes têm contribuído para esclarecer. Um desses locais é o Castelo de Beni Boufrah, normalmente conhecido como Torres de Alcalá ou Qal’a al-Sanhaja, uma fortaleza situada no cimo de uma colina sobranceira ao mar localizada nas proximidades do Peñon Velez de la Gomera, o Rochedo Beles das crónicas portuguesas.
Este artigo pretende ser mais um contributo para o esclarecimento da história desta fortaleza e da polémica em que tem estado envolvida. Continue Reading
Ponte de Afoullous, Khemisset. foto Mustapha El Qadery
O tema da influência portuguesa em Marrocos ultrapassa em muito os simples testemunhos edificados, assumindo aspectos pouco esclarecidos, por vezes mesmo desconcertantes, mas sobretudo pouco estudados.
Existe uma conotação do português com o inexplicável, com diversos mitos que fazem parte do imaginário marroquino, por razões mais ou menos compreensíveis, às quais não serão alheios os factos de se encontrarem enraizados em comunidades rurais, com base em histórias com origem suficientemente remota para darem largas à imaginação popular, mas de memória suficientemente recente para que os mais idosos as transmitam de geração em geração.
Podemos dizer que o mito do português L-Bartqiz, com surpreendentes referências a habitantes portugueses de grutas nos confins do deserto ou nas montanhas mais inacessíveis, a autores de pinturas rupestres em tempos imemoriais, a pontes construídas em locais longínquos que os portugueses nunca ocuparam, a prisões de cativos portugueses e até a uma condessa sedutora com pés de camelo, é tão fascinante para o senso comum marroquino, como o mito das mouras encantadas, dos piratas ou dos tapetes voadores é para o senso comum português. Continue Reading
As Muralhas da cidade de Lagos
Durante o século XV os portugueses eram tidos como os maiores corsários da cristandade, actividade considerada nobre e honrada e apoiada pela família real. O corso era muito mais do que simples pirataria. Cumpria um papel determinante na defesa da costa Sul de Portugal e da navegação, sem encargos para o estado, que recebia parte dos lucros arrecadados. O corsário não era apenas um pirata, mas uma espécie de guerrilheiro do mar, que defendia os interesses estratégicos do país, preenchendo a lacuna da falta de uma marinha de guerra eficaz. A versatilidade dos navios corsários tinha uma grande eficiência no combate à pirataria inimiga e o caracter não oficial do corso desresponsabilizava a coroa dos actos por si cometidos.
Com a conquista de Ceuta, Portugal passa a controlar a navegação no Estreito de Gibraltar e afirma-se perante Castela como a grande potência naval da região. Este facto, aliado à necessidade de proteger os cada vez mais numerosos comboios de navios mercantes dos assaltos dos corsários Norte Africanos, origina um incremento do corso português, que esteve na génese dos próprios Descobrimentos. Continue Reading
A Casbah Oudaya, antigo Ribat de Abdel Moumen
Cães, rendam-se aos de Salé!
Grito de abordagem dos corsários de Salé
O estabelecimento do terror da inquisição em 1478 em Espanha e em 1536 em Portugal, deu origem a um êxodo de milhares de mouriscos da Península para Marrocos. Muitos destes espoliados foram engrossar as fileiras do corso, transferindo para o mar a guerra que contra eles fora iniciada.
No início do século XVII a “guerra do corso” estava no seu auge. Dos vários ninhos de corsários estabelecidos nas costas de Marrocos destacou-se o dos corsários de Salé. A sua actividade era tal, que se estima que só entre 1618 e 1624 terão feito 6.000 cativos, atacado 1.000 navios e pilhado mercadorias num total equivalente a cerca de três mil milhões de euros em moeda actual.
A partir de 1627 os corsários de Salé proclamam uma república independente que iria vigorar durante 41 anos e que ficou conhecida por República de Salé, República das Duas Margens ou República Corsária de Bouregreg, nome do rio que divide as cidades de Salé e Rabat. Continue Reading