Interior da Habs Qara ou “Prisão Cara” de Meknés
O arquitecto Cara, figura referenciada como o construtor das Masmorras de Meknés, a célebre Habs Qara ou Prisão Cara, é um dos mitos de portugueses em Marrocos, talvez o mais intrigante e o menos documentado. Se é verdade que não existe qualquer referência a Cara nas fontes históricas, também é verdade que, para o senso comum, a sua existência é naturalmente aceite e, facto surpreendente, em alguns relatos actuais a sua lenda adquire contornos bem reais, como adiante se verá.
Falar de Cara é falar do Sultão Mulai Ismail, seu suposto empregador, e falar de Mulai Ismail é falar de escravatura branca, entre outras coisas, muita dela feita de histórias também envolvendo portugueses.
Mas Mulai Ismail tem outras ligações a portugueses, que a maior parte das pessoas desconhece, sejam reais ou mitos, que aqui se abordam, apesar da escassez de textos que as confirmem, integrando-as no seu contexto, que é o do reinado deste sultão controverso.
Carte de l’Empire de Maroc, comprenant les royaumes de Fez, Mequenez et autres, qui ont été réunis à cet Empire pour servir aux recherches historiques sur les Maures et à l’histoire de l’Empire de Maroc, par M. de Chénier, 1783. Bibliothèque Nationale de France
Mulai Ismail é a figura mais controversa da História de Marrocos. Tido por uns como o construtor e por outros como o sanguinário, a realidade é que foi uma e outra coisa.
A sua vida foi uma constante batalha pela unificação e pacificação de Marrocos, à custa de milhares de cabeças cortadas, uma guerra permanente contra os seus opositores políticos, contra as tribos do Bled as-Siba (Bled as-Siba traduz-se literalmente por País do Caos e o termo é utilizado para denominar os territórios de Marrocos sob o domínio das tribos Berberes, em oposição ao Bled el-Makhzen ou País da Lei, que designa os territórios sob controlo do Estado Marroquino), contra as potências estrangeiras que ocupavam cidades na costa do país e contra a sua própria família. Foi também dedicada á construção da sua Cidade de Meknés, onde deixou a marca de um Sultão megalómano em construções faraónicas, levadas a cabo com o sangue e o suor de milhares de escravos.
Mas Mulai Ismail nunca ultrapassou a sua condição de chefe tribal, transportando-a para o papel de sultão de Marrocos. Essa falta de cultura, de visão e de sentido de Estado, dividiu os marroquinos e não contribuiu para o progresso do país, que mergulhou na anarquia logo após a sua morte.
O Tafilalt
Mulai Ismail ou Mulei Sémein nasceu por volta do ano de 1645 em Sijilmassa, no Tafilalt marroquino. Filho de um Xerife e de uma escrava negra, viveu a sua infância num ambiente simples e austero. A sua relação com os portugueses começa em tenra idade, já que quando tinha três anos foi-lhe oferecido o seu primeiro escravo, um cavaleiro português da guarnição da Praça-forte de Tânger, de nome Luís Gonçalves, capturado nos terrenos circundantes dessa cidade.
Dom Luís, como era conhecido, foi um verdadeiro pai para Mulai Ismail e acompanhou-o até à idade de 33 anos, sete anos após este ser coroado Sultão de Marrocos, quando foi libertado, como conta Giles Milton:
“Dom Luís Gonçalves um oficial de cavalaria português, tinha sido capturado durante uma emboscada quando pertencia à guarnição de Tânger, que pertencia então a Portugal. Dom Luís rapidamente tomou o papel de pai para a criança (…) ‘tinha-o constantemente nos braços, escreveu um observador, e ganhou rapidamente a afeição do pequeno príncipe’. Mais tarde, Mulai Ismail ‘tinha-o sempre ao seu lado’ e acabaria por libertar Dom Luís após mais de trinta anos de cativeiro. Ele foi um dos raros escravos a lhe escapar”. (MILTON, 2006, p. 45)
O Baluarte do Caranguejo em Tânger
A história de Dom Luís foi escrita por um cativo francês de nome Germain Mouette (MOUETTE, 1683, p. 203-215), que o conheceu em Meknés antes de ser libertado. É uma verdadeira aventura que merece ser contada. O relato de Mouette começa assim:
“Dom Luís era um desses ilustres Fidalgos, que os reis de Portugal honram com a ordem de Cristo pelos perigos a que se expõem nas Praças que eles possuem nas costas de Africa. Era nativo e oriundo dos que conquistaram Tânger, onde exercia o posto de Alferes-Maior, ou Insigne Coronel da Cavalaria dessa Praça”.
Numa manhã de nevoeiro, Dom Luís foi levar aos seus postos os sentinelas que vigiavam o campo exterior da cidade, quando foi surpreendido numa emboscada, na qual foi feito prisioneiro. Foi levado a Alcácer-Quibir e o seu Alcaide, Mohamed El-Ayachi, enviou-o aos Zaouias, onde se encontrava o seu Príncipe, para lho oferecer como presente. Dom Luís encontrou aí um outro português chamado Francisco Álvares, natural de Coimbra, que era “Director dos cereais de Ben Bucar”. O tal Francisco era amigo do Príncipe de Ben Bucar, que lhe dava total liberdade de movimentos.
O Alto Atlas visto do Dadés
Convém aqui explicar que estaríamos cerca do ano de 1648, quando governava Marrocos o sultão Sádida Mohamed Ech-Cheikh Es-Seghir (Mohamed Saadi III), e a capital do país era a cidade de Marraquexe.
Numa das idas de Dom Luís à caça com Francisco Álvares nas montanhas de Ourika, o nosso amigo, que “tinha apenas vinte cinco anos de idade, e para além disso era bem parecido”, conheceu a filha dum Cheikh, que começou a reparar nele. Em segredo, a rapariga deu-lhe uma écharpe de seda verde “pedindo-lhe que a guardasse em memória do bem que lhe desejava”. Ao fim de alguns meses Dom Luís voltou com presentes para a dita rapariga, para o seu pai e sua mãe. A mãe disse-lhe que tinha muita pena que ele professasse de uma religião que não permitia que ele se casasse com a filha, mas Dom Luís reafirmou a sua Fé Cristã e partiu com Francisco e um dos irmãos da rapariga para caçar javalis. Durante a caçada são atacados por uma leoa, que os dispersa e fere gravemente Dom Luís na perna. O jovem fica só, perdido nas montanhas, sendo encontrado por uma cáfila que se dirige ao Tafilalt, cujos caravaneiros o colocam sobre um dos camelos e o levam com eles.
Dunas do Erg Chebi, junto a Rissani
Chegados ao Tafilalt, à cidade de Sijilmassa, actual Rissani, Dom Luís é entregue a Mulai Chérif, pai de Mulai Ismail, que o compra ao Príncipe de Ben Bucar. Dom Luís é então disputado pelos filhos de Mulai Chérif, que nunca tinham tido um escravo europeu, e o Cherif acaba por tirar à sorte qual dos filhos ficaria dono do português. A sorte cabe a Mulei Sémein (Mulai Ismail), o mais novo de todos, que na altura tinha apenas três anos de idade. “O Nosso Escravo que o tinha continuamente nos seus braços, ganhou pouco a pouco o afecto do pequeno Príncipe, que aumentou tanto à medida que ele cresceu, ao ponto de querer tê-lo sempre próximo de si”. Dom Luís ganhou um estatuto privilegiado, mas os conflitos entre os irmãos, após a morte do pai, atiraram-no para os estábulos, onde passou a trabalhar, e depois para a forja, perdendo o contacto com Mulai Ismail.
Dom Luís vestia-se à maneira árabe. Deixou crescer as barbas e frequentemente errava pelos campos. Os camponeses beijavam-lhe as mãos, confundindo-o com um morabito, nome dado aos religiosos que recitam o Alcorão de terra em terra.
Após tomar o poder, Mulai Ismail veio ao Tafilalt buscar Dom Luís. Perguntou-lhe se estava bem de saúde e se era muçulmano, ao que o português reafirmou a sua Fé no Cristianismo e a sua vontade de voltar a Portugal. Mulai Ismail sorriu e mandou-o para Meknés, onde se encontrariam mais tarde. Em Meknés, o nosso amigo fez questão de viver entre os escravos cristãos, e nessa altura relatou a Mouette esta história. Mulai Ismail regressou e deu-lhe a liberdade, trinta anos após ter sido feito prisioneiro nos campos de Tânger.
Le grand cherif Mouley-Ismaël, roi du Maroc por Nicolas de Larmessin. Bibliothèque en ligne Gallica
Em 1672, com cerca de 27 anos de idade, Mulai Ismail assume o poder por morte acidental do seu irmão Mulai Rachid, tornando-se no segundo sultão da Dinastia Alauíta. O seu império seria construído com base na riqueza e trabalho dos outros, como refere Castries:
“A sua casa não lhe custava nada, os Judeus pagavam; o seu exército, sem falar na sua guarda negra, mantinha-se a si próprio, os inúmeros prisioneiros indígenas alimentavam-se a suas expensas e apenas era dada aos escravos cristãos uma fraca medida de farinha como ração diária. Não havia sequer carrasco que não fosse pago pela própria vítima.” (CASTRIES, 1903, p. 28)
O seu carácter impetuoso e sanguinário pode ser ilustrado no facto de ter morto com sua própria mão, durante os 55 anos do seu reinado, mais de 36.000 pessoas (CASTRIES, 1903, p. 17). Inúmeros relatos descrevem as suas atrocidades. Uma das suas preferidas era montar-se num dos seus cavalos e, quando se punha em marcha, cortava a cabeça do escravo que lhe segurava as rédeas. (BUSNOT, [1714] 2017, p. 63)
Uma nora no interior dos Celeiros de Mulai Ismail em Meknés
Mulai Ismail tinha um sono leve, atormentado por pesadelos horríveis, fosse devido ao seu próprio carácter, ou ao sentimento de culpa pelas atrocidades que cometia. Este sentimento de culpa era resolvido com uma prática religiosa rígida e a justificação de que era Deus que castigava pela sua mão.
“Quando falamos ao Rei daqueles que matou com a sua própria mão ou que ele mandou matar, evita-se dizer: aqueles que Sua Majestade fez morrer, mas aqueles que Deus fez morrer.” (CASTRIES, 1903, p. 21)
O sultão apresentava traços psicológicos inquietantes, como denotou o Padre Busnot, quando escreveu que “notamos a paixão que o agita na cor das suas roupas. O verde é a sua cor querida; o branco é de bom auguro para os que se aproximam dele. Quando se veste de amarelo, toda a gente treme e evita a sua presença; já que é a cor que veste nos dias das suas sangrentas execuções”. (BUSNOT, [1714] 2017, p. 64)
O Padre Nolasque Néant, que visitou três vezes Meknés para libertar cativos com o Padre Busnot, também refere esta particularidade de Mulai Ismail:
“O seu turbante era de diferentes cores, tal como a sua roupagem sem mangas; mas se a cor amarela domina, normalmente é mau presságio: quando se veste de amarelo, é um sinal que está em cólera, e ninguém ousa permanecer então diante dele, e ele usa-a também para avisar que é melhor retirarem-se ou fugirem de preferência”. (NÉANT, 1724, p. 218)
Busnot afirma que o sultão tinha ataques de fúria frequentes, em que a sua pele escurecia e os olhos ficavam vermelhos, e descreve assim Mulai Ismail aos 80 anos de idade:
“A sua altura é média, a sua cara um pouco longa e magra, a sua barba bifurcada e toda branca, a sua pele quase negra com uma mancha branca próximo do nariz, os seus olhos cheios de fogo e a sua voz forte.” (BUSNOT, [1714] 2017, p. 63)
An Arab Sage por Rudolph Ernst
Dois factos demonstram bem o caracter do sultão e a sua desconfiança em relação ao seu próprio povo _ ter criado forças de combate constituídas por tropas estrangeiras, que lhe eram incondicionalmente leais, e ter colocado a sua capital em Meknés, numa localização geográfica central e tirando partido do facto de que essa decisão agradaria aos seus habitantes, e não nas capitais tradicionais do país, Fez ou Marraquexe, onde a sua base de apoio seria duvidosa. Aliás, é sintomático que Mulai Ismail, ao tomar o poder, tenha mandado arrasar as principais obras deixadas pelos sultões que o precederam, como que apagando o passado e a história antes de si.
Mulai Ismail criou uma força militar fenomenal, os Abid Al-Bukhari, constituída por escravos negros oriundos principalmente da Guiné, que serviam na sua guarda pessoal, nas suas tropas de elite e na vigilância aos escravos. Eram extremamente bem treinados e disciplinados, corpulentos, e particularmente cruéis. O seu treino começava em tenra idade e eram inclusivamente maltratados para endurecer o seu carácter.
O seu número chegou a atingir os 150.000 homens, 25.000 dos quais estavam estacionados em Meknés, 70.000 na Casbah de Mehalla, a Sueste de Salé, próximo de Mechra Ar-Remla (junto da actual Sidi Slimane) e os restantes nas outras Casbahs de fronteira do Reino. Mehalla era uma espécie de viveiro, onde o sultão todos os anos ia buscar os rapazes e raparigas que atingiam a puberdade, e os trazia para Meknés, onde iniciavam a sua educação, fosse militar, para os rapazes, fosse nas tarefas do palácio, para as raparigas. As mais bonitas eram colocadas no harém.
O Erg Chebi
Segundo Henri Terrasse, a ideia de utilizar os escravos negros como soldados era próprio dum chefe de oásis, “habituado a ter negros como guardas e confidentes. Desconfiado da hostilidade dos berberes, os mais activos, desapontado pelos “guich” (tribos armadas) árabes, constituiu um exército permanente de negros. Os escravos negros ou mestiços foram apanhados ou comprados nas cidades ou nas tribos. Mulai Ismail comprou também raparigas negras e mulatas. Quando em 1678, aquando de uma expedição a Bani, casou-se com uma mulher Mghafra, trouxe com ele dessa região 2.000 “haratin”. Todos esses negros e mestiços, de origens diversas, foram fundidos num só corpo.” (TERRASSE, [1847] 2016, p. 256)
O sultão fazia-se acompanhar permanentemente por 20 ou 30 escravos negros da sua guarda pessoal, escolhidos entre os Abid Al-Bukhari. Tinham entre 12 e 15 anos e as suas mães faziam parte do harém, o que dava a Mulai Ismail a garantia de que podia confiar neles sem reservas.
O exército dos Abid era extremamente eficiente na repressão aos berberes e árabes, como foi a incursão que fizeram na Duquela, onde massacraram 16.000 árabes com apenas 1.400 baixas, as 12.000 cabeças cortadas aos Ait Yafelman do Alto Atlas ou as outras 12.000 cortadas aos Guerrouane do Médio Atlas.
A Casbah Oudaia em Rabat
O corso era a grande fonte de abastecimento de escravos europeus e Salé a sua principal base, onde se concentravam milhares de mouriscos e renegados que constituíam o grosso das tripulações dos xavecos, embarcações preferidas pelos corsários de Marrocos. Á data da tomada do poder por Mulai Ismail, Salé já tinha perdido a sua autonomia política, já que a República Corsária do Bouregreg que vigorara entre 1627 e 1668 já se encontrava dissolvida e o governo das cidades de Rabat e Salé já estava centralizado em Meknés.
Apenas para dar uma ideia da importância que o corso tinha na economia de Marrocos, refira-se que se estima que só o corso de Salé empregava nas tripulações da sua armada cerca de 4.000 homens, ou seja, 20% do total da população da cidade, e que o volume de bens apresados e número de cativos fosse enorme. Só entre 1618 e 1624 terão feito 6.000 cativos, atacado mais de 1.000 navios e pilhado 15 milhões de libras de mercadorias num total equivalente a cerca de três mil milhões de euros em moeda actual. (DUMPER, 2007, p. 306)
Mas o corso não era apenas uma actividade económica, mas também a guerra à cristandade transportada para o mar, em que os mouriscos expulsos da Península, sedentos de vingança, procuravam infligir na navegação europeia o máximo de danos e faziam razias em terra, semear o terror nas costas do Sul da Europa.
A Casbah Oudaia em Rabat
As abordagens dos navios corsários eram cautelosas para não causar feridos, fosse nas suas tripulações, fosse na própria mercadoria que queriam aprisionar. Para isso procuravam uma aproximação astuta, içando bandeiras dos países das suas presas, e a rendição dos navios que atacavam, através de uma encenação que passava por gritos e pela própria imagem que davam de si, vestidos de branco, com capas vermelhas, cabeças rapadas e grandes cimitarras. Na abordagem tentavam acalmar as suas vítimas com frases em Língua Franca, como por exemplo non paura! non paura! ou não tenham medo.
“Nas horas de tensão que precediam um ataque, era comum sacrificar um carneiro oferecido pelo morabito. Era uma operação sangrenta, mas solene. Segundo Joseph Pitts, um cativo inglês que foi testemunha dum destes sacrifícios, o capitão começava por decapitar o animal. De seguida, a tripulação ‘retirava imediatamente as entranhas e atirava-as com a cabeça borda fora’. Depois de decepar as patas e o estômago, ‘o corpo era cortado em dois’. Uma parte era atirada para o lado direito do barco, e a outra para o lado esquerdo. Isto era feito, escreveu Pitts, ‘como uma espécie de sacrifício propiciatório”. (MILTON, 2006, p. 68)
Salé vista da Casbah Oudaia
A chegada dos cativos às cidades era um acontecimento terrível, já que os obrigavam a desfilar pelas ruas, sujeitos aos insultos e agressões da populaça. O prisioneiro inglês John Elliot refe que quando chegou com os seus companheiros a Salé foram rodeados por “várias centenas de malandros e patifes” que os empurraram com “gritos horríveis e bárbaros” e os “perseguiram como um rebanho de carneiros pelas ruas”. (MILTON, 2006, p. 75)
Os escravos eram sujeitos a maus tratos, como torturas e espancamentos, e transportavam permanentemente correntes e barras de ferro extremamente pesadas para evitar a sua fuga. Segundo Milton, um escravo inglês testemunhou que fabricou grilhetas que pesavam 50 libras (22,50 Kg.) (MILTON, 2006, p. 75).
Busnot diz em relação aos maus tratos que sofriam os escravos que “é bastante comum ver empalados, queimados vivos e outros pendurados pelos pés sobre a boca dos fornos de cal”. (BUSNOT, [1714] 2017, p. 114-115)
Não se pense que os escravos cristãos eram o alvo preferencial do sultão, já que as torturas infligidas aos muçulmanos considerados traidores eram muito piores, como gente desmembrada por cavalos ou serrada ao meio. (PELLOW, 1890, p. 64-65)
As Masmorras de Tetuan. foto Mhammad Benaboud
Os homens eram encarcerados em masmorras, prisões subterrâneas com condições piores possíveis, como refere Giles Milton:
“Pálidos, enfraquecidos pela fome e a disenteria após passarem meses em células subterrâneas, estes sobreviventes em farrapos eram a incarnação do sofrimento. Segundo Robert Adams, cujo testemunho é um dos poucos que nos chegou, eram forçados a viver numa quase obscuridade, na sua própria sujidade e excrementos. A comida era abominável – ‘um pouco de pão seco e água’ – e os seus aposentos ‘uma cela subterrânea, onde cento e cinquenta a duzentos de nós estávamos deitados todos juntos, sem o conforto da luz, apenas a de uma minúscula abertura’. O próprio Adams estava num estado lastimável. Os seus cabelos e as suas roupas estavam ‘infestados de parasitas’ – piolhos e pulgas – ‘e, não tendo autorização para os retirar (…) fui quase devorado”. (MILTON, 2006, p. 34)
Germain Mouette passou pela masmorra de Salé, considerada a pior de todas as de Marrocos, e descreve-a desta forma:
“Neste lugar, os cristãos, na sua maioria, não se podem mesmo estender no solo como nas outras prisões (…) porque tem água até à altura dos joelhos durantes seis meses no ano. Para evitar ficarem encharcados, fabricam uma espécie de redes, ou camas de cordas, suspensas por grandes pregos umas sobre as outras, de modo que os que ficam mais abaixo tenham as costas ao nível da água. Muitas vezes as redes superiores caíam e os seus ocupantes e os que estavam por baixo caíam na água e aí ficavam até ao fim da noite”. (MOUETTE, 1683, p. 116-118)
A masmorra da Casbah de Boulaouane
Antes da nacionalização da escravatura por Mulai Ismail, Salé era o grande centro de venda de escravos. A cidade tinha dois mercados de escravos, um do lado de Salé e outro do lado de Rabat.
Com a publicação do Dahir (Decreto Real) de 1682, todos os escravos passavam a ser propriedade do Makhzen (Estado), “não sendo mais vendidos nos mercados como escravos e não sendo mais assim designados; passam a chamar-se cativos e prisioneiros de guerra ou El-Ansara e não escravos”. (MAZIANE, 2002, p. 5)
A publicação deste decreto teve também como consequência que o resgate dos cativos se começou a processar através de negociações Estado a Estado, incluindo trocas de prisioneiros, pagamentos e indeminizações por mercadorias aprisionadas, as ordens religiosas cristãs passaram a ser autorizadas a prestar apoio aos prisioneiros nas prisões e cada nação passou a ter o seu espaço definido, que geria à sua maneira. Esta medida inseria-se na política de grandes construções levada a cabo por Mulai Ismail.
Os Estábulos de Mulai Ismail
Para os escravos em si, esta mudança trouxe-lhes uma substancial melhoria, já que passaram a ficar concentrados em Meknés e, em vez de serem encerrados na masmorra subterrânea, a Habs Qara, foi criado em 1695 um bairro de escravos, o Canut ou Canot onde os cativos eram dispostos em vários sectores, um para cada nacionalidade. O termo Canut teria como significado pequenas casas ou celas.
O Padre Nolasque Néant descreve assim o Canot:
“Durantes todas estas negociações fomos várias vezes visitar os Escravos Franceses doentes, no lugar onde os Escravos Cristãos se retiram todas as noites quando o seu trabalho acaba. Esse lugar, que eles chamam o “Canot”, era antigamente a Judiaria (…) Cada Nação tem o seu bairro à parte, e no meio há uma pequena Capela (…) Encontrámos aí dois Religiosos Beneditinos Portugueses, que tinham sido feitos escravos quando regressavam do Brasil, e que tinham a liberdade de dizer a Missa todos os dias, e de fazer todas as suas funções, como se estivessem no seu Convento. É preciso dizer que este Príncipe, bárbaro como é, tem esta consideração pelos Padres e os Religiosos Escravos, que deixa viver tranquilamente sem os obrigar a trabalhar, e com a autorização de usar os seus hábitos, e de exercer as funções dos seus ministérios.” (NÉANT, 1724, p. 99-100)
Vista aérea da Medina de Meknés
Para além disso, cada Nação tinha a sua enfermaria e seus enfermeiros, excepto os espanhóis que tratavam os seus doentes no Convento dos Franciscanos que existia na cidade.
No Canot os escravos adquiriram direitos que não tinham até então. Um dos direitos era poder fabricar o seu próprio vinho, que se revelou um factor de melhoria da sua saúde e robustez.
Germain Mouette refere que certo dia Mulai Ismail achou que os escravos não trabalhavam como deviam, ao que o Alcaide Zidan lhe explicou que os cristãos estão habituados a beber vinho e aguardente e como presentemente só bebiam água, isso tornava-os cobardes e incapazes de trabalhar a sério e que se lhes desse três ou quatro copos de vinho eles trabalhariam de outra forma. O sultão mandou chamar o Cheikh dos Judeus para fornecer vinho aos escravos. O resultado foi surpreendente e Mulai Ismail ordenou que a partir daí os judeus fornecessem aos escravos vinho e uvas e figos para estes fazerem a sua própria aguardente. (MOUETTE, 1683, p. 68-69)
Interior da Habs Qara
Néant acrescenta outro aspecto surpreendente do carácter de Mulai Ismail:
“Este Príncipe tem ainda a mesma consideração pelos escravos casados que têm as suas mulheres consigo; a razão é, que um homem que tem família tem bastantes constrangimentos para procurar de que a alimentar, sem o obrigar a ter um trabalho que o impeça de ter esse cuidado.” (NÉANT, 1724, p. 100)
Uma personagem famosa entre os cativos era uma escrava portuguesa que fora aprisionada quando viajava de Portugal para a Madeira para se tornar religiosa. Foi torturada e acabou por se tornar concubina de Mulai Ismail, mas nunca renegou a fé cristã, pelo que continuou a ser torturada regularmente para se converter ao islão. Por fim Mulai Ismail deu-a a um espanhol chamado José Diaz, que era Mestre da Pólvora, que se casou com ela. Quando José Diaz a recebeu, estava coberta de sangue e de feridas. Conta Néant que “falámos várias vezes com esta escrava casada, que era tida como Santa entre os Escravos Cristãos Católicos, e mesmo pelos Padres Espanhóis do Convento de Meknés, tanto pela sua constância na Fé, como pela vida Cristã que levava desde a escravatura”. (NÉANT, 1724, p. 188)
Mas o “Canot” não era propriamente o paraíso na terra, assemelhando-se a um campo de concentração. De forma quadrada, rodeado por uma muralha com quatro torres de vigia nos cantos e um sólido portão permanentemente fechado à chave. No interior existiam quatro grandes edifícios, tipo casernas, onde os prisioneiros eram agrupados por nacionalidades. As condições de higiene eram as piores, o local estava infestado de pulgas e piolhos e a alimentação era pão seco e azeite. Com sorte conseguiam obter dos renegados europeus alguma gordura animal rançosa ou raízes de plantas para fazer um prato quente. (MILTON, 2006, p. 101)
O Canot era abastecido regularmente de prisioneiros. As conquistas das Praças espanholas da Mamora e Larache trouxeram grande número de cativos, mas as doenças dizimavam-nos também com grande rapidez.
Mulai Ismail parte para a guerra
Entre este conjunto extremamente dispare de pessoas, sobretudo daquelas que se encontravam em trânsito, se assim lhes podemos chamar, fossem corsários, fossem cativos das galés ou das masmorras, fossem ainda comerciantes, desenvolve-se uma linguagem mestiça, chamada Língua Franca, que Jocelyne Dakhlia refere na sua obra Lingua Franca. Histoire d’une langue métisse en Méditerranée.
A Língua Franca era composta maioritariamente por termos italianos, castelhanos, portugueses e franceses, cerca de 80%, termos árabes e turcos, cerca de 15% e alguns termos de outras línguas como por exemplo o grego, numa percentagem de 5%. Morfologicamente era uma língua sem regras gramaticais, utilizando apenas os pronomes na primeira pessoa do singular e os verbos no infinito.
Dakhlia refere que esta linguagem não só permitia um entendimento entre comunidades tão diversas, sendo inclusivamente falada pelos corsários ingleses e holandeses, mas sobretudo constituía uma forma de expressão em momentos de grande conflito e sofrimento, conferindo ao relacionamento entre os seus intervenientes uma extrema frieza e distância. Esta “no man’s langue”, como lhe chama, tinha também como origem o facto de os muçulmanos não aceitarem que os cativos falassem as línguas europeias normais, que não compreendiam, mas também não aceitavam que falassem a língua árabe, a sua língua sagrada.
Mulai Ismail utilizava a Língua Franca no seu relacionamento com os escravos. Quando se encontrava de bom humor e visitava alguns deles era comum ouvi-lo dizer bono! bono!
O Pavilhão dos Embaixadores, junto à entrada para a Habs Qara
O número de cativos em Meknés nunca ultrapassou os 3.000, excepto em situações excepcionais, como foram as conquistas da Mamora e Larache aos espanhóis por Mulai Ismail. Para além disso, a grande maioria tornava-se elches ou renegados, pelo que os cristãos andariam numa média de 1.200. Eram maioritariamente espanhóis, portugueses e franceses, sendo que a média dos portugueses se situava nos 25% do total. (MAZIANE, 2002, p. 2-3)
O resgate de cativos podia seguir diversos procedimentos, dependendo sobretudo dos bens de que dispunham. Os mais ricos compravam a sua libertação mediante um resgate pago, geralmente através dos canais diplomáticos. Havia também uma situação frequente, que era a do resgate colectivo, fosse por troca de prisioneiros, fosse por pagamento de contrapartidas, em dinheiro, meios navais ou armas. “Em 1693, Portugal efectua o resgate dos seus 130 cativos em Meknés por troca contra 60 prisioneiros marroquinos”. (MAZIANE, 2002, p. 8)
Depois havia a situação da grande maioria dos cativos, sem meios para pagar o resgate, que podiam obter a sua libertação através do trabalho ou beneficiar de um perdão. Estes processos de resgate eram realizados em missões de redenção, geralmente da responsabilidade de ordens religiosas, os chamados redentoristas, com a intervenção de intermediários, quase sempre judeus, que cobravam somas astronómicas como comissões, que podiam atingir os 40% do valor do resgate. (MAZIANE, 2002, p. 8)
Mercado de escravas brancas. pintura de Domenico Ross, 1884
A entidade religiosa que em Portugal promovia o resgate de cativos era a Ordem da Santíssima Trindade, que beneficiava para tal de importantes doações régias, tendo sido criados o cargo de Provedor de Cativos e a Arca da Rendição de Cativos, responsáveis por arrecadar as rendas necessárias para os resgates. (ALBERTO, 2010, p. 66-67 e 75)
Os resgates das mulheres atingiam preços exorbitantes. Um comerciante inglês de nome Edmund Cason foi enviado a Argel para resgatar mulheres e “pagou 800 libras por Sarah Ripley, de Londres, 1.100 por Alice Hayes de Edimburgo, e a soma exorbitante de 1.392 libras por Mary Bruster, de Youthgal, mais de 36 vezes o preço médio” (MILTON, 2006, p. 41). O próprio Milton esclarece que na época o salário anual médio de um lojista em Londres era de 10 libras! Se esse salário anual fosse hoje apenas de 12.000 euros (que não será), então o resgate de Mary Bruster terá tido o valor aproximado de 1.500.000 euros! Por aqui se vê como os lucros da escravatura eram incomparavelmente superiores aos das mercadorias, no quadro da guerra do corso.
O final do século XVII é marcado por inúmeras tentativas de fuga da Habs Qara, a maioria das quais falhadas, como relata Ahmed Farouk, com base nos testemunhos do Padre Dominique Busnot, já que essas fugas eram extremamente raras e difíceis de concretizar, sendo a grande maioria dos fugitivos capturados antes de conseguirem um transporte por barco para a Europa. A solução mais viável era conseguir chegar às Praças-fortes nas mãos de portugueses ou espanhóis. Basicamente haviam duas alternativas, ou seja, tentar chegar a Mazagão fazendo o trajecto Meknés-Rabat e depois seguir por caminhos secundários ao longo da costa, ou tentar chegar a Melilla ou Al Hoceima atravessando as montanhas do Rif. Ceuta e Tânger não eram alternativas viáveis, pelo facto de os trajectos serem demasiado perigosos.
O campo na Duquela
As fugas davam-se sobretudo nas meias estações, fugindo ao frio, mas sobretudo ao calor e à necessidade de água que provocava. Aliás era junto aos locais onde a água existia que os perigos eram maiores, não só pelas pessoas que aí afluíam, como pelos muitos leões que nessa altura se encontravam nos campos de Marrocos. Para além disso, “os fugitivos deviam redobrar a atenção porque os informadores estavam de vigia em todos os caminhos que ligavam Meknés às regiões costeiras”. (FAROUK, 2013, p. 4-5)
As fugas faziam-se de forma individual ou em pequenos grupos, com ou sem utilização de guias. Os guias, conhecidos pelo nome de métadores, tinham a grande vantagem de conhecerem o terreno e subornarem guardas e vigias. Mas tinham também a desvantagem de poderem fazer jogo duplo ou denunciarem os fugitivos ao menor sinal de perigo. O sultão punia de forma exemplar os métadores, como forma de desencorajar a sua actividade.
“Este termo é uma deformação do espanhol “metedor”, que significa “contrabandista” (no sentido de aquele que “metia” ou “introduzia” alguma coisa); a “metedoria” era a introdução de mercadorias de contrabando. No caso concreto, o que se “introduzia” em Espanha, era mercadoria humana”. (FAROUK, 2013, p. 7)
O Palácio de Khenifra. Foto de Bernard Rouget
O Sultão tinha quatro mulheres legais (ao mesmo tempo, já que a sua longevidade teve como resultado que várias delas morreram durante a sua vida, sendo substituídas por outras, pelo que no total foi casado com oito mulheres), e centenas de concubinas, em número de 4.000, das quais terá tido 1.200 filhos, segundo o relato de Thomas Pellow, um cativo inglês que passou 23 anos em Marrocos.
Cada vez que nascia um filho, Mulai Ismail encarregava os judeus de cobrar um imposto especial para lhe comprar “presentes apropriados. O registo desse imposto sugere que o sultão teve pelo menos mil e duzentas crianças durante o seu longo reinado” (MILTON, 2006, p. 123). Busnot chama aos seus filhos “pequenos tiranos”, que roubavam tudo o que podiam e se portavam como verdadeiros déspotas. (BUSNOT, [1714] 2017, p. 78)
O Padre Busnot refere que as concubinas seriam pelo menos 500 “de todas as nações” (BUSNOT, [1714] 2017, p. 73). Outros relatos falam de 868 filhos, dos quais 525 rapazes e 343 raparigas, mas o Guiness Book, no qual o sultão figura como recordista da procriação, refere que Mulai Ismail teve 1.042 filhos. Castries refere que “encheu o seu harém de duas mil mulheres das quais teve setecentos filhos e um número de filhas que nunca pode ser avaliado com precisão.” (CASTRIES, 1903, p. 24)
Um coche em Meknés
As concubinas estavam sempre fechadas nos seus aposentos e aborreciam-se. Algumas convenciam os eunucos a comprar vinho aos escravos cristãos, outras recebiam inclusivamente visitas de homens. O Padre Busnot conta que, quando esteve em Meknés, testemunhou que Mulai Ismail arrancou os dentes a quatorze concubinas por terem visitas em segredo. (BUSNOT, [1714] 2017, p. 76)
As concubinas do sultão e os eunucos do harém puxavam o seu coche pela cidade, numa demonstração de submissão que o sultão fazia questão de apresentar.
Maria Ter Meetelen, uma holandesa cativa em Meknés durante 12 anos descreveu o Harem do Sultão. Na altura já era falecido Mulai Ismail e governava um dos seus sucessores:
“Encontrava-me em frente do sultão, no seu quarto, onde ele estava deitado com pelo menos cinquenta mulheres. Tinham o rosto maquilhado e estavam vestidas como deusas, extraordinariamente belas, cada uma com um instrumento de música. Tocavam e cantavam e nunca tinha ouvido uma melodia tão deliciosa”. (STONE, 2010, p. 63)
A Odalisca, por Mariano Fortuni
As suas mulheres foram Lalla Halima As-Soufianyia, El-Aziza ou a querida, que segundo Pellow era a preferida (PELLOW, 1890, p. 57); Lalla Khenata; Lalla Um Al-Iz At-Taba; Lalla Bilqis; uma mulher da tribo Al-Taligyia, cujo nome não se conhece; Lalla Alwa; uma irlandesa chamada Mrs. Shaw, conhecida como a inglesa, que o Padre Busnot diz ser uma mulher “afável, honesta e de boa vontade” que foi capturada com 15 anos e convertida através de tortura com azeite a ferver (BUSNOT, [1714] 2017, p. 76); e Lalla Aicha Moubarka, conhecida por Lalla Zidana, o terror do Harém, a quem os europeus chamavam a Imperatriz de Marrocos. Mrs. Shaw e Lalla Zidana tinham total liberdade de movimentos e frequentemente eram vistas juntas.
“A primeira esposa do sultão, Lalla Zidana, tinha sobre ele uma autoridade considerável e era especialista na arte de impor a sua vontade. Na opinião de todos, era uma verdadeira bruxa, ‘negra, e de uma altura e gordura enormes’, escreveu o Padre Busnot em 1714. Tinha olhos redondos e um ventre elefantesco, e tinha sido anteriormente escrava do irmão do sultão, que lha vendeu por 60 ducados. A razão pela qual Mulai Ismail pôde sentir-se atraído por ela era um mistério. Muitos na corte pensavam que era uma bruxa que mantinha o afecto do sultão por meio de magias e encantamentos. Governava o harém com mão de ferro e – como Mme. Pompadour em Versailles – assegurava que o seu amante tivesse sempre uma jovem virgem à sua disposição”. (MILTON, 2006, p. 151)
Alguns autores defendem que esse ascendente residia no facto de pertencer à tribo da mãe de Mulai Ismail e o sultão transportar para ela o seu complexo de édipo.
O “corredor da morte”, passagem estreita entre muralhas onde as tropas do sultão montavam ciladas aos seus inimigos
Os cativos eram convencidos à conversão ao Islão, conversão da qual tiravam inúmeros benefícios, já que deixavam de viver na prisão, passavam a ter um trabalho para o Makhzen, como militares se não tivessem outro ofício, mas normalmente segundo as suas antigas profissões, e podiam casar-se com várias mulheres.
Muitos cativos eram convencidos pela tortura, mas a grande maioria fazia a conversão de livre vontade, que era festejada efusivamente pelo sultão, com desfiles nas ruas de Meknés. “Eram tratados com grande pompa, desfilando na cidade a cavalo de uma forma triunfal, ao som de tambores e trompetas.” (MILTON, 2006, p. 91)
Para além dos renegados enquanto escravos convertidos, havia também muitos europeus que rumavam a Marrocos para se converterem e servirem o sultão, fossem aventureiros em busca de enriquecimento rápido, fossem pessoas condenadas nos seus países de origem.
A condição de renegado não significava ser livre, já que continuavam prisioneiros da tutela do Sultão. O seu número não era conhecido, dado não figurarem nas listagens de escravos e os governos europeus abandonavam-nos à sua sorte por terem renunciado à sua fé cristã, apesar de o fazerem para sobreviver.
A Casbah de Agourai, ocupada por renegados de Mulai Ismail
Um erro, já que estes homens contribuíram e muito para o fortalecimento do poder militar de Mulai Ismail:
“O cônsul francês Jean Baptiste Estelle referiu que as forças de Mulai Ismail contavam com quarenta mil mosqueteiros, em grande parte renegados”. Para além disso, o trabalho dos europeus na Daracana de Fez produzia “quatrocentos canhões por mês, muito belos e de grande qualidade”. (MILTON, 2006, p. 145)
O irlandês Carr, fundidor de profissão, ficou célebre pelos canhões que fabricava. Mulai Ismail ofereceu-lhe cinco mulheres, muitas riquezas, chegou a nomeá-lo Qaid e mesmo governador de uma das fronteiras com a Guiné. Outro foi um cirurgião espanhol de nome Laureano, que mudou o nome para Sidi Ahmed, que se tornou no físico particular do sultão e que nutria um ódio muito especial aos escravos cristãos. (BUSNOT, [1714] 2017, p. 48-49)
Refira-se aliás que muitas das grandes atrocidades cometidas contra os escravos europeus eram da responsabilidade dos renegados, fosse para mostrar trabalho, fosse por uma questão de contrariar o sentimento de culpa que tinham por terem traído os seus. (MILTON, 2006, p. 145-146)
Interior da Casbah de Mulai Ismail em Mehdia
Otmane Mansouri fala de um célebre renegado português anterior a Mulai Ismail:
“Numerosos soldados portugueses foram feitos prisioneiros durante as batalhas contra os exércitos reais portugueses. Tendo em conta o seu número, os portugueses apenas resgatavam os cativos mais nobres. Os que ficavam tornavam-se escravos. Entre esses soldados, havia homens que obtiveram responsabilidades graças às suas competências, que se converteram ao Islão. Um deles, Jaoudar Pacha, célebre oficial do exército Sádida, foi inclusivamente enviado para conquistar o império Songhai do Mali para explorar o ouro do Níger.” (MANSOURI, 2011, p. 33)
O sultão tirava o máximo partido dos conhecimentos dos renegados, principalmente para fins de construção naval ou construção de armas de artilharia.
A decisão de conversão ao Islão tinha como causa principal a incapacidade de os cativos comprarem a sua liberdade, mas muitos dos renegados eram fugitivos europeus condenados por crimes nos seus países de origem, que em Marrocos tinham a possibilidade de refazer as suas vidas. Para Marc-André Nolet, “os renegados tinham em comum dois elementos chave: eram todos europeus de origem, e cristãos. A sua conversão ao Islão podia, contudo, ser voluntária ou não, mas em todos os casos acabavam por trabalhar para as autoridades marroquinas. O desenraizamento social destes novos convertidos criava aliás uma nova individualidade”. (NOLET, 2008, p. 19)
Muitos renegados prestavam serviço numa das 76 Casbahs que o sultão mandou construir ou em lugares remotos, para esmagar revoltas, agrupados em batalhões comandados por outros renegados.
A Casbah de Boulaouane, uma das 76 construídas por Mulai Ismail
Tomas Pellow, após a sua conversão e casamento, foi colocado numa Casbah em Temsna, com 600 outros renegados, franceses, espanhóis, portugueses e italianos, e posteriormente, num grupo de 3.200 pessoas, homens e mulheres, na Casbah de Tanisna. (PELLOW, 1890, p. 80-81)
As Casbahs localizavam-se sobretudo nas fronteiras do Bled As-Siba, vigiando as tribos refugiadas no Rif, Médio Atlas e Alto Atlas, na confluência das principais vias de comunicação ou na periferia das cidades para acolher os Abid Al-Bukhari.
“O verdadeiro renegado era um pobre diabo que apenas ocupava empregos subalternos, que era enviado para todas as expedições perigosas e que, muito raramente, saboreava os prazeres sem luxo do repouso numa qualquer Casbah. Morrer num combate, tornar-se num desordeiro, arriscar a tortura para conseguir fugir, eram estas as suas hipóteses de futuro”. (TERRASSE, 1926, p. 191-192)
A Casbah de Agourai
A Casbah de Agourai encontra-se ligada a uma outra lenda envolvendo portugueses, que tem uma base real.
Reza a lenda que o sultão Mulai Ismail contava entre as suas 500 mulheres com uma mulher portuguesa que, ao passar pelo local com o Rei viu uma fonte e chamou-lhe água do rei, designação que deu origem ao topónimo Agourai, facto que é, no entanto, negado por diversos estudiosos marroquinos que defendem que o termo agourai é indubitavelmente um termo Amazigh. Nesse local Mulai Ismail teria mandado construir uma Kasbah, a pedido da sua mulher, para acolher cativos portugueses.
Não foi certamente assim, mas sabemos que Agourai era um centro de concentração de tropas de renegados europeus e suas famílias. O próprio Thomas Pellow prestou aí serviço durante alguns anos e foi de Agourai que executou a sua fuga falhada até Mazagão. (PELLOW, 1890, p. 154-159)
Agourai ou Água do Rei, o facto é que o local é identificado com a presença de famílias descendentes de cativos portugueses, que se terão estabelecido aí. Na revista Le Maroc en Mutation, referenciada na bibliografia, pode ler-se:
“Fundada pelo Sultão Moulay Ismail, a cidadela de Agourai assegurava funções múltiplas: (…) lugar de encarceramento de piratas (vários descendentes de portugueses, supostamente, vivem ainda a Agourai com um nome arabizado)”. (CHATTOU e GONIN, 2010, p. 43)
De entre esses nomes figura o de Ouled Bertkhiz, ou filhos dos portugueses. Esta história é relevante no sentido de se fazer uma referência aos muitos prováveis portugueses que se terão convertido e integrado na sociedade marroquina, fossem cativos, fossem desertores, fossem degredados enviados para obter informações.
Os palácios de Mulai Ismail
A construção da Cidade de Mulai Ismail foi precedida da demolição de muitas construções existentes, que permitiu disponibilizar terrenos livres na área central, onde foi ampliada a Casbah existente e construídos inúmeros edifícios e estruturas defensivas. A muralha que protegia a cidade imperial tinha 25 quilómetros de comprimento.
“Esta Casbah foi dotada de vinte portas abobadadas muito largas e bem elevadas, encimada cada uma por uma grande bateria armada de canhões de bronze de grande calibre e de morteiros de guerra de formas assustadoras, extremamente surpreendentes.” (ESSLÂOUI, 1906, p. 71)
Para além dos milhares de escravos e criminosos utilizados como mão de obra, as tribos de Marrocos foram obrigadas a fornecer homens e mulas.
O Agdal de Meknés
O primeiro palácio construído foi a Dar Kebira ou Casa Grande, um imenso edifício formado por pavilhões, pátios e jardins, inaugurado em 1677. Seguiu-se a Dar El Makhzen ou Casa do Estado, um projecto de 50 palácios cada qual dispondo da sua mesquita e banhos. Todo o conjunto era rodeado por três cinturas de muralhas, a última com merlões. Um pouco afastado deste complexo onde o sultão e o seu Harem residiam, foi projectada a Madinat Ar-Ryad ou Cidade Jardim, onde se alojavam os diplomatas, os seus subordinados e 30.000 elementos da sua Guarda Negra. De entre os edifícios salientava-se a Dar El-Mansour ou Casa do Vitorioso, pela sua impressionante altura de 50 metros. (MILTON, 2006, p. 109)
John Windus, um inglês que integrou uma missão diplomática a Meknés escreveu que os aposentos de Mulai Ismail e das suas mulheres ocupavam uma área de “cerca de sete quilómetros de circunferência”. Windus referiu também que só na construção dos palácios trabalhavam diariamente 30.000 escravos europeus e 10.000 mulas. (MILTON, 2006, p. 186)
Os Celeiros de Mulai Ismail ou Heri Souani
Para além dos palácios, os edifícios construídos por Mulai Ismail foram extremamente utilitários, concebidos para satisfazer as necessidades da cidade de Meknés. Destaca-se um impressionante complexo de Celeiros, o Heri Souani, e as Cavalariças. Os Celeiros são extremamente bem construídos do ponto de vista térmico, já que a sua temperatura interior não ultrapassa os 14 graus, independentemente da temperatura exterior. Disso sou testemunha, já que os visitei num dia em que estavam 46 graus em Meknés.
“No interior, ele fez construir um imenso reservatório de água, no qual podiam circular canoas e embarcações de recreio. Ordenou igualmente a construção na Casbah dum celeiro (heri) para armazenar trigo e outros cereais, cujoas coberturas eram abobadadas, e que podia conter os cereais de todos os habitantes de Marrocos (…) Na Casbah foi igualmente construído um vasto estábulo (istabl) para os seus cavalos e suas mulas (…) No estábulo podiam-se abrigar, diz-se, 12.000 cavalos.” (ESSLÂOUI, 1906, p. 72)
“Mulai Ismail era o principal arquitecto, engenheiro e assessor do estaleiro. Chegava todas as manhãs muito antes da aurora, e dava as suas instruções para o trabalho do dia, deleitando-se ao ver os vigilantes bater nos escravos para os incitar a trabalhar mais”. (MILTON, 2006, p. 109)
O seu mau génio era descarregado sobre os operários quando achava que qualquer coisa não estava a seu gosto, como quando partiu cinquenta tijolos na cabeça do mestre que os fabricou, ou quando achou que determinada carrada de cal estava mal cozida, mandou aplicar duzentas bastonadas na mão do seu fabricante. (CASTRIES, 1903, p. 30)
Pellow conta que uma vez o Imperador, como chamava a Mulai Ismail, passou por uma alta parede no topo da qual estavam vários escravos a trabalhar. Achou que o trabalho estava mal feito e mandou atirá-los do cimo da parede para o chão, “partindo-lhes os braços e pernas, batendo-lhes na cabeça de forma miserável.” (PELLOW, 1890, p. 63)
Os Estábulos de Mulai Ismail ou Istabl
Apesar da grandiosidade da Cidade Imperial de Mulai Ismail, Meknés não deixa de ter a marca de um ditador que concentrava em si todas as decisões, como se fosse conhecedor de todas as ciências.
A mediocridade urbanística e arquitectónica da Cidade Imperial é apontada por críticos como Henri Terrasse, que escreveu:
“Mas este conjunto, prodigioso pela sua massa, é de uma rara pobreza arquitectónica. As muralhas, feita dum betão pobre em cal, não valem que pela sua espessura, as abóbadas eram muitas vezes pesadas a desajeitadamente posicionadas (…) A decoração, onde subsiste, é tão má como a construção. Os artesãos ao serviço do soberano, empurrados pela sua febril impaciência e megalomania, tinham hábitos de negligente mediocridade que aceleraram a decadência da arte hispano-mourisca em Marrocos. Mulai Ismail, que nunca compreendeu que uma obra de arte exige tempo e escolha, não merece ser contado no número de benfeitores da arte muçulmana de Marrocos.” (TERRASSE, [1847] 2016, p. 268-269)
Castries não é mais simpático quando se refere às obras do sultão em Meknés, dizendo que ele realizou “esse grande conjunto de edifícios mal articulados uns aos outros e que formam a Casbah de Meknés”. (CASTRIES, 1903, p. 29)
Devo confessar que a Casbah de Meknés, na minha opinião, não é de facto nenhuma maravilha em termos de composição urbanística.
As ruínas de Volubilis, junto a Mulai Idriss
Muito do material utilizado nas construções provinham das ruínas romanas de Volubilis, a cerca de 30 quilómetros de Meknés, que foram pilhadas dos seus elementos mais nobres. (CASTRIES, 1903, p. 31)
Meknés encontra-se inscrita na lista do Património Mundial da UNESCO. Nos documentos da organização, podemos ler que Mulai Ismail “construiu uma impressionante cidade de estilo hispano-mourisco, rodeando-a de altas muralhas, marcadas por portas monumentais, que mostram ainda hoje a harmoniosa fusão do estilo arquitectónico islâmico com o europeu no Magrebe do século XVII (…) É a presença nos nossos dias desta cidade histórica contendo vestígios raros e monumentos importantes no meio dum espaço urbano em plena mutação, que confere a este património o seu valor universal”.
Pátio da Zaouia de Moulay Idriss no Zerhoun
Não obstante, a cidade foi arrasada por um violento terramoto no dia 27 de Novembro de 1755, que ficou conhecido pelo nome de Terramoto de Meknassa-Azaytouna.
“Sobre Meknés, o grande historiador marroquino En Nasiri escreveu no Kitab El Istiqsa: Em 1169 da Hégira (1755) ocorreu o grande tremor de terra em Marrocos que destruiu quase completamente Meknés e Zerhoun e fez um número incalculável de mortos. Só entre os escravos, morreram cerca de 5.000 pessoas”. (CHERKAOUI, 1987, p. 66)
O terramoto terá arrasado as abóbadas dos Estábulos, grande parte dos palácios e da Habs Qara.
Um dos autores que descreve o desastre do Zerhoun, a destruição causada numa aldeia situada a oito léguas de Meknés, foi Francisco Luís Pereira de Sousa citado por João Barros Fonseca:
“Tragou uma aldeia, com todas as suas choças, gentes, cavalos, camelos, mulas, vacas e mais gado, cinco mil pessoas e seis mil soldados de cavalo, que estavam aquartelados, sem que de uns nem outros escapasse algum”. Há também notícia de deslizamentos de terras na cordilheira do Atlas. (FONSECA, 2004, p. 59)
A Habs Qara
Num folheto do Office National Marocain du Tourisme encontra-se a seguinte referência em relação à Prisão Cara:
“A prisão Qara: Imóvel subterrâneo provavelmente concebido e utilizado como espaço de armazenamento de cereais. Uma lenda persistente apresenta-o como uma prisão gigantesca. Teria sido realizada por um cativo português ao qual Mulai Ismail teria prometido a liberdade se ele conseguisse construir uma masmorra contendo 40.000 pessoas. Tem acesso através de uma escada de degraus irregulares que descem até ao subsolo. Um vasto espaço abobadado é fracamente iluminado por aberturas no tecto. Os subterrâneos originais atingiam sete quilómetros de comprimento”.
Esta descrição é repetida em inúmeros sites na internet, onde alguns pormenores são acrescentados: Cara era um arquitecto, a prisão tinha capacidade para 40.000 cristãos e 20.000 muçulmanos e o arquitecto acabou por morrer nela, já que Mulai Ismail nunca o libertou.
Visitar o local é sempre diferente e esclarece muitas coisas. Na minha visita à masmorra conheci o seu guarda, um senhor chamado Mohamed Daoui, que esclareceu que a mesma tem dois níveis, encontrando-se o nível inferior encerrado, bem como a maior parte dos túneis, muitos arruinados com o Terramoto de Meknassa-Azaytouna de 1755 e ocupa uma área de cerca de 50 quilómetros quadrados, com uma extensão de 7 quilómetros em cada sentido.
Mohamed Daoui no suposto local onde Cara se encontrava acorrentado, explicando a posição em que era colocado, com grilhetas nos pulsos, presas ao pilar, no arranque dos arcos
Sobre Cara, Daoui conta que era um arquitecto, espião do Rei de Portugal, feito prisioneiro, que construiu a prisão e foi no final libertado. Assegura que o local onde se encontra na foto era o local exacto que Cara ocupava e, como os prisioneiros eram agrupados de acordo com a sua altura, e nesta secção todos tinham 1,65 metros, essa era a altura do nosso arquitecto. Daoui acrescenta que entre as mãos de cada prisioneiro era colocada uma tira de coro que descrevia o seu crime e a pena que cumpria.
Segundo ele, Cara tornou-se no arquitecto de serviço de Mulai Ismail e foi também autor dos Celeiros e dos Estábulos do sultão.
Interrogado sobre como tivera acesso a essa informação, respondeu que o guarda que trabalhava no local antes dele lhe contou e que ele haveria de contar ao guarda que se seguirá.
O mito é evidente e de facto não existe qualquer fonte credível que confirme a história da existência do nosso arquitecto Cara. Mas lendas são lendas, mitos são mitos, e com o tempo tendem a fazer parte do imaginário colectivo e tornam-se numa espécie de realidades virtuais.
A teoria da prisão para 60.000 cativos é de facto fantasiosa, já que, como vimos, não existem registos da existência de tal quantidade de prisioneiros em Meknés, nem uma estrutura dessa dimensão funcionaria em termos práticos.
A Bab El Mansour, porta construída pelo renegado Mansour Laalaj. Foto de Bernard Rouget
Mas tudo indica que foi uma masmorra, mesmo que confinada à zona actualmente visitável, e a sua existência enquanto prisão termina no ano de 1695, precisamente o da transferência dos cativos para o Canot.
Leila Maziane confirma esse facto referindo que “o bairro onde a população cativa foi inicialmente alojada, parece ter sido no interior dos muros do palácio de Mulai Ismail, perto da porta principal. Compunha-se de várias salas rectangulares com abóbadas altas onde os cativos eram livres de se organizarem como pudessem.” (MAZIANE, 2002, p. 5)
Busnot também descreve a Habs Qara, sem lhe dar qualquer nome, referindo que os prisioneiros eram encarcerados “numa prisão ou masmorra com abóbadas, apoiadas em pilares, com várias divisões, onde o dia não entrava que por pequenas aberturas colocadas no topo das abóbadas e formadas por grelhas de ferro, no meio da qual passava uma corrente de água para as suas necessidades.” (BUSNOT, [1714] 2017, p. 113)
Habs Qara
Quando o cativo inglês Thomas Pellow chega a Meknés em 1716 a Habs Qara chamava-se então Kubbat Al-Khayyatin ou As Cúpulas dos Alfaiates, nome também dado ao Pavilhão dos Embaixadores, que se situa por cima. A dimensão da área utilizada era semelhante à que hoje existe, a fazer crer na transcrição que Giles Milton faz de um texto da época, que descreve a chegada do inglês a Meknés:
“Pellow e os seus seis companheiros foram levados pelos guardas negros. Depois de atravessarem o pátio, chegaram a uma grande porta que se abria para uma passagem subterrânea, que levava a um armazém chamado “Kubbat Al-Khayyatin”, um labirinto subterrâneo onde ‘os alfaiates trabalham e onde se guardam as armas’. Construído com uma escala impressionante, continha material militar suficiente para equipar o exército permanente do sultão, estimado em cento e cinquenta mil homens. Um visitante inglês escreveria mais tarde que tinha ‘de comprimento quase quatrocentos metros’ e cheio ‘de grandes quantidades de armas e de caixas”. (MILTON, 2006, p. 88)
Mas segundo Terrasse, Thomas Pellow, ao chegar a Meknés, foi “encarcerado numa cave durante dois meses e espancado com um pau quase diariamente”. (TERRASSE, 1926, p. 177)
Giles Milton diz que as zonas mais profundas ada Kubbat Al-Khayyatin foram encerradas nos anos 1950 quando um casal de turistas franceses que desceram ao labirinto desapareceram. (MILTON, 2006, p. 279)
Um aspecto curioso é o de que, tanto os palácios de Mulai Ismail, como a Prisão Cara serem descritos como ocupando uma circunferência de sete quilómetros, seja cerca de 40 a 50 quilómetros quadrados, fazendo supor que constituíam dois níveis de uma mesma área (mera especulação).
O Borj Nord de Fez, fortificação construída “à portuguesa”, muito provavelmente com projecto e trabalho português
Os renegados portugueses tiveram um estatuto especial, possivelmente porque a sua esmagadora maioria se insere na sociedade marroquina antes de Mulai Ismail, durante a Dinastia Sádida, muito mais tolerante e inteligente. Só no seguimento da Batalha de Alcácer Quibir foram aprisionados 16.000, da qual a esmagadora maioria se integrou na sociedade marroquina, onde muitos acabaram por ocupar lugares de relevo, fosse no exército, fosse em profissões especializadas, fosse no próprio aparelho de Estado.
Nolet atribui uma importância capital aos renegados portugueses convertidos após a Batalha de Alcácer Quibir, afirmando que foram utilizados pelo Sultão Ahmed El Mansour na construção do Estado marroquino moderno e na própria garantia da independência de Marrocos face aos turcos e espanhóis:
“Ele utilizou renegados como funcionários, militares, governadores, enfim, como homens para todo o serviço no Estado. Os fundos de que dispôs graças à Batalha dos Três Reis, combinados ao grande número de cativos que resultaram dessa batalha e aos aprisionamentos feitos no mar pelos corsários, deram-lhe uma base sólida para atingir os seus fins. O Estado teve aliás algum sucesso e Marrocos resistiu, do século XV ao século XIX, tanto ao imenso Império Espanhol, como ao imenso Império Otomano. Nenhum dos dois titans conseguiu pôr a mão no país que estava, contudo, situado entre os dois rivais”. (NOLET, 2008, p. 109)
Os Estábulos de Mulai Ismail, cujas abóbadas colapsaram no Terramoto de Meknassa-Azaytouna, e que apresenta evidentes semelhanças com a Habs Qara
Terrasse refere deste modo essa realidade:
“Os renegados (franceses e ingleses) dos séculos XVII e XVIII têm um ciclo lendário paralelo ao dos Portugueses, menos rico é verdade, mas mais poético. Eles foram, diz-se, senhores sumptuosos, conselheiros e confidentes dos soberanos (…) Alguns construíram mesmo monumentos: criaram assim uma arte marroquina que une as belezas ocidentais ao refinamento da tradição hispano-mourisca”. (TERRASSE, 1926, p. 191)
A história dos cativos cristãos em Marrocos é apenas a história contada de um dos lados, mas a do outro era tão cruel e desumana. Basta referir que os cativos muçulmanos na Europa eram colocados nas galeras de Sua Majestade, onde a esperança de vida média era de apenas um ano. Só na França de luís XIV, segundo os dados existentes sobre a escravidão muçulmana no país, havia entre 1680 e 1700, 12.000 homens como remadores nas galeras, dos quais 2.000 eram muçulmanos. (KNINAH, 2016, p. 52)
E apesar de muitos relatos contarem episódios de violência, o mito do barbaresco, dominante na Europa, e, segundo o qual, Marrocos era terra de intolerância, face a uma Europa de tolerância, é desmentido pelos próprios relatos dos cativos libertados.
Vista aérea de Meknés
“A intolerância e o fanatismo que se atribuía aos Mouros ‘infieis’ são desmentidos pelos factos históricos. Com efeito, o número relativamente grande de igrejas e capelas católicas existentes no reino, no final do século XVII, são a grande prova. Contavam-se seis igrejas, a de Nossa Senhora dos Anjos em Tetuan, a da Assunção em Salé, a de Santa Ana e do Hospital, em Fez; em Meknés, as duas mais importantes, a da Imaculada Conceição, para os missionários e a dos cativos espanhóis. Havia também capelas em Tânger, Larache e Meknés. Mulai Ismail tolerou e protegeu mesmo os monges franciscanos que organizavam e dirigiam a vida espiritual dos cativos.” (KNINAH, 2016, p. 50-51)
Não parece haver notícias de mesquitas para apoiar espiritualmente os cativos muçulmanos na Europa e as suas condições de cativeiro e suplícios infligidos eram semelhantes aos que os cristãos sofriam em terras do islão. No entanto, a crueldade de ambos os lados não era fruto de nenhuma ideologia ou profissão de fé, mas duma cultura de violência vigente na época.
“Os maus tratos que recebiam os cativos cristãos em Marrocos e os remadores nas galeras em França podem ser interpretados não apenas como a expressão das práticas bárbaras da época, mas como represálias recíprocas e continuadas.” (KNINAH, 2016, p. 52)
…..mais um “pequeno”- enorme caminho deste imenso labirinto da cultura marroquina aonde nos perdemos fascinados, esquecidos do tempo a passar, que traz até nós, Frederico Mendes Paula.
Bem haja, barakala-u-fik !
Um artigo que me deu especial prazer de escrever e com o qual aprendi muito.
Baraka Allahu fik