O porto de Agadir, vendo-se em primeiro plano o morabito de Sidi Bouknadel, no local do antigo bairro de Founti
No ano de 1505, no seguimento de uma tentativa espanhola de ocupar a costa marroquina frente às Canárias, Portugal interrompe a série de conquistas no Norte de Marrocos e concentra as suas atenções no Sul.
O comerciante João Lopes Sequeira, mandatado e apoiado financeiramente pela coroa portuguesa, implanta um castelo de madeira, que transporta pré-fabricado desde Portugal, no local do actual porto de Agadir. Esse castelo evolui rapidamente para uma fortaleza de pedra e cal, construída ao seu redor, e posteriormente para cidadela, dotada de uma cintura de muralhas que defende uma vila com vários edifícios.
Santa Cruz do Cabo Guer, nome derivado do Cabo Ghir, situado alguns quilómetros a Norte, seria a única praça portuguesa conquistada pelos mouros (juntamente com a perda prematura da generalidade das fortalezas isoladas, como a de Ben Mirao, o Castelo Real de Mogador e o Castelo de Aguz), após um cerco imposto pelos xerifes, conquista essa que daria origem ao abandono da maioria das praças de Marrocos.
O bairro de Founti em 1905, marcado pela cúpula caiada do morabito de Sidi Bouknadel, o Senhor das Candeias, e por trás, a Casbah sobre o Pico
Portugal já mantinha uma presença na região do Suss desde 1497, concretamente em Meça ou Massa, na foz do rio com o mesmo nome, ao nível de uma feitoria. Mas a pressão dos espanhóis, estabelecidos nas Canárias, para ocupar esta zona era grande e constroem alguns quilómetros mais a Sul, no local da actual cidade de Sidi Ifni, uma fortaleza a que chamaram Santa Cruz de la Mar Pequeña. Esta construção, realizada pelo governador de Tenerife Alonso de Lugo, seria seguida de uma outra em Meça, mas as pressões dos portugueses evitaram que se concretizasse. Mesmo assim Alonso não desistiu “e foi, mais ao Norte, ocupar a povoação que hoje se chama Agadir, (…) ajudado dos Cacimas, tribo berbere onde o lugar estava situado. Foi por pouco tempo, porque a gente de Meça, incitada pelos nossos sem dúvida, foi contra ele e venceu-o e aos seus amigos”. (LOPES, [1937] 1989, p. 28)
Após este episódio o comerciante João Lopes Sequeira construiu no local um castelo de madeira, a que chamou Santa Cruz do Cabo Guer. Segundo David Lopes, João Lopes Sequeira terá construído o castelo “com o dote de sua mulher” (LOPES, [1937 1989, p. 28), mas na crónica traduzida e anotada por Pierre Cenival, o castelo bem como artilharia pesada para o defender foram fornecidos pelos arsenais do reino, no valor de 347.251 reis:
“Ali assentou e armou ali um castelo de pau que levava já ordenado e feito; pôs-lhe artilharia e fez logo ao redor do castelo outro muito forte de pedra e cal, em que se meteu a fonte dentro, e com artilharia defendia aos mouros que lhe não impedissem a obra.” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, p. 216)
Nesta citação podemos observar dois dados relevantes, ou seja, que o castelo foi uma estrutura provisória para servir de base à construção de uma fortaleza de pedra e cal; que essa fortaleza integrou no seu interior uma fonte que ali existia.
O bairro de Founti em 1930
A referida fonte está na origem do topónimo do local, e de várias formas. Desde logo porque no século XVI a fortaleza é chamada de Guadanabar ou Água de Narba porque aí existia “uma grande fonte de muito boa água (…) donde vinham a beber muitos gados (…), que pertenciam a um Mouro grão senhor (…) o qual se chamava Ahames Narba, pela qual causa chamavam à fonte d’agua de Narba” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, p. 214). Também devido a esta fonte o local passou a denominar-se Founti, onde existiu um bairro destruído pelo terramoto de 1960, e onde actualmente fica o porto da cidade de Agadir. Esta origem do nome founti no português fonte não é consensual, já que a tribo berbere que habitava o local chamava-se Ait Founti, podendo o topónimo ter precisamente essa origem. Aite Funti seria também o nome da mouraria, o bairro indígena que ficaria fora de portas após a construção da vila, e onde os portugueses comerciavam.
A Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer foi assim construída junto ao mar, como seria de esperar, para assegurar a sua logística e socorro, e à sombra de uma montanha que os portugueses chamavam Pico, situação que se revelaria desastrosa como adiante veremos.
O porto de Agadir e o local da Fortaleza de Santa Cruz vistos do Pico
João Lopes Sequeira não tinha possibilidades de manter o castelo na sua posse e acabou por pedir ajuda ao estado “e este, por fim, comprou-lho por 5.000 cruzados e mais uma tença de 100.000 reais” (LOPES, [1937] 1989, p. 29). Corria o ano de 1513. Entre a sua construção e a venda à coroa portuguesa, Santa Cruz conheceu dois cercos, em 1506 e 1511, levados a cabo pela tribo Haha com o apoio do Xerife Muhammad Al-Qaim, sem consequências de maior para os portugueses.
Quando João Lopes Sequeira vendeu a fortaleza à coroa portuguesa ainda existia o castelo de madeira pré-fabricado, já que fazia parte do rol dos bens vendidos, e também já se encontrava construída a fortificação de pedra e cal que o rodeava. Jorge correia descreve assim o conjunto do qual a coroa tomou posse:
“Existia um castelo defendido por uma cerca baixa pontuada por torrelas do lado de terra, visto a frente de mar carecer de uma protecção contra as vagas. Ainda assim, do castelo saía um cubelo sobre a água, em jeito de couraça e unido por muro baixo. Em torno da cerca, um esboço de cava, ainda não revestida, reforçava o perímetro amuralhado. No interior, quer as casas adossadas à cerca, quer a igreja não possuíam cobertura.” (CORREIA, 2008, p. 325)
D. Manuel I nomeia D. Francisco de Castro capitão da fortaleza e encarrega-o de “fazer uma vila junto ao castelo” (CORREIA, 2008, p. 325), construindo trinta casas para moradores e executando alguns melhoramentos na fortificação, como a torre de menagem e baluartes na muralha. Sobre a vila refere Jorge Correia que “no castelo concentravam-se os principais equipamentos religiosos: a igreja paroquial de S. Salvador, o mosteiro franciscano de S. Sebastião e o hospital da Misericórdia. A sua inumeração parece exagerada para tão exíguo espaço.” (CORREIA, 2008, p. 326)
A praia de Agadir vista do Founti
Em 1534 é nomeado capitão da praça Luís de Loureiro, que empreende importantes melhoramentos na estrutura defensiva, como “a edificação de um forte baluarte, cheio de terra e munido de artilharia grossa, para além da disposição de outras baterias” (CORREIA, 2008, p. 326). Esse baluarte ainda existia em meados do século XX.
Jorge Correia identifica os principais elementos da estrutura defensiva com base no texto de Cénival, dos quais destacamos o cubelo de Tamaraque, voltado para a direcção de Tamraght, onde fora construída a fortaleza de Ben Mirao sobre o Rochedo do Diabo, e o Facho, “solido baluarte voltado para o Pico, fortemente massacrado em 1541, à sombra do qual foi construído o santuário de Sidi Bou Qnadel”. (CORREIA, 2008, p. 328)
O morabito de Sidi Bouknadel e o Pico
Sidi Bouknadel, o Senhor das Candeias é o santo protector dos pescadores e mareantes de Agadir. Reza a lenda que um pescador de nome Awragh, homem piedoso e temente a Deus, não aceitando que os seus vizinhos se aproveitassem da desgraça alheia, entrou em rotura com eles. Sendo a navegação no local particularmente perigosa devido às correntes e aos rochedos, os habitantes da aldeia roubavam as mercadorias dos navios que naufragavam e matavam os sobreviventes para que não houvessem testemunhas do seu crime. Awragh socorria os náufragos e criticava publicamente o comportamento dos seus vizinhos. De tal forma os criticou, que uma noite, durante uma pescaria, lançaram-no ao mar. Mas Awragh não morreu e voltou. E a partir deste acontecimento tornou-se asceta, passando o tempo isolado ou a rezar na mesquita. Nas noites de tempestade subia ao cume do monte Agadir Oufella, o futuro Pico dos portugueses, e acendia um fogo que durava até o dia nascer, evitando que sucedessem mais naufrágios. Nunca ninguém conseguiu apagar esse fogo e nunca ninguém soube explicar como Awragh o alimentava, sem existir no local lenha suficiente para tal.
Muitos dos seus vizinhos seguiram-lhe o exemplo e começaram também a acender fogueiras nas noites de tempestade. E com o passar dos tempos começaram a afluir à aldeia pessoas agradecidas pelo facto de os seus habitantes salvarem tantas vidas com os seus fogos. Traziam ofertas e mercadorias, e a prosperidade instalou-se na comunidade. Após a sua morte, Awragh passou a ser venerado. Construíram-lhe um mausoléu e chamaram-lhe Sidi Bouknadel, o Senhor das Candeias. Na aldeia foi construído um farol para proteger a navegação.
Todos os anos um carneiro é sacrificado em seu nome, ou um boi em anos de abundância, um tecido novo é colocado sobre o seu túmulo e uma grande festa organizada.
Adaptação da gravura de Hans Staden, Cap de Gell, representando a conquista de Santa Cruz do Cabo Guer por Mohammed Ech-Cheikh
Em 1541 o Xerife Mohammed Ech-Cheikh cerca durante seis meses Santa Cruz do Cabo Guer, que acaba por se render. As forças do Xerife posicionam-se nas encostas do Pico, de onde massacram as posições portuguesas com artilharia. São mortos 1.000 portugueses e 600 feitos prisioneiros, entre os quais o governador, D. Guterre de Monroy e os seus filhos. A sua filha Dona Mecia, cujo marido tinha sido morto durante a o cerco, acaba por se casar com Mohammed Ech-Cheikh, morrendo após dar à luz um filho do Xerife, supostamente envenenada pelas suas outras mulheres.
“D. Mécia fez-se moura, ‘emprenhou e pariu uma filha’, que morreu oito dias depois e a mãe faleceu oito dias depois da filha. Constou que morrera de feitiços que as outras mulheres do xarife lhe fizeram, ‘pelo muito que el Rei lhe queria, e se esquecia delas.” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, p. 192)
Os prisioneiros seriam posteriormente resgatados por alfaqueques enviados de Portugal. D. Guterre foi libertado devido à sua amizade pessoal com Mohammed Ech-Cheikh.
A queda de Santa Cruz do Cabo Guer acabou com o sonho português em Marrocos. Num período de nove anos todas as praças marroquinas seriam abandonadas à excepção de Ceuta, Tânger e Mazagão.
Agadir vista do Pico
Em 1572 o Xerife Mulay Abdallah El-Ghalib constrói a Casbah no cimo do Pico, chamando-lhe Agadir N’Ighir, ou Fortificação no Monte na língua Tachelhit, uma das três variantes do Tamazight ou Língua Amazigh.
No dia 29 de Fevereiro de 1960 um forte sismo arrasa Agadir, matando cerca de 20.000 pessoas. O bairro de Founti é destruído em 95%, desaparecendo os últimos vestígios edificados da ocupação portuguesa, restando apenas as suas ruínas.
Sou brasileiro e tenho bastante interesse por essa parte da história de Portugal. Parabéns pelo site . Já estive em Marrocos mas infelizmente não passei pela maioria dessas cidades. O circuito turístico que normalmente é oferecido somente incluí Ceuta e Tanger, além das cidades imperiais como eles chamam.
Tem razão. É o inconveniente de viajar pelos percursos turísticos que os grupos fazem geralmente. Para conhecer estas “histórias de Portugal”, há que viajar fora desses circuitos e ter acesso a informação específica, que infelizmente não existe de forma disponível e com roteiros trabalhados. Seria certamente uma mais valia para o turismo cultural em Marrocos a existência desse tipo de informação.
Muito bom. É uma excelente fonte de saber para os que realmente gostam de viajar por Marrocos com algum conhecimento, sobretudo para nós portugeses.Obrigado.
Eu é que agradeço, Vítor. A maior satisfação para quem escreve é saber que alguém aprecia o seu trabalho
Parabéns por este trabalho tão enriquece dor e, importante para melhor conhecer a história de Portugal em Marrocos.
Obrigado. Uma História com muitas histórias…
Congratulações querido amigo. Fico feliz por ter a oportunidade de degustar esse seu novo post. Parabéns.
Bem aparecido, Eduardo. Ainda bem que é do teu agrado.
Leio sempre com o maior interesse estas lições de História. Em História estamos sempre a aprender
É verdade. Aprende quem lê e aprende quem escreve.
Cumprimentos