No ano de 1506 a Coroa Portuguesa ordena a construção de uma fortaleza no local da antiga Mogador, obra levada a cabo por Diogo de Azambuja. A sua vida foi extremamente curta, já que “os Portugueses abandonaram Mogador em 1510, em circunstâncias mal conhecidas”, conforme refere Dias Farinha. (FARINHA, 1999, p. 25)
Da fortaleza, chamada Castelo Real de Mogador, já nada resta, a não ser algumas pedras reutilizadas na construção da Skala do porto de Essaouira pelo Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah, pelo que não existem quaisquer vestígios da efémera presença portuguesa no local, apesar de muitos autores afirmarem erradamente que as fortificações de Essaouira têm origem portuguesa, sejam as da própria cidade, sejam as existentes nas ilhas situadas ao seu redor.
No entanto, existem vestígios da presença portuguesa de uma época posterior, precisamente do reinado de Sidi Mohamed Ben Abdellah, patentes numa igreja e num edifício que se lhe encontra adossado, onde funcionou um consulado de Portugal.
A praia de Essaouira
O tempo de vida das fortalezas que os portugueses construíram na costa de Marrocos foi extremamente curto, já que eram dificilmente defensáveis e de muito pouca utilidade. Assim foi com Mogador (4 anos), Ben Mirao ou o Castelo de Aguz (ambos 5 a 6 anos). O facto de se situarem isoladas no chamado País Chiadma, onde as tribos locais, sobretudo os Banu Regraga, levavam a cabo uma guerra implacável contra o ocupante português, foi determinante para esta situação, e tendo em consideração que a sua queda ou abandono aconteceu inclusivamente durante o período do chamado Protectorado da Duquela, supostamente um período de paz entre as autoridades portuguesas e as tribos locais.
O processo de construção do Castelo Real foi realizado com grande dificuldade, como atesta Duarte Pacheco Pereira na sua obra Esmeraldo de Situ Orbis:
“No ano de nosso senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e seis anos mandou vossa alteza edificar na terra firme desta vila de mogador junto com o mar um castelo que se chama Castelo Real do qual foi capitão e por vós mandado edificador Diogo de Azambuja cavaleiro de vossa casa e Comendador da ordem de São Bento da Comenda de Alter Pedroso; o qual houve tanta contradição e perseguição da multidão dos bárbaros e alarves que se ajuntaram a pelejar com os que este edifício foram fazer, quanto sua possança abrangeu e em fim este castelo se fez a seu pesar e a glória do vencimento na mão de vossa Sacra Majestade ficou.” (PEREIRA, 1892, p. 32)
Localização do Castelo Real na Planta de 1736 de Martin Lambrechtse. Bibliothèque Nationale de France
Conforme refere Francisco Sousa Lobo, “D. Manuel I ordenou a Diogo de Azambuja que aí construísse o Castelo Real. Para essa edificação deveria contribuir, com o seu apoio, o almoxarifado da próxima Ilha da Madeira. Embora as fontes sejam quase inexistentes, sabemos que foram também importantes outros apoios, conforme nos dá conta um recibo de 7 de outubro de 1507. Nesse documento, João Mendes Correia, feitor de pescarias de atum no Algarve, recebeu a quitação das somas que despendeu em 1506 com o biscoito, a carne, a madeira, a cal, o tijolo e outras coisas que comprou para a construção do Castelo Real que Diogo de Azambuja fez pela ordem do rei em Mogador, de acordo com as cartas de quitação de D. Manuel.” (LOBO, 2012, página electrónica citada)
O Borj El Barmil, no local do antigo Castelo Real de Mogador
Sobre o Castelo Real de Mogador não existe muita informação, mas seria previsivelmente uma fortaleza semelhante às construídas pelos portugueses no início do século XVI na costa de Marrocos _ de forma quadrangular, com torres circulares nos seus cunhais, localizada o mais possível junto ao mar, para melhor ser abastecida e eventualmente mais facilmente evacuada.
A curta existência do Castelo Real em mãos portuguesas foi extremamente atribulada, já que “as dificuldades de defesa levaram o governador do Funchal a enviar trezentos e cinquenta homens para socorrer Diogo de Azambuja. De Portugal, Simão Gonçalves acudiu várias vezes, com navios e gente a suas expensas, ao Castelo Real, entre outras praças, em situações de cercos.” (LOBO, 2012, página electrónica citada)
Localização do Castelo Real na Planta de 1740-1749 de Jacques-Nicolas Bellin. Bibliothèque Nationale de France
O Castelo Real foi sistematicamente abastecido do exterior, como refere Abdelkader Mana no seu texto Castello Real:
“Uma quitação datada de Santarém, 24 de Outubro de 1507, refere as compras de trigo feitas em 1506, por ordem do rei, para o Castelo Real na Barbária, por Pero da Costa, capitão do navio São Simão (…) A 3 de Setembro de 1507, Diogo de Azambuja escreve de Safim ao almoxarife da Madeira, pedindo-lhe de enviar a João do Rego, portador da missiva, um certo número de bens para o abastecimento do Castelo Real, em particular cevada para os cavalos que estão no castelo. O abastecimento deveria ser previsto para vinte cavalos durante oito meses (…) Em 14 de Outubro de 1507, João do Rego dá baixa de tudo o que recebeu, a saber: onze pipas de vinho, duas de vinagre, uma de azeite, 15 moios de trigo em lugar da cevada pedida para os cavalos, que não fora possível encontrar, 20 outros moios em lugar de biscoito que não houvera tempo de fazer, mais um barco novo com quatro remos e 3.000 reis em prata para o soldo da guarnição”. (MANA, 2012, página electrónica citada)
Localização do Castelo Real (em cima, à esquerda) num extracto da Planta de 1767 de Théodore Cornut. Bibliothèque Nationale de France
Em 1510 D. Manuel nomeia Nicolau de Souza capitão e governador do Castelo Real, dando-lhe dois terços dos tributos que alcançasse com a eventual submissão das tribos num raio de três léguas. As tribos nunca seriam submetidas e o castelo seria “evacuado no dia 4 de Dezembro de 1510, segundo uma carta de Nuno Gato Cantador escrita em Safim, o único texto que existe sobre esse assunto”. (MANA, 2012, página electrónica citada)
As várias plantas existentes antes da construção do porto de Essaouira, datadas do século XVIII, localizam claramente o Castelo Real no local do actual Borj El Barmil, o baluarte circular situado a Poente da Torre Norte da Skala.
Após a sua evacuação, o castelo arruinou-se, tendo sido descrito em 1577 durante uma visita ao local do corsário Francis Drake, cujo relatório da viagem reza:
“Tendo feito aprovisionamento de madeira e visitado um velho forte construído outrora pelo rei de Portugal, mas atualmente arruinado pelo rei de Fez, nós partimos”. (LOBO, 2012, página electrónica citada)
O Castelo Real de Mogador. Gravura de Adriaen Matham de 1641
Na gravura de 1641 de Adriaen Matham, o Castelo Real é representado com características já muito adulteradas, fruto das destruições e reconstruções que sofreu, não tendo já nada de semelhante áquilo que o traço português determinava. Matham descreve o castelo e refere que no local existia uma casbah habitada na época pelos corsários Beni Antar. Escreveu Matham, aqui transcrito do texto de Mana:
“No dia 8 de Janeiro, de manhã, avistámos a Ilha de Mogador, e lançámos a nossa chalupa ao mar para ver se a costa era boa para nós (…) Durante a tarde fundeámos e lançámos uma salva de três tiros de canhão, á qual a gente da casbah respondeu com um tiro (…) No dia 9 de manhã, a nossa chalupa foi a terra, por um vento nordeste, para ver se havia maneira de conseguir água fresca, e também para ver se podíamos traficar com os Mouros da Casbah. Receberam amigavelmente a nossa gente e mandaram a bordo o seu intérprete, um judeu, em troca do qual, seguindo o seu costume, um dos nossos devia ficar em terra, como refém, enquanto durassem, dos dois lados, as visitas dos seus a bordo e dos nossos a terra”. (MANA, 2012, página electrónica citada)
Os Mouros não só forneceram água, como amêndoas, uvas, bolos de azeitona e pão, tudo em troca de moeda holandesa.
No tempo em que Adriaen visitou Mogador o castelo já teria sido reconstruído, muito provavelmente no reinado de Abdel Malek.
A cidade vista do porto
No ano de 1748 é nomeado Califa de Marraquexe Sidi Mohamed Ben Abdellah e em 1757, por morte do seu pai, assume o cargo de Sultão de Marrocos. Sidi Mohamed ficaria na história como o monarca que implementou uma política de abertura ao exterior, desenvolvendo laços de amizade com as nações do Ocidente e Oriente. Esta política materializou-se também numa abertura económica, promovendo a fixação de comunidades de comerciantes estrangeiros em Marrocos e de criação de importantes infraestruturas portuárias que as suportassem. O facto de o terramoto de 1755 ter ocorrido 2 anos antes da sua tomada do poder deixou-lhe a tarefa de reconstrução das principais cidades costeiras, grandemente afectadas pelo tsunami que lhe esteve associado.
Mogador foi uma cidade especialmente intervencionada pelo Sultão, já que constituía o porto natural de Marraquexe, local de exportação das mercadorias que as caravanas traziam a essa cidade.
O plano de Théodore Cornut de 1767. Bibliothèque National de France
Para a reconstrução de Mogador, Sidi Mohamed socorre-se de um renegado francês convertido ao Islão, de nome Théodore Cornut, um arquitecto militar anteriormente ao serviço do rei de França, que vivia em Gibraltar, que se inspira no modelo de Saint-Malo para projectar a então designada Essaouira, a bem concebida ou bem desenhada. O projecto de Cornut data de 1769 e não só constou da construção das muralhas da cidade, com destaque para a impressionante Skala da Casbah, que a defende do lado Norte, como da própria estruturação do tecido urbano, símbolo da modernidade da época, com o seu traçado ortogonal, racional e muito ao gosto do urbanismo europeu.
As fortificações do porto, não incluídas no projecto de Cornut, contaram com a colaboração de outros arquitectos militares, sobretudo genoveses, que trabalharam na Skala do Porto, com as suas duas torres e o já referido Borj El Barmil, e do renegado inglês Ahmed El Inglizi, autor da Bab El Marsa ou Porta do Porto e fortificações anexas.
Uma Skala é por definição um conjunto de plataformas concebidas para o uso da artilharia de defesa costeira.
A “Skala da Casbah”
As várias ilhas situadas defronte da cidade foram também fortificadas e todo o conjunto foi pensado por forma a cobrir com artilharia todas as aproximações inimigas por terra e mar. Para apetrechar estas fortificações, foram importados de uma fundição de Barcelona os canhões actualmente existentes no local.
Nas muralhas de Essaouira estão patentes dois conceitos e filosofias completamente distintos no que se refere à arquitectura militar:
Do lado de terra, onde o perigo não era previsível, apresentam um traço medieval, muito ao gosto marroquino, patente nos seus panos rebocados e pintados de tom ocre, decorados com merlões, constituindo mais um limite do tecido urbano do que propriamente uma barreira defensiva. São de grande qualidade estética, com a suavidade que lembra a cerca de Marraquexe, apenas interrompida pela modernidade do Borj Bab Marrakech, que aliás não consta do projecto de Cornut.
Do lado do mar, de onde viria o verdadeiro perigo para a cidade, exprimem toda a sua agressividade, com as suas estruturas à Vauban, fortemente guarnecidas de bocas de fogo, apresentando os panos em pedra aparelhada. Uma autêntica máquina de guerra com grande poder dissuasor para qualquer eventual agressor.
A Skala do Porto
Apesar de os elementos da arquitectura militar serem aparentemente os mais evidentes, foi no entanto na estruturação do tecido urbano que Cornut colocou todo o seu génio ao serviço dos objectivos políticos de Sidi Mohamed Ben Abdellah. Foi criado o Bairro do Rei ou Casbah, onde se localizavam os principais edifícios do Makhzen, os consulados dos países europeus e os Toujar, ou negociantes do rei, geralmente Judeus; a Medina, habitada sobretudo por Berberes Haha e Árabes Chiadma, e o Mellah ou bairro Judeu.
Importantes contingentes militares encontravam-se estacionados na cidade, incluindo os famosos ’Abid Al-Bukhari, os escravos negros do Sultão, que estiveram na origem de três dos bairros residenciais da actual medina _ Ahl Agadir, Bani Antar e Bouakhir.
“O Sultão ordenou a todos os cônsules para se instalarem em Essaouira e de aí construírem uma casa. Como sublinha o Dinamarquês Géorges Host no seu jornal de 1765: depois de que Mohamed se instalou ele próprio em Souira e distribuiu os terrenos para construção, ordenou a todos os cônsules para irem para lá e aí construírem a suas expensas, cada qual uma casa importante e adequada; todos os embaixadores deviam ir para lá, todos os piratas deviam levar as mercadorias por si aprisionadas para a mesma Souira, e um estaleiro naval devia ser fundado.” (MANA, 2012, página electrónica citada)
Planta de Essaouira com a localização dos consulados. Al Akhawayn University Ifrane (Eric Ross, John Shoup, Driss Maghraoui e Abdelkrim Marzouk)
De acordo com um levantamento da Universidade de Al Akhawayn de Ifrane, existem referências a oito consulados em Essaouira, concretamente da Dinamarca, Grã-Bretanha, Holanda, França, Espanha, Itália, Portugal e Brasil.
A cidade foi também dotada com os necessários equipamentos à vida da população, como mercados, áreas para trabalho de artesãos, zonas residenciais e uma importante alfândega.
“Quando a cidade foi terminada, o Sultão chamou negociantes cristãos para fazerem o seu comércio e, para os atrair, dispensou-os das taxas alfandegárias. Os comerciantes afluíram logo de todos os lados e estabeleceram-se neste porto, que foi povoado num curto espaço de tempo”. (MANA, 2012, página electrónica citada)
Para atrair os comerciantes europeus foi determinante o peso da comunidade judia local, cujos contactos e relações comerciais que mantinham com a Europa facilitaram o seu estabelecimento. Estima-se que nos finais do século XVIII os Judeus representassem 40% da população local, o que levou inclusivamente à construção de um segundo Mellah.
Vista aérea de Essaouira. foto Aéroclub Jean Bertin
Como refere Othman Mansouri, ainda durante o reinado de Mulay Ismail Portugal tentara estabelecer um acordo de paz com Marrocos, mas a presença dos portugueses em Mazagão inviabilizou qualquer entendimento.
“Em 1689 o sultão Mulay Ismail reclamou ao rei de Portugal a libertação de El Jadida. Em 1691 nova embaixada portuguesa, presidida por José Álvares, foi enviada a Meknés no intuito de chegar a um acordo relativo aos prisioneiros, mas Mulay Ismail levantou o problema de El Jadida e, a 1 de Setembro do mesmo ano, dirigiu ao rei de Portugal, D. Pedro II, uma carta a este respeito”. (MANSOURI, 2004, pp. 96-97)
Mazagão viria a ser evacuada após um cerco de 75.000 soldados marroquinos, mas as destruições e mortes que os portugueses causaram com as explosões realizadas durante a entrada na cidadela das forças de Marrocos continuaram a ser um entrave a um entendimento entre os dois países.
Deste facto deu conhecimento ao rei de Portugal o emissário de Sidi Mohamed Ben Abdellah, Manoel de Pontes, que se deslocou a Lisboa em Junho de 1769. Por pressão da Assembleia de Portugal, o mesmo Manoel de Pontes foi encarregue por D. José de propor ao sultão um acordo final, enviando-lhe “numerosos presentes: pérolas preciosas, tecidos de grande qualidade como panos bordados, mousselines e outros”. (MANSOURI, 2004, p. 97)
Estas negociações abriram caminho ao processo diplomático que se seguiu.
Uma rua da Casbah de Essaouira
Nesse ano de 1769 foi acordada uma trégua entre os dois países, ao que se seguiu em 1772 uma manifestação do desejo do estabelecimento de relações diplomáticas. Em 1773 o oficial da Marinha portuguesa José Roleen Van-Deck é encarregue de liderar as negociações com vista à assinatura do tratado de paz.
O estabelecimento de uma missão diplomática em portuguesa em Marrocos esteve associada à assinatura do Tratado de Paz de 1774, apenas 5 anos após a evacuação da Cidadela de Mazagão. Com esse tratado de paz, que o Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah promoveu não só com Portugal, mas com as principais potências europeias, estabelecem-se relações diplomáticas e comerciais entre os dois países, com grande relevância para o fim da guerra do corso e do aprisionamento de cativos, e o início de uma política de trocas comerciais e da disponibilização dos portos de Marrocos para as embarcações portuguesas.
“Embora questionável, afigura-se que o fim do corso terá sido mais uma causa do que uma consequência da abertura de Marrocos ao comércio exterior. Perante a crescente inviabilidade de uma prática ilegal, mandava a lucidez e o pragmatismo de Sidi Mohamed encontrar alternativa, quiçá menos rendosa mas por certo mais segura.” (BRANDÃO, 2004, pp. 30-31)
A “Skala do Porto” de Essaouira
Da Embaixada enviada a Marrocos, num total de 117 elementos, faziam também parte “o cônsul-geral Bernardo Simões Pessoa, o 2ª secretário Manuel da Silva, o capitão João Marques de Carvalho, o cirurgião António José Coelho e o secretário-intérprete Frei João de Sousa.
Para a guarda pessoal de Van-Deck incorporaram-se quarenta soldados de Infantaria, comandados por um capitão e um tenente e mais seis músicos trombeteiros das Reais Cavalarias de Sua Majestade Fidelíssima.” (BRANDÃO, 2004, p. 35)
A comitiva desembarcou em Mogador cinco dias após a partida de Lisboa, onde “o embaixador de Portugal recebeu ordens para não abandonar o navio antes de ter recebido os presentes destinados ao rei de Portugal, a saber: seis cavalos árabes, seis camelos, três avestruzes” (MANSOURI, 2004, p. 98). Duas semanas depois puseram-se a caminho de Marraquexe, “acompanhados por 120 cavaleiros marroquinos e dois cozinheiros escolhidos entre os melhores do palácio” (MANSOURI, 2004, p. 98), mas o embaixador foi transportado numa liteira por se encontrar acometido “de um mal não definido”, vindo a falecer nessa cidade. O texto do acordo viria a ser concretizado pelo cônsul-geral, já na cidade de Safi, para onde foram transferidas as negociações, pelo facto de o sultão ter que se ausentar para Fedala.
Pouco tempo depois chegou a Lisboa uma missão diplomática marroquina, a quem foi entregue a ratificação do Tratado de Paz.
“Sem que haja notícia de iguais contactos ao longo do século XIX, nem por isso deixou de subsistir o amistoso quadro que o Tratado de 1774 fixara. A presença portuguesa perdurará em Marrocos pela acção dos seus representantes consulares, testemunho de uma harmonia que pôs termo às ancestrais rivalidades”. (BRANDÃO, 2004, p. 40)
Barcos no porto de Essaouira
O Tratado de Paz viria a mostrar-se de grande relevância tanto para Marrocos como para Portugal, como salienta Ahmed Boucharb, ao considerar “Marrocos o novo aliado de Portugal”.
Para Marrocos, Portugal era um país de grande importância estratégica, pela vastidão das suas águas territoriais, que podiam abrigar a nova frota marroquina em lugares tão longínquos como a Madeira ou os Açores.
“Sidi Mohamed Ben Abdellah ordenava aos seus capitães que se refugiassem sistematicamente em caso de necessidade em portos portugueses; aqueles que não o fizeram foram castigados. O sultão tinha o hábito de avisar o cônsul português do programa das saídas dos seus navios (…) os navios que dispunham de documentos oficiais eram bem acolhidos pelas autoridades portuguesas”. (BOUCHARB, 2004, p. 71)
Para além disso, Portugal por várias vezes forneceu armas ao sultão de Marrocos para o apoiar na luta contra os seus inimigos, sobretudo pólvora. Os navios marroquinos eram reparados nos estaleiros portugueses e Portugal dava formação aos militares de Marrocos e apoio na cunhagem da sua moeda.
Essaouira
Portugal tinha também grandes vantagens com o acordo, já que os navios que faziam a rota do Brasil navegavam em segurança, abrigavam-se nos portos de Marrocos em caso de tempestade e utilizavam esses portos como bases seguras contra o corso argelino e tunisino. Para além disso, Portugal importava de Marrocos trigo e gado, de que o país era deficitário, tendo sido decisivo o apoio marroquino a Portugal durante as invasões francesas com significativos abastecimentos desses produtos.
Em relação ao trigo refere Boucharb:
“Consciente da importância estratégica deste produto para Portugal, especialmente durante os períodos de escassez ou de dificuldades políticas, como por ocasião das invasões francesas e na sequência das devastações que estas provocaram, o sultão marroquino concedeu-lhe o estatuto de nação mais favorecida”. (BOUCHARB, 2004, p. 81)
Este clima de confiança e cooperação entre os dois países está patente numa carta do Mulay Sulaymane ao governador de Tânger e aos dos outros portos marroquinos, que diz:
“Ordenamos-te que veles pelos portugueses e que peças para que sejam bem tratados. Todos quantos vierem terão direito a um tratamento de favor, serão protegidos contra tudo quanto possa prejudicá-los. Se alguém ousar maltratá-los ou causar prejuízo aos seus interesses, deves castigá-lo consoante o grau do delito. Os seus navios de guerra serão autorizados a carregar tudo quanto lhes faltar em bovinos, ovinos, pão, bolacha e outros “refrescos” sem pagar o que quer que seja, como lhes foi outorgado no reinado de Nosso Senhor que a Paz esteja com ele”. (BOUCHARB, 2004, pp. 81-82)
A fachada da Igreja portuguesa e, à sua direita, a fachada do Consulado português
A Igreja e o Consulado português situam-se no impasse Ibn Zohr, junto à entrada para a Skala da Casbah. São dois edifícios de três pisos com portas decoradas ao estilo muito próprio da cidade de Essaouira, com pilastras laterais e verga em arco, combinando a pedra de cantaria com esgrafitos de argamassa. A igreja em si não corresponde tipologicamente a um edifício de culto cristão, mas a um espaço multifuncional, como adiante veremos.
A porta da Igreja portuguesa de Essaouira
A porta da Igreja é de inspiração renascentista, com decoração executada em argamassa, definindo um pórtico com arco e arquitrave apoiados em pilastras. A fachada é de reduzida largura, com janela em ogiva sobre a porta.
A porta do Consulado português de Essaouira
A porta do Consulado é guarnecida de elementos de cantaria, pilastras e arco, com decoração no arranque e fecho do arco, tendo neste último uma inscrição do ano de 1871, que não sabemos se é referente à construção do edifício ou à colocação da referida porta no mesmo. A porta é de verga recta, existindo no enchimento do arco uma placa com referência à existência do Consulado durante o século XIX naquele local.
A placa existente sobre a porta do Consulado
Não encontrámos documentos sobre a construção da Igreja e do Consulado, mas apenas referências a que a Igreja fora construída por comerciantes portugueses nos finais do século XVIII e que o Consulado se encontrava em actividade durante o século XIX, como comprova esta passagem da página 175 do Diário das Cortes referenciado na bibliografia, sobre a sessão de 19 de Agosto de 1822:
“Em cumprimento da ordem do soberano Congresso que V. Exc.ª me transmitiu em seu officio de 30 de Julho ultimo, acerca dos cônsules indispensáveis no império de Marrocos, seus ordenados, e despezas extraordinárias, que he de necessidade ali fazer, tenho a honra de levar por meio de V. Exc.ª ao conhecimento do mesmo soberano Congresso, que além do consulado geral com o Ordenado de 1.200 réis, parecem indispensáveis os consulados em Tanger com o ordenado de 500 reis, em Larache com o de 600 réis, e em Mogador com o ordenado de 700 réis, o que tudo perfaz a quantia de 3.000 réis.”
Sobre a Igreja portuguesa encontrámos os elementos seguintes, fotos e texto, sem referência ao seu autor, na página electrónica GUIDO nº 36, que traduzimos e transcrevemos alguns excertos, pelo seu interesse enquanto documento. O texto foi adaptado em algumas passagens que não eram completamente perceptíveis do ponto de vista da construção das frases:
A Igreja portuguesa vista da sua traseira
“A conservação da igreja portuguesa da medina de Essaouira, joia incontornável da cidade, é uma necessidade urbanística. É urgente proceder a um restauro do monumento. A igreja portuguesa, contígua ao consulado, no impasse Ibn Zohr, está ao abandono. A torre sineira ameaça ruir. Sobre a rua, a sua porta em pedra talhada enquadrada por duas pilastras com capiteis, parece não ter sido aberta desde há anos, e sobre ela, uma janela em ogiva iluminava a sala de orações. Igreja fantasmagórica, cujos vestígios são possíveis de descobrir subindo aos terraços vizinhos que dão sobre a traseira do edifício na Rua Ibn Rochd. Quanto ao consulado de Portugal, adjacente à igreja do lado direito do impasse, está no mesmo estado de abandono da sua vizinha.
A lenda conta que aquando da sua primeira visita a Essaouira o sultão fundador, Sidi Mohamed Ben Abdallah, se voltou para o seu séquito e pronunciou as seguintes palavras:
“Quem quer que entre pobre nesta cidade, sairá dela próspero. Já que nesta cidade, a riqueza chega de horizontes longínquos…”
Esta frase testemunha o seu contexto histórico, marcado pela assinatura de tratados comerciais com os países europeus” (…)
A Torre Sineira da Igreja
“É neste contexto que foram construídos o consulado e a igreja portuguesa, afim de oferecer à comunidade cristã residente em Essaouira um quadro urbano consentâneo com as suas actividades religiosas e para os encorajar a aí se instalarem como noutras cidades, como El Jadida. Alguns destes consulados foram reabilitados para fins públicos ou privados, como são o caso dos consulados francês e italiano, mas os outros estão em ruína (…)
Este monumento (a igreja portuguesa) organiza-se em volta de um pátio e é composto de três níveis:
O rés-do-chão, constituído por uma série de compartimentos utilizados anteriormente como depósitos (…)
O primeiro andar, composto por uma sala de culto com dimensão de 15,42 m2. As quatro galerias do andar são rodeadas de compartimentos utilizados anteriormente como habitações.
A torre (com 7,8 m de altura a partir do nível do terraço), constituída por duas áreas cobertas por uma cúpula em meia esfera, que abrigava anteriormente os sinos. Um telhado de pendentes curvas – evocando de forma evidente a morfologia das antigas igrejas portuguesas – assegura a ligação entre a parte rectangular da torre e o coroamento cilíndrico e a sua cúpula
(Documento de um arquitecto de Casablanca)”
Estado actual do pátio da Igreja
“Em 2008 um projecto de reabilitação da igreja portuguesa, com custo de 5 milhões de dirhams, previa a criação de salas de exposição, de uma sala polivalente (espectáculos, projecções, conferências, exposições), de uma biblioteca especializada (arte, história, história de arte), de um atelier (pintura, instrumentos musicais, joias, musica, fotografia) e de quartos para acolher artistas intervenientes na cidade.
Este projecto tão ambicioso (…) não se concretizou. Hoje, e cada mês que passa, a igreja deteriora-se. A questão que qualquer um coloca é “não acabará por desaparecer?”
Grafiti pintado na porta do antigo Consulado português
Na porta do antigo Consulado português está pintado um grafiti, uma cara que nos olha, olhos nos olhos, como que nos desafiando para mantermos viva a memória de Portugal em Essaouira.