Nos finais do século IX o Al-Andalus era governado pelo Emirato de Córdoba, fundado pelo príncipe Omíada Abd Ar-Rahman.
A sociedade do Al-Andalus e concretamente a do Gharb Al-Andalus, era uma sociedade multi-étnica, multi-racial e multi-religiosa, na qual coabitavam diversas comunidades como os Árabes, os Judeus, os Berberes e os Hispano-romanos e Hispano-godos, grande parte mantendo-se cristãos mas arabizados, tomando o nome de Moçárabes, grande parte arabizados e convertidos ao Islão, tomando o nome de Muladis (do Árabe muwallids ou recém-nascidos).
Musica do Al-Andalus _ Françoise Atlan e Bahaa Ronda
Os Muladis não são apenas uma comunidade do Al-Andalus _ são um grupo organizado, um autêntico partido, com grande influência política, económica e social, que influenciariam os destinos da Hispânia Muçulmana e inclusivamente o próprio conceito de identidade Luso-Árabe. Encontravam-se descontentes pelo facto serem muitas vezes tratados como Muçulmanos de segunda categoria e devido a perseguições que eram movidas aos Moçárabes, comunidade da qual provinham e com a qual mantinham estreitas relações.
Silves
Governava o Emirato de Córdoba no ano de 879 o Emir Muhammad I quando estalam as primeiras revoltas. Inicialmente revolta-se Omar Ibn Hafsune de Bobastro, ao qual se juntaram de imediato muitos outros, como Ibn Meruan de Mérida, Sadune Ibn Fatah de Coimbra, Abd Al-Malike Ibn Jauade de Beja e Yahia Ben Bakr de Ukshunuba (actual Faro).
Yahia era um Muladi de recente conversão ao Islão, neto de um Moçárabe chamado Rudolfo. No seguimento da sua revolta fortifica a cidade de Faro, construindo as actuais muralhas da Vila-a-Dentro, dotando-a de fortes portas, e muda o seu nome para Xantamarya Al-Gharb ou Santa Maria do Ocidente. A Yahia Ben Bakr sucede o seu filho Bakr Ben Yahia, monarca que embora mantendo Xantamarya como capital política passa a maior parte do seu tempo em Silves que transforma na sua capital cultural. Sucede-lhe por sua vez Calafe Ben Bakr, que apesar de garantir a sua independência em relação ao Emir de Córdoba, apoia-o e colabora com ele na guerra que travam contra os invasores Normandos, assegurando a vitória muçulmana na célebre batalha do Arade. O governo dos Bakr no Al-Gharb duraria perto de 50 anos.
Vista aérea da Vila-a-Dentro da Cidade de Faro
Com a submissão dos restantes Muladis revoltosos a derrota do Al-Gharb é inevitável, mas o prestígio dos Bakr, o apoio que granjeiam na população e as próprias relações de cordialidade que mantêm com o Emirato ao longo do período da revolta, permitem que Calafe continue no poder submetendo-se à autoridade do agora proclamado Califa de Córdoba Abd Ar-Rahman III.
Durante o governo dos Bakr, o Al-Gharb torna-se num local de peregrinação para os Cristãos de toda a Hispânia Muçulmana, que afluem aos seus dois santuários _ o de Santa Maria em Faro e o de S. Vicente no Promontório Sacro (Sagres). Sagres já era desde os finais do século IX um importante local de peregrinação cristã, altura em que são trazidos por mar, desde Valência, e aí depositados, os restos mortais do mártir S. Vicente. O culto cristão em Faro é celebrado numa Igreja e há notícia de que os seus bispos participam em concílios.
Gravura de Faro no século XVII
O geógrafo Al-Idrisi descreve assim Faro no século XII:
“Santa Maria do Ocidente está edificada à beira-mar e a maré vem bater-lhe nos muros. É de tamanho mediano e muito bonita; tem uma mesquita catedral, uma mesquita paroquial e uma capela; a ela vêm e dela partem navios. A região é muito rica em figos e uvas”. (1)
Ainda segundo um relato de um cronista que passa por Faro nesse mesmo século XII o nome da cidade deve-se a uma imagem de Santa Maria existente sobre as muralhas. Este facto é confirmado no milagre de Santa Maria incluído nas Cantigas de Afonso X, o Sábio. Segundo ele durante o reinado de Aben-Afan, último Rei Mouro do Algarve, a imagem foi atirada ao mar, após o que desapareceu o pescado das águas junto a Faro. Apressaram-se os moradores a voltar a colocá-la entre as ameias e o pescado regressou.
Iluminura das Cantigas de Afonso X ilustrando o milagre de Santa Maria
Al Cazuini, autor do século XIII, descreve assim Faro:
“Santa Maria é uma cidade antiga; nela existe uma igreja da qual disse Ahmed, filho de Omar Aludri, que era um soberbo edifício; as suas magníficas e alvas colunas não tinham rival em nenhuma outra parte, quer pelo extraordinário comprimento, quer pela sua largura, e um homem não era capaz de abraçar a uma delas (…)”. (1)
A revolta dos Bakr e a marca que deixa na história do Gharb Al-Andalus inicia indubitavelmente o processo de afirmação da identidade Luso-Árabe, estabelecida territorialmente no actual Algarve e centrada em Silves como sua capital, identidade essa marcada pela heterogeneidade da sua sociedade, pela riqueza da sua cultura, pensamento e espiritualidade.
Sobre Silves escreveu Alexandre Herculano:
“Comparada com Lisboa, Silves era muito mais forte; e em opulência e sumptuosidade de edifícios, 10 vezes mais notável”. (1)
O estabelecimento inicial de uma forte comunidade de Árabes do Yémen, que aportariam à região uma pureza linguística e capacidade de expressão poética, contribuiu também para a singularidade cultural do Luso-Arabismo.
Vista de Silves
Eis um excerto da descrição de Silves por Al-Idrisi:
“A cidade tem um lindo aspecto, belos monumentos e mercados muito abundantes. Os seus moradores, assim como os habitantes das aldeias em volta são Árabes do Yémen e de outras partes. Falam uma língua Árabe pura. E são versificadores. E são eloquentes e bem falantes, tanto a boa gente como a gente do povo. Os moradores do campo são em extremo generosos como nenhum outro povo”. (1)
O período das taifas que se seguiria ao governo dos Bakr afirmaria os Banu Muzayne de Silves e os Beni Harun de Faro como poetas, poesia que atingiria o seu auge com a corte de Al-Mu’tamid Ibn ‘Abbad.
A identidade Luso-Arabe ficaria também marcada pelo misticismo religioso de Ahmed Ibn Qaci e das suas ligações ao misticismo cristão de Afonso Henriques.
Sobre Ibn Qaci afirmou Adalberto Alves.
“O pacto simbólico que então faz com D. Afonso Henriques sela o ideal sinárquico que une a cavalaria templária à cavalaria islâmica muridínica, afinal uma convergente cavalaria espiritual. É esse arco voltaico de natureza iniciática que liberta a sinergia donde Portugal virá a brotar”. (2)
Notas:
(1) DOMINGUES, José Garcia . “História Luso-Árabe” . Centro de estudos Luso-Árabes de Silves, 2010
(2) ALVES, Adalberto . “Portugal e o Islão Iniciático” . Esquilo, 2007
Bibliografia:
ALVES, Adalberto . “Portugal e o Islão Iniciático” . Esquilo, 2007
DOMINGUES, José Garcia . “História Luso-Árabe” . Centro de estudos Luso-Árabes de Silves, 2010
PAULA, Rui Mendes e Frederico Mendes . “Faro, Evolução Urbana e Património” . Câmara Municipal de Faro, 1993
Excelente texto, repleto de informações , para mim, muito interessantes!
Obrigado. De qualquer forma é um texto já escrito há vários anos que tenho intenção de melhorar
Excelente descrição desse Algarve tão bonito e histórico!
A História é fascinante pelas descobertas que através dela fazemos de nós próprios