A Porta da Vila da Cidadela de Mazagão
“Não havia espaço que não estivesse cheio de recordações: uma pedra, a esquina de uma rua, um largo. Os Mazaganistas formavam um corpo com seus muros. Defendê-los era a sua razão de viver e de esperar. Muitos deles não imaginavam qualquer destino fora dos muros da fortaleza.” (VIDAL, [2005] 2008, p. 51)
No ano de 1541, no seguimento da tomada de Santa Cruz do Cabo Guer pelo Xerife Mohamed Ech-Cheikh, Portugal decide reformular a sua filosofia de ocupação da costa do chamado Marrocos Amarelo, concentrando forças numa fortificação inexpugnável, construída de raiz segundo os princípios mais avançados da arquitectura militar do Renascimento. Essa fortificação, a Cidadela de Mazazão manteve-se inviolada em mãos portuguesas até 1769, data em que um cerco realizado pelo Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah obrigou à sua evacuação, sendo os seus habitantes transferidos para a Amazónia, onde fundaram a cidade de Vila Nova de Mazagão.
Os Mazaganistas, como ficaram conhecidos, foram quatro ou cinco gerações de pessoas que viveram isoladas numa área de meia dúzia de hectares, em permanente sobressalto e de carência de bens de alimentação e condições de conforto, desenvolvendo uma série de subterfúgios para atenuar o tédio e a ansiedade, que caracterizou esta comunidade resistente e guerreira.
Mazagão, desde a ocupação da El Brija à construção do Castelo Real de S. Jorge
Desde 1486 que é conhecida a presença portuguesa no local onde hoje se implanta a Cidadela de Mazagão, havendo referências à ocupação de uma torre de vigia chamada El Brija, diminutivo de Borj ou Torre. No ano de 1502 já existiriam alguns edifícios de campanha em redor da torrinha, mas só em 1513, no seguimento de desembarque no local das tropas comandadas por D. Jaime, Duque de Bragança, com destino à conquista de Azamor, foi tomada a decisão de se construir aí um castelo. Nesse mesmo ano era montado um castelo de pau, ao redor do qual foi construído um outro de pedra e cal com projecto dos irmãos Diogo e Francisco de Arruda. O castelo, denominado Castelo Real de S. Jorge de Mazagão, dispunha de um fosso com ponte levadiça e era de forma quadrada com quatro torres cilíndricas nos cantos, uma delas a torrinha El Brija, denominada na altura Torre Boreja.
A fixação dos portugueses em Mazagão resulta sobretudo do facto de a região da Duquela ser extremamente rica em trigo, do qual Portugal era deficitário, tendo como principal centro de comércio a cidade de Azamor, com a qual haviam já laços comerciais importantes, inclusivamente assumindo forma de vassalagem. Mas Azamor era de má barra, ou seja, não dispunha de um porto em condições para acolher os navios portugueses e Mazagão surge assim inicialmente como o porto de Azamor e Praça na sua dependência. Esta relação de dependência entre as Praças nunca foi fácil:
“A rivalidade entre os capitães das diversas praças portuguesas de África minou a base da sua segurança e impediu uma acção comum contra o inimigo. O Professor Robert Ricard considera que faltou um vice-rei ou capitão geral que unificasse as forças dispersas em acções comuns.” (FARINHA, 1970, p. 22)
Mazagão, da formação da Vila à construção da Cidadela
Ao longo dos anos vai-se formando um pequeno arrabalde do lado Noroeste, de caracter espontâneo, que se relaciona com o castelo dando-lhe algum apoio logístico em troca de protecção. Os ataques quase diários a que esse povoado é sujeito obrigam à construção de uma barbacã e fosso para a sua protecção e à constituição de uma força de batedores comandados por um adaíl, que fazia incursões ou surtidas-relâmpago preventivas nas aldeias vizinhas. Apesar de constituir um aglomerado satélite de Azamor, Mazagão depressa se transforma numa autêntica Vila, com cercas para gado e hortas, e dispondo de instalações portuárias que colmatavam as deficiências que a má barra de Azamor comportavam.
Chegado o ano de 1541 e a consequente reformulação das características de ocupação do Sul de Marrocos, D. João III decide-se por construir uma superfortaleza, para o que convoca os técnicos mais prestigiados da época, formando uma equipa liderada por Miguel de Arruda, e tendo como projectista principal Benedetto da Ravenna, com quem colaboraram Francisco de Holanda e Diogo de Torralva, ao nível dos estudos, e João de Castilho e João Ribeiro, como executantes da obra. Nasce então a Cidadela de Mazagão.
A Cidadela, que seria a primeira cidade construída de raiz por europeus fora da Europa, é pensada para ser inexpugnável e autossuficiente. Combina os mais avançados princípios da arquitectura militar do Renascimento, admiravelmente postos em pratica para garantir a segurança dos seus habitantes, com uma estrutura urbana racional, dispondo dos necessários equipamentos e infraestruturas para viver isolada num meio hostil.
Este isolamento em ambiente hostil seria determinante para marcar as características da comunidade que durante várias gerações a ocupou _ os Mazaganistas.
Estrutura urbana projectada e principais edifícios da Cidadela de Mazagão
A Cidadela constituía assim um modelo de estrutura urbana, compatibilizando um urbanismo doméstico com um urbanismo colonial. Era uma estrutura baseada na disciplina, na ordem e na racionalidade, com fortes ligações a um esquema de base militar, mas com os necessários equipamentos para garantir a vida de uma população civil.
Estruturava-se com base em dois eixos principais, a Rua da Carreira, ligando a Porta da Vila à Porta da Ribeira, espinha dorsal da Cidadela, e a Rua Direita, que lhe era perpendicular. O Terreiro situava-se junto à entrada e nele implantavam-se o Palácio dos Governadores e a Igreja Matriz de N. Sra. da Assunção. O antigo Castelo Real de S. Jorge de Mazagão era o seu centro urbano, ao redor do qual se localizavam os principais edifícios da administração e no seu interior implantava-se a Cisterna Manuelina, inicialmente abastecida através de um cano vindo de uma picota situada no campo exterior.
Mazagão tinha mais de 500 habitações, 10 igrejas e ermidas, Hospital da Misericórdia, Cadeia e Vedoria, para além dos necessários equipamentos de logística militar e de bens de consumo. Os edifícios não se podiam elevar acima da altura da muralha, garantindo que do caminho de ronda houvesse sempre uma visão global da muralha, e evitando que do exterior se pudesse perceber a estrutura da Cidadela e localização dos principais equipamentos.
Planta da Cidadela de Mazagão de 1611, anónima, Códice Cadaval, Torre do Tombo
Planta de Mazagão de 1757, de J. Bélicard, Bibliothèque Nationale de France
Planta da Cidadela de Mazagão de 1720-1760, de Simão dos Santos, Instituto Português de Cartografia e Cadastro
A população de Mazagão integrava-se em dois grandes grupos:
Os fronteiros, assim chamados porque desempenhavam funções temporárias nas zonas de fronteira, geralmente durante três a quatro anos, a maioria dos quais militares, mas também funcionários da administração do Estado, que recebiam um pagamento em dinheiro, a tença, e outro em alimentos, o resguardo. Os fronteiros procuravam sobretudo uma rápida ascensão na hierarquia militar ou da administração e, sobretudo os militares, o enriquecimento fácil por via das pilhagens realizadas fora de portas e muitas vezes de práticas de desvios de bens e dinheiros dos armazéns reais. Os fronteiros levavam muitas vezes consigo a família, criados e gente de guerra, infantaria, paga às suas custas.
Os moradores, a população fixa, só se constituiria verdadeiramente a partir do século XVII, já que inicialmente apenas ocupavam a praça os fronteiros e suas famílias. A fixação de civis como residentes processa-se assim numa segunda fase. Muitos deles eram originários dos Açores, sobretudo da Ilha de S. Miguel. Os moradores eram os verdadeiros Mazaganistas, já que constituíam a população residente em permanência, que desempenhava as principais profissões vitais para a vida na Praça, no fundo aqueles que, de geração em geração, conferiam à comunidade a sua identidade própria.
Alguns autores, como João de Figuerôa-Rego, recusam esta dicotomia social entre fronteiros e moradores, considerando-a artificial, já que existia uma realidade mais complexa. Sendo verdade que uns e outros constituíam a nobreza e a plebe da Praça, também é verdade que os moradores também usufruíam de benesses por parte da Coroa, apesar de terem de servir durante mais anos e as suas mercês não serem do mesmo nível.
Nesta optica, muitos dos moradores eram detentores “do foro de cavaleiro-fidalgo, nalguns casos, cumulativamente com o hábito de Cristo.” (FIGUERÔA-REGO, 2007, p. 58)
Barcos no porto de Mazagão
Em Mazagão viviam também outros grupos minoritários, como os religiosos, os degredados, que na Praça expiavam os seus crimes, os escravos e os comerciantes, muitos dos quais judeus, ingleses, dinamarqueses, holandeses ou genoveses. Haviam também minorias étnicas locais, como árabes e berberes.
Sabemos que o contingente militar é substancialmente reforçado em meados do século XVIII, com o aumento dos ataques á Praça pelas forças marroquinas. Simão Correia Mesquita refere que em 1751 a guarnição era composta por 150 cavaleiros e 400 infantes (MESQUITA, 1751, p. 7), número que, de acordo com Pedro da Silva Correia era superior em 1763, já que afirma que Mazagão “tem de guarnição, quando completa, seiscentos infantes, duzentos cavalos e quarenta artilheiros” e refere mais adiante que “nesta Praça habitam mais de três mil pessoas de um, e outro sexo da nação Portuguesa, no qual se compreende multidão grande de Cavaleiros da Ordem de Cristo (…) e Fidalgos da Casa de Sua Majestade: e a maior parte de seus moradores são de antigas famílias e nobre progénies”. (CORREIA, 1763, p. 4)
Algumas características da estrutura da população Mazaganista em 1769
O trabalho de José Manuel Azevedo e Silva referenciado na bibliografia inclui a análise dos dados da Relação das Famílias de vieram da Praça de Mazagão em 11 de Março de 1769, documento utilizado pela Coroa Portuguesa para a deportação da população para o Brasil. Este documento traça um perfil de uma comunidade bastante equilibrada em termos de estrutura social, tendo em conta o evidente peso dos militares no seu seio e a existência de grupos específicos e minorias étnicas. Indicadores tão importantes como a relação dos indivíduos por sexo (54%-46%), o número de indivíduos vivendo em família (89%) ou a percentagem de crianças até aos 10 anos (30%) conferem de facto à comunidade uma composição surpreendentemente equilibrada.
No entanto, esta relação refere-se exclusivamente à população portuguesa evacuada da Praça em 11 de Março e tinha por base a organização da sua transferência para a Amazónia. É sintomático dos cerca de 3.000 habitantes referidos por Pedro Correia, apenas 2.092 se incluíam nesta lista. Ficavam assim de fora muitos indivíduos, como os árabes, berberes, mouriscos expulsos de Portugal e judeus, e certamente também os fronteiros, degredados e outros indivíduos que estavam em trânsito em Mazagão, e que, ao serem incluídos na listagem, alterariam drasticamente as características da estrutura social desta comunidade.
A Cidadela vista do molhe Nascente
A guarnição militar era de 592 indivíduos, entre cavaleiros, infantes e artilheiros e incluindo aqueles que prestavam serviço no campo exterior, como os facheiros, atalhadores e atalaias. Este número, por reduzido, mostrava já a decisão do abandono da Cidadela, “reflectindo um decréscimo significativo da presença militar portuguesa em Marrocos, nos últimos seis anos, o que faz supor que a opção pela evacuação daquela praça já vinha sendo equacionada pelo gabinete josefino há algum tempo”. (SILVA, 2004, p. 173)
Apesar de os Mazaganistas viverem maioritariamente em família, o conceito de família era um conceito alargado, já que se referia a todos os indivíduos que não viviam isolados, incluindo relações do tipo dual não matrimonial, como “pai e filha, mãe e filho, padre e criada, viúva e escravo”. (SILVA, 2004, p. 174)
As relações de parentesco das famílias incluíam também aquelas com base nos tios, sobrinhos, avôs, netos, sogros, irmãos, afilhados, enteados, enjeitados, agregados, no fundo todos os tipos de relacionamento que permitissem que várias pessoas partilhassem o mesmo fogo, num total de 425 famílias, com uma média de 4 indivíduos por família.
Um aspecto interessante é o de que não existia uma homogeneidade em termos de distribuição de riqueza, detectando-se famílias que viviam de forma faustosa, outras de forma remediada, a maioria, e outras em grande carência.
A Cidadela vista do Baluarte do Anjo
De uma forma sucinta, podemos referir as seguintes profissões que integravam os Mazaganistas:
A administração estava a cargo, em primeiro lugar, do governador ou capitão da praça, o que mostra o carácter militar da sua gestão, dos alcaides, juízes, porteiros, alfaqueques, tabelião, escrivães da vedoria, escrivães do almoxarifado, fiel dos armazéns e o piloto da barra.
Os militares incluíam os condestáveis, almocadéns, anadéis, capitães, tenentes, alferes, sargentos, artilheiros, atalaias, atalhadores, soldados e cavaleiros. Os três corpos militares tinham em número de homens, respectivamente, 472 de infantaria, 99 de cavalaria 21 de artilharia.
Para além dos religiosos, encontramos referências a várias outras profissões, como o médico, o cirurgião, o boticário, o mestre de meninos, para além é claro de todas as outras profissões não referenciadas e vitais para a vida na Praça, fossem pedreiros, carpinteiros, construtores navais, padeiros, talhantes, alfaiates, ferradores, ferreiros, cordoeiros, artesãos, agricultores, pescadores ou criadores de gado.
Em Mazagão existiam instituições de apoio aos mais carenciados. Desde logo a Misericórdia, que tinha um Hospital e Albergue para pobres e estrangeiros, e a Confraria da Piedade, para além de outras confrarias de carácter mutualista e corporativo.
Vista aérea da Cidadela de Mazagão. Autor desconhecido
Os árabes e berberes residentes eram tratados forma rigorosa, temendo-se actos de traição. Geralmente ficavam fora de portas, fazendo comércio de gado ou de produtos agrícolas. Os mouriscos chegavam a Mazagão vindos da Península, de onde haviam sido expulsos e ficavam em trânsito, até serem dispersos para o interior de Marrocos. Aqueles que aceitavam a conversão sincera, serviam nos corpos de almogávares ou no campo exterior. Os estrangeiros, comerciantes de permanência temporária, dormiam geralmente nos navios acostados no fosso.
Os judeus controlavam o comércio na Praça e inclusivamente ganhavam comissões com o comércio dos estrangeiros, e eram vistos com desconfiança pelo papel duplo que jogavam com as autoridades de Marrocos, surgindo muitas vezes como interlocutores e intermediários entre as duas partes. Aqueles que residiam em Mazagão obedeciam a uma disciplina rigorosa e também tinham autorizações temporárias de permanência na Cidadela.
O Bispo de Ceuta visitou a Praça em 1607-1609 e nessa altura foram feitos uns estatutos para regular a sua presença, bem como a das restantes comunidades de “infiéis”. Esse normativo impunha que aqueles que chegavam numa cáfila partiriam na seguinte, pernoitavam em zona encerrada durante a noite, nos dias santos teriam que ficar nessa zona e na sexta-feira não podiam abrir as janelas, quando se realizassem cerimónias religiosas ficavam recolhidos, tinham que usar chapéus ou barretes azuis, não podiam vender nas ruas e só podiam fazer compras às segundas e quintas-feiras. Só podiam ter sinagoga com autorização do Rei, os cristãos não podiam participar ou colaborar nas suas cerimónias, nem jogar com eles, nem entrar nas suas casas, não podiam ter livros contrários à religião cristã e eram revistados frequentemente. Tinham que falar português ou espanhol, e não podiam testemunhar nos tribunais, entre outras coisas. (FARINHA, 1970, p. 78-79)
A Porta do Mar
A situação de Mazagão nos meados do século XVIII era insuportável, de acordo com Laurent Vidal, que afirma que o seu isolamento “coloca os seus habitantes confinados no limite do tolerável: inveja, cobiça, rumor, calúnia e insubordinação tornam a banalidade dum quotidiano tornado insuportável”. (VIDAL, [2005] 2008, p. 12)
O destino da Cidadela estava traçado desde o dia em fora construída. Seria a única fortaleza portuguesa no Sul de Marrocos e iria viver isolada, confinada dentro dos seus muros. O quotidiano monótono e repetitivo, o isolamento, o tédio, a espera e a incerteza marcam o dia-a-dia desta comunidade, que vive numa disciplina rigorosa como forma de garantir a sua subsistência.
As tensões internas criavam-se sobretudo entre os fronteiros e os moradores. Os primeiros eram de ascendência nobre, fidalgos integrados nos corpos militares, que estavam de passagem, e muitos eram jovens solteiros, que frequentemente criavam problemas com as raparigas das famílias dos moradores, de condição humilde. As diferenças sociais entre estes dois grupos originavam invejas, rivalidades e conflitos.
Mulheres entrando na Cidadela
Apesar deste isolamento, houve períodos em que foi possível desenvolver algum comércio com as tribos vizinhas, que os Mazaganistas chamavam mouros ladrões, sobretudo em tempos de fome, comprando, para além de mulheres e crianças como escravos, cavalos, gado e trigo.
Para além deste relacionamento informal com os Gharbia e Xarquia, existiram também relações oficiais com o Alcaide de Azamor, como as que se descrevem no seguinte documento, referente ao ano 1677:
“Na manhã pelas sete horas se povoou o campo com as nossas atalaias e às oito para as nove se deu sinal de mouros, o qual eram cargas de várias coisas e algum gado vacum e ovilhum que mandava adiante o alcaide de presente ao Senhor Governador, acompanhado por criados seus e dois mouros de respeito e um judeu por língua, muitos almocreves de pé, ridículos sujeitos. O Senhor Governador os recebeu com mostras de alegria e mandou logo repartir tudo pelos oficiais, assim de guerra como de paz, dando um carneiro a cada hum e o mais gado todo mandou ao açougue aonde se repartiu por todo o povo, dando os couros de esmola à Nossa Senhora de Penha de França.” (COSME, 2003, p. 93, citação do Códice nº 296, depositado nos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa)
Esta descrição refere-se a uma visita que o Alcaide de Azamor fez a Mazagão, na qual se realizou um grande banquete em tendas montadas no exterior da Cidadela, onde fizeram “negócios secretos”. De referir que ambas as partes fizeram reféns durante o evento, como forma de assegurar que tudo decorreria de forma pacífica, e “ficando fora dos valos muita cavalaria e infantaria com mulheres e meninos” do séquito do Alcaide.
A Rua Direita
As festas e celebrações eram organizadas regularmente como forma de enganar o tédio e criar laços comunitários mais fortes.
O Governador da Praça promovia as celebrações, como foram as do aniversário do Rei D. Pedro II em 1677:
“Em véspera dos anos de Sua Alteza, que Deus guarde, mandou o Senhor Governador fazer luminárias. E no dia de manhã missa e pregação, cargas de artilharia e mosquetaria; na tarde deu posse de uma companhia dos da guarda ao Senhor Lopo Furtado de Mendonça com todo o luzimento e grandeza, banquetes esplêndidos a todos. Na mesma tarde com recolher do campo pera dentro, houve festas de cavalo com toda a bizarria.” (COSME, 2003, p. 90-91, citação do Códice nº 296, depositado nos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa)
Noutros casos era a própria Coroa Portuguesa que promovia a celebração de eventos de carácter nacional em Mazagão, como foi o caso da celebração do casamento da princesa D. Maria em 1760 ou da celebração do nascimento do príncipe D. José no ano seguinte.
A maior parte das celebrações eram religiosas, fossem procissões ou celebrações de dias santos, e chegavam a durar 15 dias. Especialmente importantes eram as que celebravam o resgate de cativos, que desfilavam pela Cidadela com as suas correntes e grilhetas, numa encenação que incluía também a exibição de instrumentos de tortura.
A Rua da Carreira
“Também aqui se fazem os ofícios divinos pela Quaresma mui bem, e não menos pelo Carnaval (…) Em quinta-feira de Endoenças houve lava-pés com toda a majestade porque serviu um Governador a outro com o melhor da terra; na noite houve procissão na Misericórdia das bandeiras (…) O dia de Pascoa não deixou aqui de ter que ver por ser muito festival (…) Em dia de São João montou o Senhor Governador a cavalo pela madrugada com toda a cavalaria desta praça, a metade ao nosso uso e a metade à mourisca que era bem vistosa coisa. Foram aos revelins dela, onde houve muitas escaramuças e carreiras como todos os anos é estilo, não deixando de ser em o Senhor Governador fazer tudo com bizarria.” (COSME, 2003, p. 91, citação do Códice nº 296, depositado nos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa)
Muitas das festas estavam associadas a jogos. Alguns eram disputas de carácter guerreiro, como as carreiras, torneios ou o jogo das argolinhas, que era realizado na Rua da Carreira, em que os cavaleiros tinham que enfiar as suas lanças em argolas presas em cordas. Outro jogo muito popular era denominado cavalhadas, que era uma espécie de guerra de bolas perfumadas, travada com bolas ocas de barro cozido ao sol, cheias de flores e fitas pintadas, chamadas alcanzias. O termo alcanzia tem origem no árabe al-kanzía, que significa tesouro.
A Torre do Rebate, actual minarete da Mesquita
A dieta normal dos Mazaganistas era composta de produtos importados da metrópole, como cereais sob a forma de grão, farinha ou biscoito, carne ou peixe seco, azeite e vinho. A possibilidade de incluir frescos na alimentação dependia da capacidade de os plantar e, se bem que existissem pequenas hortas nos quintais da Cidadela, não satisfaziam as necessidades dos habitantes. A solução estava nos terrenos circundantes, onde os perigos eram constantes. Aí, quando era possível, plantavam trigo e cevada, favas, vinhas, melões. Alguns habitantes chegavam a dormir no exterior da praça para proteger as suas culturas.
“Semeavam os moradores até trezentos moios de cevada e favas e fazem-se grandes meloais e há muitas hortas e mais de vinte serrados, a que chamam quintas, muitos deles com mil bacelos fora estremadas latadas e outras árvores e notável a grandeza sustenta isto em berberia, guardando de noite e de dia com as armas na mão para o qual efeito dormem muitas vezes homens fora e tendo custado muitas mortes e cativeiros aos mouros que as vem destruir (…) é o campo fertilíssimo assim de ervas e lenha como de caça, porque há todo o ano que trazem em tanta quantidade que se tem sustentado a gente em muitas fomes que trazem particularmente algazes _ palmitos e outras muitas ervas de campo.” (FARINHA, 1970, p. 65, citando Belisário Pimenta)
O Campo da Duquela
O dia-a-dia de Mazagão tinha na saída diária da Praça o seu momento de fuga à sensação de encarceramento e de possibilidade de apanha de lenha e de forragem para o gado, para além da actividade agrícola de subsistência, que era desenvolvida nos momentos em que os ataques marroquinos assim o permitiam. A actividade agrícola era extremamente incerta, já que os cavaleiros marroquinos destruíam frequentemente as culturas plantadas, fossem hortas, árvores de frutos ou pastagens. Da mesma forma, inquinavam os poucos poços existentes no exterior com animais mortos, o que justificava plenamente a existência da cisterna na Cidadela com capacidade para cinco mil metros cúbicos de água.
Simão Correia Mesquita descreve as hortas destruídas pelos Mouros, dizendo que um dia “amanheceu, envolto o Poço do Duque de onde bebem os moradores da Praça, e as hortas destruídas pelos Mouros; hostilidade, com que eles costumam muitas vezes desafiar a guarnição da Praça”. (MESQUITA, 1751, p. 10)
Outro relato dá conta que em 1677 se viveu um período de acalmia no relacionamento com os Mouros, o que permitiu realizar os trabalhos no campo sem problemas de maior:
“Fez-se mais este ano muito feno porque o não queimaram os Mouros como costumam todos os anos (…) tem-se lançado muitas vezes chinchorro e recolhido sem rebate”. (COSME, 2003, p. 90, citação do Códice nº 296, depositado nos Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa)
Forno comunitário em Mazagão
Assim, fora dos momentos de trégua momentânea, a actividade ficava reduzida à recolha de lenha, apanha de tâmaras e de forragem para o gado, à caça, à apanha de caracóis e à pesca. Jean Mocquet refere que os caracóis eram um dos alimentos principais da dieta dos Mazaganistas. Outro elemento da dieta era um mel de cor branca que as abelhas produziam em favos que faziam nos telhados das casas. (MOCQUET, 1617, p. 57)
A caça era e a pesca eram abundantes, mas arriscadas em termos de actividades. No campo caçavam-se leões, lebres, perdizes, javalis e chacais. Nos laredos e no fosso apanhavam-se ameijoas, mexilhões, ouriços-do-mar e lagostas.
“Tem a baía e costa grande quantidade de pescaria e na baía se tomam no verão de peixe de cosso a que chamam tazartes e de cações, quantidade que se houver redes, e pescadores se carregam navios, e pela costa grande número de pargos, safios e pescadas e outros muitos géneros de peixes e no tempo em que as tormentas não dão lugar aos barcos saírem ao mar se pesca da fortaleza de todos os quatro lanços do muro e há junto a ela na baixa-mar muitos currais (a que chamam pesqueiras) que se cobrem de mar que na vazante ficam de ordinário cheias de peixe que se mata à fisga em muitas ocasiões em grande número tem a mesma baixa-mar grande cópia de marisco como são lapas, ouriços e mexilhões, de notável grandeza lavagantes, moreias, safios de cova que se trazem notáveis quantidades no invernos.” (FARINHA, 1970, p. 66, citando Belisário Pimenta)
A muralha do pano Nascente e os muros da “bouskeda”
Os Mazaganistas desenvolveram um processo de pesca engenhoso, que realizavam nos laredos situados à volta da Cidadela, baseado na construção de muros de pedra de formando uma espécie de meia-lua ou de forma rectilínea, que ficavam cobertos pela água do mar na maré cheia. Tendo em conta que a descida da água quando a maré vazava era extremamente rápida, devido à pouca inclinação dos laredos, o peixe ficava retido dentro desses muretes na maré vazia e era então capturado. Chamava-se a essa técnica pesqueira, que ainda hoje é realizada em El Jadida e na região de Casablanca com o nome bouskeda ou bouskira, sendo óbvia a origem do termo no português. No campo exterior existia inclusivamente uma rua situada entre valados chamada Rua da Pesqueira.
No interior da Cidadela criavam-se galinhas e algum gado.
O Borj Nador, atalaia de Safim
À semelhança das restantes Praças-fortes, Mazagão dispunha de um campo exterior estruturado e organizado com defesas de caracter precário, as atalaias, os valos e as tranqueiras, combinadas com procedimentos rotineiros rígidos e um sistema ofensivo, preventivo de ataques vindos do exterior, baseado na acção dos almogávares, força de cavalaria de elite, que não só protegiam a área envolvente à praça, como faziam ataques surpresa contra as aldeias vizinhas, procurando afastar os seus habitantes e pilhar os seus bens. (S. LUÍS, 1849-1850, p. 183)
As atalaias eram postos de observação que vigiavam o terreno circundante, comunicando com a atalaia-mãe, chamada o facho, o qual dispunha de um mastro onde se erguia uma espécie de bandeira sempre que a situação estava calma, sinal que era transmitido à Torre de Rebate da Praça. Os valos ou valados eram muros de pedra solta, com cerca de 1,70 metros de altura, destinados a encerrar a área de cultivo e impedir ataques surpresa da cavalaria marroquina. As tranqueiras eram paliçadas de madeira que funcionavam como portas para encerrar os caminhos existentes entre os valos.
Valos ou valados
O excesso de ocupação do campo exterior com estruturas para a delimitação das hortas, chegou ao ponto em que o Rei ordenou em 1621 o derrube de muitas delas, já que perturbavam as próprias defesas da Praça:
“Sou informado que, de alguns anos a esta parte, junto aos muros da Vila de Mazagão, e no contorno dela, assim dentro dos revelins, como fora deles, se fizeram e plantaram muitas quintas e hortas, cercadas de valados e paredes altas e taipa e de pedra e barro, e pedra e cal; dentro das quais quintas e hortas, os mouros, quando correm àquela fortaleza, se recolhem e amparam, ficando seguros, para se avizinharem mais ao muro. Mandava o Rei, pelos seus oficiais, que se derrubassem todas as hortas e quintas, para que se deixassem os revelins cumprir a sua missão de defesa.” (FARINHA, 1970, p. 50-51)
Planta da Praça de Mazagão em 1727 de João Thomás Correa, in Livro de várias plantas deste Reino e de Castela, 1699-1743
A estrutura do Campo Exterior de Mazagão encontra-se desenhada em várias plantas (Planta de Mazagão de 1802 de Ignacio António da Silva, Planta da Praça de Mazagão em 1727 de João Thomás Correa e a Planta de Mazagão da Casa de Ínsua) e representada em algumas gravuras (Perspectiva Cavaleira de Mazagão, Estudo da táctica à Vauban durante o cerco de 1769 e Siège de Mazagan de 1781), o que nos permite avançar com um esquema do seu possível desenho, implantado sobre a fotografia aérea actual da cidade. A representação nas plantas antigas é em geral muito deformada e inclusive existem plantas desenhadas de memória, como a de Ignácio António da Silva, o que dificulta a compreensão da sua dimensão e proporções.
Planta de Mazagão de 1802 de Ignacio António da Silva. Biblioteca Nacional de Portugal
Disposição das tropas do Rei Sidi Mohamed no cerco a Mazagão de 1769. Casa de Ínsua
Para além disso, tanto a Planta de Ignácio António da Silva, como a pertencente ao Arquivo da Casa de Ínsua, tendo em conta que ilustram o cerco de 1769, sobrepõem as defesas do campo exterior com as estruturas de cerco de Sidi Mohamed Ben Abdellah, o que cria confusão, pelo que neste artigo se separam umas estruturas das outras em elementos gráficos distintos. Aliás, vários autores afirmam erradamente que as defesas do campo exterior português eram constituídas por umas tranqueiras em ziguezague, confundindo as estruturas portuguesas com os aproches do cerco marroquino.
O trabalho de Adolfo Guevara sobre o Campo Exterior de Arzila ajuda a compreender o campo exterior de Mazagão, sobretudo na definição dos seus elementos fundamentais e na relação que apresenta entre a sua área e a da Praça. Por outro lado, esta base de trabalho tem em conta o princípio de que o desenho do campo exterior deixou cicatrizes e influenciou o próprio desenho urbano actual de El Jadida, pelo que o traçado dos valos e eixos procura evidências nas vias e áreas homogéneas para se implantar na cidade de hoje.
Ville de Mazagan. Plan d’aménagement et d’extension approuvé le 24 novembre 1916. Bibliothèque Nationale de France
O Plano de Urbanização de 1916, curiosamente, abarca uma área em tudo semelhante à da influência exterior da Praça-forte portuguesa, contendo elementos fundamentais para cruzar com a informação da época, ao nível da topografia, traçado viário e áreas homogéneas.
Perspectiva Cavaleira de Mazagão. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenheria Militar- Direcção dos Serviços de Engenharia
Planta de Simão Correa Mesquita de 1752 in Relação do Choque que Tiveram os Cavaleiros da Praça de Mazagão com os Mouros de Aducala e Azamor em 7 de Dezembro de 1751
Um desenho que esclarece e identifica alguns elementos e áreas envolventes à Cidadela, se bem que também muito deformado, é a Planta de Simão Correa Mesquita de 1752, incluída na obra citada na bibliografia, que tem a grande virtude de representar as colinas circundantes, elementos preciosos para a determinação da sua localização. São o caso do Faxo, o Faxinho, o Fossinho, Bofé, o Cotovelo, a Alagoinha, a Aducala, a Tranqueira Queimada, o Sítio da Areia, o Palmeirinho, as Portelas, a Teza do Gral, a Roixinha, o Barreiro, Matamorras, a Guarita de Mazagão Velho, o Redondo, Mazagão Velho, Domingos Afonso, Pedralvinho, Palmito, Lomba, Mançor, Chão do Freitas, o Campo Luís Fernandes, o Morreto da Figueira, Rotamal, a Tranqueira Queimada ou o Caminho Duro. (MESQUITA, 1751, obra citada)
As descrições da época fornecem outros elementos e confirmam alguns dos cartografados, como nomes de terrenos, valos e atalaias, sendo a representação gráfica neste artigo de alguns deles também uma conjectura. É o caso da Tranqueira de Gonçalo Barreto, do Valo da Terra de N. Senhora, o Valo do Sapal, o Valo de Lázaro Fernandes, o Campo do Faxo, o Sítio da Coitada, o Sítio da Unha do Forno, as Covas da Areia, a Rua do Forno da Alagoa ou a Rua da Pesqueira (S. LUÍS, 1849-1850, p. 183-193), o Campo da Rochinha (CONCEIÇÃO, 1823, p. 117), a Planície de Lázaro Fernandes, o Barreiro, Portelas, Cova, a Tranqueirinha, o Muro da Beringela ou o Muro da Baleia (CORREA, 1763, obra citada), a Atalaia do Ribeirão ou o Lugar dos Medos (AMARAL, 1989, obra citada), a Tranqueira da Pedreira, o Campo das Areias, os Vales da Quinta, o Vale de Maio ou a Pesqueira (CUNHA, 2012, p. 209-210), a Terra das Atalaias Curtas, a Tranqueira do Meio, a Tranqueira dos Valos Pequenos, a Tranqueira dos Paus, a Tranqueira do Valo Novo ou o Campo do Leão (SOUSA, 1844, p. 364-367).
O pano Nascente da Cidadela
Na formulação do traçado e implantação dos vários elementos do campo exterior e das atalaias foi cruzada a informação da Planta de Simão Correa Mesquita de 1752 com a topografia do terreno, fazendo coincidir os elementos de atalaia, elevações e ribeiras com o terreno real. Foi ainda aceite a localização de Mazagão Velho no lugar de Mazighane, conforme propõe Jilali Derif no seu trabalho referenciado na bibliografia, apesar de não coincidir metricamente com os cerca de quatro quilómetros de distância à Cidadela, os três quartos de légua referidos nas crónicas. O tema não é consensual, não parecendo razoável relacionar a antiga Almedina com o estaleiro de construção do Castelo Real de S. Jorge ou com uma eventual ocupação portuguesa afastada do mar. As referências a incursões portuguesas a Mazagão Velho seriam essencialmente para neutralizar focos de eventuais ataques à Cidadela.
O campo exterior
Os procedimentos rotineiros diários eram os seguintes:
De manhã saíam da Praça os escutas, cortadores ou atalhadores, que verificavam palmo a palmo o campo exterior, em busca de inimigos emboscados. Se tudo estivesse calmo, saíam então as sentinelas ou atalaias e com eles os costas, que os protegiam. Colocavam-se nos seus postos de observação, geralmente uma colina ou mesmo uma pequena torre, e avisavam o facho que o terreno estava seguro. O facheiro erguia então a bandeira, ou cesta envolta em pano, e a Torre de Rebate do castelo recebia a mensagem, tocando o sino para que a porta da Cidadela se abrisse e os moradores saíssem para as suas tarefas no campo. Ao mínimo sinal de perigo, o facho era arreado e a Torre de Rebate tocava a rebate, fosse com o sino, fosse com tiros de canhão ou sinais de fumo, as fumaças. Todos voltavam para dentro com a maior rapidez e a porta era fechada.
Chamava-se a este sistema defensivo, que combinava defesas precárias com procedimentos rotineiros rígidos, segurar o campo.
Robert Ricard atribui a este sistema o sucesso da longevidade da ocupação portuguesa de Ceuta, Tânger e Mazagão, afirmando que “os Portugueses praticavam toda uma técnica que corrigia em parte os inconvenientes da ocupação confinada. Esta técnica consistia de um sistema complexo de vigias, sentinelas e batedores, que permitiam organizar a segurança dos arredores da praça durante parte do dia; esta operação chamava-se segurar o campo e, quando estava realizada, dizia-se que o campo estava seguro. Graças a esta organização, era possível assegurar o abastecimento da cidade, particularmente em água, madeira e forragem, e a liberdade da caça e da pastagem, sem ocupar propriamente o território, e consequentemente sem despender o esforço militar e financeiro que implica uma ocupação propriamente dita”. (RICARD, 1933, p. 448-449)
As ruínas de Mazighane, que alguns autores identificam como o Mazagão Velho das crónicas
Jean Mocquet, farmacêutico do Rei Henrique IV de França, visitou Mazagão no século XVII e descreveu os procedimentos para segurar o campo:
“Todos os dias de manhã saem de Mazagão cerca de 40 de cavalo que vão descobrir o campo e nele ficam até o meio-dia; e depois desta hora saem outros 40 que só voltam à tardinha. Seis deles, chamados atalaias, tomam lugar em postos afastados e ficam de vigia; e, se eles descobrem qualquer coisa de suspeito, recuam rapidamente e, visto este movimento da vigia da povoação, dá logo duas ou três badaladas, ao mesmo tempo que os outros de cavalo correm na direcção da atalaia em perigo. Para dar sinal à Praça há em todos os lugares, onde as atalaias se postam, um grande pau de madeira de mastro, ao alto do qual içam com uma corda uma espécie de bandeira, que é o aviso para os moradores se armarem.” (MOCQUET, 1617, p. 56)
As defesas próximas da Cidadela de Mazagão, constituídas pelo fosso, a estrada que o circundava e a esplanada em terra que o protegia, que formava dois revelins, um deles protegendo a Porta da Vila e outro o Baluarte de S. Sebastião
Outra descrição do campo exterior é feita por um português no século XVIII, citado por David Lopes.
“Todo o campo que se avista da fortaleza é plano, só para o lado direito fica um pequeno outeirinho: os mouros que vêm, não a investir mas sim a roubar, se escondem junto dele, até que chegue a noite para, no silêncio dela, virem a meter-se nas hortas. A gente que da praça sai a este costumado e preciso exercício de conduzir lenha vai observando todos os sítios e vendo se ficaram alguns escondidos; porque são tais os mouros que, quando não têm parte cómoda para as suas emboscadas, cavam no chão poços estreitos da altura de uma braça e neles se escondem, até que os do presídio, que vão a cortar a lenha ao mato, passem adiante; então, quando mais ocupados os vêm no exercício de cortar e carregar, de dentro do mato lhes saem magotes deles, que os obrigam a montar, e, tomando as armas, a porem-se em defesa, vindo sempre retirando-se para junto da praça; os que ficaram metidos nas covas e poços, que têm feito, lhes saem pelas costas com que, apanhando-os no meio, se lhes faz dificultosa sem que seja por meio de muito sangue. Este é o contínuo exercício dos habitantes de Mazagão, de que são tantas as batalhas como os dias; porque apenas haverá um em que não haja um choque, uma escaramuça, uma emboscada, um assalto, uma batalha…” (LOPES, [1937] 1989, p. 42-43)
A área encerrada por valos do Campo Exterior de Mazagão, chamada Terra das Atalaias Curtas
O Terreno Consolidado, ou área estruturada por valos
O Campo Exterior de Mazagão estruturava-se em duas zonas distintas:
A zona mais próxima da Cidadela, chamada Terra das Atalaias Curtas (SOUSA, 1844, p. 364), área encerrada pelos valos, que formavam ruas barricadas em pontos estratégicos por tranqueiras. Organizava-se num esquema de talhões bem delimitados e de traçado regular, e era vigiada continuamente, inclusivamente durante a noite, fazendo-se saídas nocturnas da Cidadela para defender as colheitas aí plantadas. Era vigiada exteriormente pelas chamadas Atalaias Curtas ou Fachos.
A zona mais afastada, onde se praticava a caça e a apanha de lenha, e que era especialmente ocupada por cavaleiros durante os períodos das sementeiras e colheitas. Era vigiada pelas Atalaias Longas ou simplesmente Atalaias.
Sobreposição dos elementos do Campo Exterior de Mazagão no traçado de El Jadida, procurando evidências no traçado viário e nos tecidos urbanos homogéneos
O Terreno Organizado, ou área estruturada em talhões
Os homens que faziam serviço nas atalaias, os atalaias, eram geralmente degredados, que cumpriam essa missão de risco para beneficiar de um pagamento bem remunerado. Convém esclarecer que o degredo era um destino muito comum para os condenados portugueses, já que constituía uma solução muito conveniente para o Estado, que os afastava da sociedade e não acarretava custos para os cofres públicos, já que os degredados tinham que encontrar forma de subsistência. O condenado podia escolher o destino do seu degredo, fosse o Algarve, normalmente Castro Marim, Marrocos ou o hemisfério Sul, fosse Angola ou o Brasil. Uma pena no Algarve não era reduzida, mas se fosse cumprida em Marrocos era reduzida para metade e em Angola para um quarto. Como regra geral os degredados que escolhiam Angola nunca regressavam, fosse por morte prematura ou por se estabelecerem na colónia em definitivo, muitos escolhiam Marrocos, nomeadamente Mazagão. O ingresso como atalaias ou batedores no campo exterior era geralmente a única forma que tinham de ganhar algum dinheiro, já que era uma actividade muito arriscada e bem paga. (AMARAL, 1989, obra citada)
As Atalaias de Mazagão e os principais locais referenciados, como planícies, morros ou vales, evidenciando que o campo exterior se desenvolvia ao longo da Praia de Haouzia
As saídas da cavalaria em acções de vigilância e defesa preventiva
A guerra no campo exterior fazia-se a cavalo com lança, em grupos bem treinados comandados por um almocadém, invariável um mourisco da região, que em Mazagão se chamavam Estuques e que participavam também nas acções de contra-guerrilha levadas a cabo nas áreas mais afastadas, as almogavérias ou correrias. Muitos eram nobres, geralmente os mais jovens e briosos, mas também muitos cavaleiros da Ordem de Cristo destacados em Mazagão. A táctica utilizada pelos cavaleiros portugueses procurava tirar partido do factor surpresa e das condições do terreno, inclusive da direcção do sol, e utilizava a disciplina para ganhar vantagem no primeiro embate e superar a invariável desvantagem numérica.
Os besteiros, espingardeiros e artilheiros tinham por missão a defesa da praça, podendo participar em acções exteriores de maior envergadura e com características militares mais tradicionais.
Os habitantes eram mobilizados em caso de ataque, concretamente todos os homens de idade acima dos 13 anos.
O Baluarte do Anjo
Alguns episódios marcaram a história de Mazagão, desde a sua construção.
Na primeira capitania da Praça, a cargo de Luís de Loureiro, Mazagão é continuamente atacada, sobretudo com acções militares vindas de Azamor. No ano 1546, Luís de Loureiro ataca Azamor, penetrando no seu interior, e fazendo numerosos prisioneiros. Os Mouros preparam-lhe então uma cilada, que aconteceu no ano seguinte, na qual ficou ferido o capitão e morreram 120 cavaleiros portugueses, entre os quais o seu filho.
A partir de 1559 o sultão Mulai Abdallah inicia uma serie de ataques à Cidadela, que se prolongariam pelos anos seguintes, e que levam a regente D. Catarina a pedir um parecer sobre o abandono da praça. Inclusivamente parte da guarnição militar é retirada e evacuadas mulheres e crianças. Ao saber desta situação o sultão decide por cerco à Vila no ano de 1562, o que provoca uma mobilização geral no reino, principalmente em Lisboa. O exército marroquino é imenso, estimado num total de 120.000 homens, dos quais 37.000 cavaleiros, 13.500 sapadores e 24 peças de artilharia.
“Os cidadãos da cidade de Lisboa (…) de improviso fizeram mil homens de guerra para o socorro, que logo mandaram, e outros tantos fizeram os oficiais mecânicos da dita cidade, os quais davam o dinheiro com muito grande alvoroço e contentamento.” (FARINHA, 1999, p. 66)
Outros autores defendem que foram enviados de Lisboa 20.000 homens armados. O capitão Álvaro de Carvalho regressa de Portugal com uma armada na qual iam muitos cavaleiros, entre os quais 600 fidalgos que haviam obtido autorização da regente para partir de Lisboa em auxílio dos seus irmãos de armas. O cerco durou três meses e a guarnição de 2.600 homens resiste, repelindo todas as tentativas dos mouros para penetrar na Cidadela, ficando para história Rodrigo de Souza o herói de Mazagão. Rodrigo de Souza, também referenciado como Rui de Souza Carvalho era irmão do capitão Álvaro de Carvalho e seria nomeado governador após o cerco.
Quando a 7 de maio o filho do sultão decidiu levantar o cerco, já teriam morrido mais de vinte e cinco mil mouros e cento e dezassete portugueses, para além dos 270 feridos do lado português. No final desse ano as Cortes reúnem-se e votam contra o abandono de Mazagão.
O pano Sul e o Baluarte do Anjo
No ano de 1640 ocorre um episódio que envolveu o Governador da Praça, D. Francisco Mascarenhas, e a quase totalidade dos cavaleiros de Mazagão, que ficou conhecido pelo nome de “desaventura do Conde”.
Reza a história que o marabu El Ayachi engendrou um plano para aniquilar os portugueses de Mazagão, tendo enviado dois xeques amigos do capitão para “pedirem fingidamente ajuda a este para submeterem ao rei de Marrocos alguns aduares que diziam ter-se rebelado”. O capitão prometeu-lhes auxílio, “contra o parecer dos principais cabos, nomeadamente do adail Luís Valente Barreto e do almocadém António Gonçalves Cota”, e saiu da Cidadela com cento e trinta e nove cavaleiros prontos para o combate. Os vigias da Atalaia do Ribeirão não se aperceberam da presença de um grande contingente de mouros emboscados junto ao local dos Medos, onde alguns deles simulavam uma luta entre si. Quando os portugueses aí chegaram “começaram a surgir subitamente os guerreiros de El-Ayachi, das ciladas onde se tinham escondido. Os portugueses ficaram então completamente cercados por mais de quatro mil mouros, entre cavaleiros e homens de pé”. No final só 3 portugueses voltaram à Cidadela, tendo 118 sido mortos e 18 feito prisioneiros. “Dos mouros terão morrido muitas centenas.” (AMARAL, 1989, obra citada)
A Cisterna Manuelina, símbolo da resistência Mazaganista. A Cisterna era o coração da Cidadela e a água, o seu sangue
No ano de 1762 uma epidemia de febre malina atingiu os Mazaganistas. Mais de sessenta casas foram colocadas em quarentena e os seus habitantes submetidos a purgas. O Hospital da Misericórdia não tinha camas nem remédios suficientes para acudir tamanha desgraça. A epidemia veio evidenciar a pobreza, promiscuidade e falta de condições sanitárias em que viviam muitos dos Mazaganistas, que explicam a facilidade com que se propagou.
A fome instala-se e é autorizado o abate de cavalos dos militares para alimentar a população. A carência de bens é tal que o próprio azeite acaba, não existindo combustível para acender as candeias e vive-se numa total obscuridade após o pôr-do-sol.
Os cofres da Praça entram em bancarrota e deixa de haver dinheiro para pagar aos militares, verificando-se inúmeros casos de insubordinação. Os militares que são evacuados para Lisboa para tratamento recusam-se a regressar. Em 1763 já contavam com três anos com o soldo em atraso. A situação só se resolve após a substituição do governador.
Configuração do modo como se achava sitiada a Praça de Mazagão pelo Imperador de Marrocos. 1814, Autor desconhecido. Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar
O ano de 1768 chegou e com ele uma situação explosiva na Praça de Mazagão, com pilhagens no Armazém Real e no Celeiro. O Governador proíbe todas as saídas fora de portas e pairam rumores de um novo cerco. De Lisboa chegam canhões, pólvora e trigo.
No dia 4 de Dezembro, 75.000 soldados e 44.000 sapadores do exército do Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah iniciam o cerco, cavando trincheiras ao redor da Cidadela.
“Durante várias semanas, os sapadores cavam trincheiras durante o dia, e os soldados acendem à noite imensas fogueiras, cuja intensidade luminosa rompe a tranquila quietude nocturna da planície dos Doukkalas. Uma nova guerra de nervos instala-se: as tropas mouras querem acima de tudo impressionar os Mazaganistas, suscitar a inquietude, a angústia, o próprio medo.” (VIDAL, [2005] 2008, p. 43)
A intensidade dos bombardeamentos é tal que o Governador dá ordem de retirar os pavimentos das ruas para evitar os ressaltos dos projécteis.
Disposição das estruturas do cerco de Sidi Mohamed Ben Abdellah em 1769
Para além de trincheiras rodeando a Praça, são instalados vários redutos para morteiros, dos lados Norte e Sul, concentrando-se a infantaria e a cavalaria do lado Poente, nos limites dos valos do Campo Exterior.
O cerco de Sidi Mohamed é uma acção irreversível, no sentido de constituir uma decisão definitiva em relação à expulsão dos portugueses de Mazagão. Para Portugal, a questão e Mazagão era há muito um fardo sem solução, que consumia verbas importantes, que não trazia benefícios evidentes para o país e que inviabilizava um acordo de paz com Marrocos.
Esquema de progressão das trincheiras através de aproches
A táctica de cerco de Sidi Mohamed tem por base a abertura de valas em ziguezague, conhecidas por aproches (do inglês approach, aproximar), sendo as trincheiras colocadas em posição frontal à muralha, para fogo de artilharia, e os aproches em posição diagonal, para avanço no terreno, ligando duas trincheiras entre si.
Conforme já foi referido, a representação dos aproches em várias plantas induziu em erro vários autores que os entenderam como estruturas de defesa portuguesas e não como estruturas do cerco marroquino.
Estudo da táctica à Vauban durante o cerco de 1769. Casa de Ínsua
Como refere Othman Mansouri, ainda durante o reinado de Mulay Ismail Portugal tentara estabelecer um acordo de paz com Marrocos, mas a presença dos portugueses em Mazagão inviabilizou qualquer entendimento.
“Em 1689 o sultão Mulay Ismail reclamou ao rei de Portugal a libertação de El Jadida. Em 1691 nova embaixada portuguesa, presidida por José Álvares, foi enviada a Meknés no intuito de chegar a um acordo relativo aos prisioneiros, mas Mulay Ismail levantou o problema de El Jadida e, a 1 de Setembro do mesmo ano, dirigiu ao rei de Portugal, D. Pedro II, uma carta a este respeito”. (MANSOURI, 2004, p. 96-97)
«Le siège de Mazagan» numa gravura de 1781. Autor desconhecido
A decisão de abandono de Mazagão já estava tomada havia algum tempo. A família do Governador e muita fidalguia já tinha partido para Lisboa, mas era necessário manter o segredo para evitar mais problemas com a população.
Num documento redigido após a evacuação, a Coroa Portuguesa considerava o presídio não só “muito inútil para a religião, para o comércio e para a navegação, como custava a Portugal uma despesa extraordinária e incrível”. (VIDAL, [2005] 2008, p. 45)
Em Fevereiro de 1769 é comunicada a decisão de abandono da Praça. Os Mazaganistas revoltam-se, recusando-se a aceitar a ordem de evacuação. Os tumultos duram várias horas, mas no final a população resigna-se.
É então organizado um plano de evacuação. Primeiro saem mulheres e crianças, depois os homens mais jovens e por fim os inválidos. Dos bens a transportar constam as imagens sagradas, as pratas e ornamentos das igrejas, as roupas e as peças de artilharia de bronze. Tudo o resto devia ser destruído.
A Porta do Mar, à época entaipada, e a Porta da Ribeira, hoje forno de pão comunitário
Após negociações com Sidi Mohamed, é estabelecida uma trégua de três dias para permitir a saída dos habitantes pela Porta da Ribeira, um a um, devido à sua estreiteza.
Antes de abandonar a cidade, os Mazaganistas destroem tudo o que podem.
“Possuídos por uma raiva destrutiva, os homens esvaziam as suas casas, partem as portas, danificam as fachadas, empilham os móveis na rua e pegam-lhes fogo. De seguida precipitam-se para a igreja, destroem a cruz, desmontam o altar e atiram as pedras por cima das muralhas. Seguem-se as armas: espingardas e canhões em ferro tombam também para dentro de água. Os sinos são também atirados abaixo das torres e campanários. E para não deixar nada vivo, as patas dos cavalos são partidas ou cortadas.” (VIDAL, [2005] 2008, p. 49)
Na sua saída no dia 11 de Março os portugueses não respeitaram os termos do acordo, minando os baluartes do lado de terra, que explodiram à passagem das tropas marroquinas provocando, segundo alguns autores, mais de 8.000 mortos.
As destruições são tais, que a vila toma o nome de Al-Mahdouma ou a arruinada, e fica encerrada e abandonada durante quase 50 anos.
A Porta da Ribeira, por saíram um a um os habitantes de Mazagão
Os dois mil habitantes embarcam em 14 navios e permanecem em trânsito em Portugal até 15 de Setembro, data em que partem para o Brasil, onde viriam a fundar Vila Nova de Mazagão, na Amazónia.
Com a partida dos Mazaganistas, coloca-se a inevitável questão de saber se é possível manter uma cidade retirando ao seu corpo a alma, ou se, é possível transportar a alma de uma cidade sem levar consigo o seu corpo:
“Com o passar das vagas, a cidade-fortaleza de Mazagão vai se configurando apenas como uma “cidade-da-memória”, cuja identidade guerreira, tão arduamente construída, vai aos poucos se dissolver nas espumas flutuantes do tempo…” (FURTADO, 2009, publicação citada)