Tetuan vista de Ain Bouanen
Na Primavera de 1437 a guarnição portuguesa de Ceuta ataca a cidade de Tetuan, arrasando-a completamente. Tetuan ficaria abandonada durante cerca de meio século, servindo de base para os ataques portugueses ao interior do território, sendo apenas reedificada por volta de 1484 por mouriscos expulsos de Granada, comandados por Sidi Ali Al-Mandarí, o Almendarim das crónicas portuguesas.
O controlo esporádico das fortificações de Tetuan por Portugal consta inclusivamente da crónica da tentativa falhada para conquistar Tânger desse mesmo ano, tendo o exército que fez o percurso entre Ceuta e Tânger por terra, pernoitado junto aos muros da cidade na noite de 10 para 11 de Setembro.
O ataque português não foi devidamente reconhecido pelos historiadores, sendo a destruição de Tetuan erradamente atribuída aos espanhóis, que alguns autores defendem a teriam arrasado em 1400.
A Medina de Tetuan
O investigador espanhol Guillermo Gozalbes Busto refere que o Castelo de Tetuan constituiu sempre um entrave às incursões portuguesas realizadas a partir de Ceuta para pacificar as regiões situadas a Sul da cidade.
“Ocupada Ceuta, em 1415, pelos portugueses, estes lançaram frequentes incursões em direcção a Sul, esbarrando sempre com os guerreiros que tinham a sua base no castelo de Tetuan.
No ano de 1437 o capitão de Ceuta, D. Pedro de Meneses, decidiu remover aquele obstáculo fortificado e enviou uma expedição, comandada pelo seu filho bastardo, D. Duarte, o qual assaltando as muralhas, penetrou na cidade, evacuada previamente por habitantes e defensores, incendiou-a e destruiu meticulosamente tudo o que podia ser destruído”.
Tetuan permaneceu arruinada e deserta servindo, frequentemente, de acampamento das tropas lusitanas quando iam ou regressavam das suas incursões ao interior do país”. (GOZALBES BUSTO, 1986, pp. 141-142)
Segundo o autor, estes factos têm sido referidos em diversos trabalhos de forma errada, já que o ataque não se deu em 1400 por forças espanholas, nem a cidade esteve abandonada oitenta anos, o que o levou inclusivamente a escrever um artigo intitulado Un Error Histórico.
Pescadores na praia de Martil
O ataque espanhol de 1400, realizado por forças navais de Castela no reinado de Enrique III, não terá chegado ao Castelo de Tetuan, mas atacado apenas o seu porto, chamado Marsa Tetuan, ou Porto de Tetuan, um importante ninho de corsários, hoje chamado Martil.
Os primeiros anos que se seguiram à conquista de Ceuta foram de grande turbulência para a guarnição portuguesa e para os habitantes das regiões periféricas da cidade, já que se sucederam várias tentativas para a sua reconquista por parte do Reino de Fez, enquanto os portugueses realizavam frequentemente incursões aos campos vizinhos, procurando afastar os seus habitantes para áreas mais distantes e ao mesmo tempo obter abastecimentos, sobretudo cereais e gado.
“D. Pedro de Meneses, o seu primeiro Capitão, domina, por terra e mar um raio de 20 a 40 Km, dentro do qual só lhe resistia, ao cabo de alguns anos, com certo êxito, um ponto fortificado no vale do Rio Martin: o castelo de Tetuan.” (GOZALBES BUSTO, 1988, p. 27)
Zurara, na sua Crónica do Conde Dom Pedro de Menezes, descreve o castelo de Tetuan como um “lugar cercado de muros e torres, onde havia um castelo de menagem e fronteiros” que os portugueses atacaram no ano de 1435, mas não conseguiram conquistar por não terem os equipamentos necessários, mas “tão próximo chegaram das portas que deram nelas com os contos das lanças”. (ZURARA, [1463] 2015, obra citada)
As muralhas de Ceuta
Durante o ano de 1437 vão chegando a Ceuta vários contingentes militares, preparando-se a expedição contra Tânger. D. Pedro de Meneses vê aí uma oportunidade de acabar com a ameaça que constituía o Castelo de Tetuan e terá incumbido o seu filho de dirigir um ataque contra ele. Segundo Zurara, teriam sido estas as palavras de D. Pedro a D. Duarte:
“Ora filho os Infantes hão de passar nesta Cidade este Verão, aqui já está boa peça de gente, assim de cavalo, como de pé, parece-me, que será bem, que antes que eles venham, que tu faças alguma coisa por ti, para que cobras algum louvor, e os meus dias já são pucos, pois eu me sinto cada dia piorar; e posto que de fora não mostro tanto, dentro é muito mais: poderá ser que cobrando os Infantes a Cidade de Tânger, que te encarreguem dela, ou desta Cidade por meu falecimento, aqui ao redor não há coisa para cometer senão o Castelo de Tetuão, vai sobre ele, e creio, que o tomarás, e porás nele alguma gente, que o defenda, até que os Infantes venham, ou o destruirás; pois qualquer coisa que faças, de tudo te vem honra.” (ZURARA, [1463] 2015, pp. [622-623] 420-421)
Uma atalaia de Tetuan
Assim fez D. Duarte na noite do Corpo de Deus em que reuniu os seus ginetes e mandou a infantaria por barco até ao porto de Alminhacar, actual M’Diq, local onde se encontraram. Mas os atalaias de Tetuan avisaram a cidade do perigo eminente que corria e os Mouros trataram de a evacuar, ficando apenas os homens necessários para fechar as suas portas por dentro e escapar-se posteriormente pelas muralhas, por meio de cordas.
Os portugueses entraram facilmente na cidade, que destruíram e incendiaram, já que verificaram não terem possibilidades de a manter em seu poder. As destruições causadas foram de tal monta que os Mouros não tentaram sequer voltar a povoá-la, até que 47 anos depois os exilados do Reino de Granada a reconstruíram.
A autoria portuguesa do ataque e destruição de Tetuan é confirmada nos textos de Zurara, que prova que a cidade era uma base activa contra a presença de Portugal em Ceuta, e também por Leão o Africano, que visitou a cidade pouco tempo após a morte de Al-Mandarí, afirmando que “há algum tempo os portugueses atacaram a cidade e tomaram-na.” (LÉON AFRICAIN, [1530] 1897, Vol. II, pp. 254-255)
Uma rua da Medina de Tetuan. foto Nazha Billah Paula
Segundo o geógrafo Al-Idrisi, Tetuan já existia no século XII, conforme este excerto da sua Primeira Geografia do Ocidente:
“Da cidade de Ceuta, da qual já falámos, ao burgo fortificado de Tetuan, a Sueste, faz-se numa pequena jornada. Tetuan fica num terreno plano, a cinco milhas do Mar Mediterrâneo. É habitado pela tribo berbere dos Majkasa.” (AL-IDRISI, [1154] 1999, p. 251)
Tetuan, cuja origem está num povoado romano implantado nas margens do Rio Martin, que evoluiu para acampamento fortificado na encosta do Monte Dersa por mão do sultão Merinida Abu Tabit, era um aglomerado de pequena dimensão à data da chegada de Sidi Ali Al-Mandari, descrito geralmente como um castelo ou burgo fortificado.
No entanto, Enrique Gozalbes Cravioto estabelece dois períodos distintos da Tetuan Árabe pré-Mandari:
Num período inicial, a existência de um simples Hisn (castelo) do século XII, implantado na encosta do Monte Dersa, o tal burgo que Al-Idrisi descreve, e que foi destruído pelos Almóadas; num período subsequente, uma Casbah situada a uma cota mais alta, construída no início do século XIV pelos Merinidas, precisamente a estrutura destruída pelos portugueses em 1437. (GOZALBES CRAVIOTO, 2012, p. 291)
Plano de la Rada de Tetuan de 1769. Bibliothèque Nationale de France
Sidi Ali Al-Mandarí pertencia à tribo dos Abencerrajes. Era um nobre do Reino de Granada, do círculo mais chegado do Rei Boabdil, e tinha como domínio o Castelo de Piñar, situado na sua fronteira Oriental. Sidi Ali abandona a Península antes da rendição de Boabdil em 1492, instalando-se em Tetuan no ano de 1485.
“Foi um grande guerreiro, tanto jovem como na sua idade madura. O primeiro caso está documentado por Leão o Africano que nos fala de proezas realizadas pelo alcaide na guerra de Granada. O segundo está abundantemente constatado nas crónicas portuguesas da época que não cessam de citá-lo como o infatigável lutador e inimigo das guarnições lusas das fronteiras africanas.” (GOZALBES BUSTO, 1986, p. 144)
Aliás, terá sido o prestígio de Al-Mandarí que permitiu que a sua mulher, Saída Al-Hurra, tomasse o seu lugar após a sua morte de forma incontestada. A esta situação não é estranho o facto de nos anos finais do seu reinado estar fisicamente diminuído, nomeadamente pela cegueira, estando já o verdadeiro exercício do poder nas mãos de Al-Hurra.
As muralhas de Tetuan
As crónicas portuguesas que inicialmente relatam os acontecimentos da guerra de Marrocos, concretamente as de Zurara, Ruy de Pina e Garcia de Resende, não falam do papel de Al-Mandarí na reconstrução da moribunda Tetuan, mas Damião de Góis e sobretudo Bernardo Rodrigues, morador de Arzila, referem largamente o nome de “Almandarim” e a sua luta contra o ocupante português. (GOZALBES BUSTO, 1995, pp. 42-43)
Al-Mandarí é visto pelos marroquinos, de acordo com os escritos de Leão o Africano, como “a cabeça nominal e visível daquele punhado de nobres guerreiros, a flor de Granada, que fundando Tetuan, criaram um foco de resistência anti-cristã contra as guarnições das praças-fortes ocupadas pelos portugueses no trapézio Norte marroquino.” (GOZALBES BUSTO, 1986, p. 144)
A Bab Oqla em Tetuan
Sidi Ali chega a Marrocos com algumas centenas de guerreiros do Reino de Granada, acompanhados de suas famílias. Os granadinos não eram nómadas e as ruínas de Tetuan permitiram que num curto espaço de tempo criassem um local com condições adaptado ao seu estilo de vida.
Este afluxo de Árabes Andalusinos a Marrocos e a importância que tiveram no desenvolvimento urbano das cidades onde se instalaram, importando o estilo arquitectónico Peninsular e a sua cultura, teve como resultado que cidades como Tetuan, Chefchauen, Larache, Fez ou Rabat fossem conhecidas como cidades Andalusas.
Uma nota pertinente: os arabistas portugueses preferem chamar a este estilo andalusino, já que é comum confundir-se a cultura Peninsular Árabe com a da actual Andaluzia espanhola, erro grosseiro e de certa forma incentivado pelo nacionalismo andaluz, que nada tem a ver com a realidade histórica e cultural de que falamos.
Chefchauen, uma das cidades Andalusinas de Marrocos
A cidade que Al-Mandarí vai reconstruir é dotada de muralhas e limitar-se-ia ao actual bairro El-Blad, não incluindo de forma alguma o perímetro hoje existente com 5 Km de extensão. “Esta velha cidade estreita e limitada não pode acolher os mouriscos chegados em 1609, que deram origem aos outros grandes bairros Rbat Es Saffi, Ayun e Tranqat.” (GOZALBES CRAVIOTO, 2012, pp. 288-289)
A cidade de Al-Mandarí não ultrapassava assim em muito os limites do burgo fortificado destruído pelos portugueses, mas no final do seu reinado, quando a sua mulher Aicha As-Sayida Al-Hurra toma conta dos destinos de Tetuan, observa-se um grande desenvolvimento urbano. A imigração constante de mouriscos expulsos da Península e a crescente prosperidade económica resultante da actividade corsária, tornariam Tetuan numa séria ameaça à presença de Portugal no Marrocos Verde.