Uma rua em Arzila, no local do antigo Convento de S. Francisco
A marca da presença portuguesa nas cidades marroquinas não ficou apenas nos testemunhos edificados mais evidentes, nem tão pouco nas influências imateriais. O facto de os portugueses terem vivido nas estruturas urbanas pré-existentes, não se instalando em áreas criadas de raiz, obrigou não só à sua adaptação ao modo vida ocidental, mas sobretudo a necessidades de gestão colonial, muito ligadas à defesa e à logística.
Aliás seria este último aspecto o determinante, já que o urbanismo medieval português e marroquino não eram assim tão diferentes, sendo ambos marcados por traçados viários irregulares, fruto do desenvolvimento orgânico e da adaptação à topografia, e pela hierarquização dos espaços públicos.
E se é verdade que a racionalização das estruturas urbanas se generaliza no período do Renascimento e é uma constante do urbanismo colonial, também é verdade que no próprio urbanismo medieval surgem estruturas ortogonais fruto da sua fundação por meio de operações urbanísticas.
Uma rua na Medina de Safim
A racionalização e consequente geometrização dos traçados urbanos é assim resultado de acções de planeamento ou adaptação, nas quais a espontaneidade e o crescimento orgânico não tinham lugar. A marca específica do urbanismo português é visível nessas intervenções de adaptação em Marrocos, que constituem a génese do próprio urbanismo colonial português, concretizado em toda a sua plenitude na construção da Cidadela de Mazagão em 1541, a primeira cidade planeada por europeus fora da Europa.
A cidade medieval portuguesa é caracterizada por vários aspectos que a diferenciam de outras, por exemplo da espanhola, através de elementos base da sua estruturação, como a Rua Direita, eixo que constitui a sua espinha dorsal, em função do qual se organiza a malha edificada, formada não só por um conjunto de ruas, como de praças e largos de média e pequena dimensão, onde geralmente se situam os principais edifícios públicos, e que muitas vezes resultam do alargamento dos próprios arruamentos, e de grandes espaços públicos periféricos, não raras vezes abertos e de traçado pouco definido, os rossios, onde ocorrem as actividades económicas e os acontecimentos mais relevantes da vida comunitária. Esta filosofia de composição urbana está sem dúvida presente nas intervenções nas praças de Marrocos, conferindo-lhes um cunho essencialmente português.
A Rua Direita era geralmente um arruamento de traçado irregular, e “o topónimo ‘Direita’ refere-se ao conceito abstracto de direcção” encerrando três aspectos fundamentais, em termos de “qualidade do elemento urbano” – direcção, articulação e atravessamento. (AMADO, 2011, artigo citado)
Placa toponímica da Cidadela de Mazagão
A Rua Direita é assim mais do que um simples arruamento. É o eixo que determina a própria hierarquização dos espaços urbanos e que relaciona e articula as diversas áreas homogéneas.
Ao contrário, o urbanismo medieval espanhol baseia-se na estruturação através de um grande espaço aberto central, a plaza mayor, que nas cidades coloniais da América resulta da eliminação de um quarteirão central de uma malha urbana ortogonal.
No entanto, é determinante na facilidade de compatibilização da cidade portuguesa com a marroquina o facto de que “a estrutura da cidade portuguesa da última parte da Idade Média, constitui uma herança das inovações urbanísticas romana e muçulmana, apresentando semelhanças e pontos de convergência com as demais cidades ibéricas contemporâneas”. (GASPAR, 1985, p. 133)
Neste sentido, as transformações operadas não tiveram tanto um carácter de compatibilizar dois conceitos urbanísticos opostos, em termos de cidades, mas sim de compatibilizar o urbanismo doméstico com as necessidades do urbanismo colonial, tendo em conta que em Marrocos, como já foi dito, os portugueses apropriaram-se de estruturas existentes que tiverem que adaptar a necessidades específicas.
A Rua Direita ou directa, que em Portugal era muitas vezes o eixo génese do desenvolvimento de um aglomerado, “muitas vezes herança de um caminho pré-urbano, que atravessa a cidade e se prolonga para fora, já como caminho rural” (GASPAR, 1985, p. 134), tem nas cidades apropriadas de Marrocos um carácter diferente, já que é implantada num tecido já existente, como eixo ordenador, e muitas vezes com esse sentido de prolongamento exterior da cidade, ligando o Terreiro ou a Porta do Mar à Porta da Vila, ou o centro urbano ou o porto ao campo exterior.
Impasse na Medina de Chefchauen
Mas se é verdade que a cidade Norte-Africana apresenta geralmente um traçado mais irregular que a cidade Europeia, também é verdade que a diferença ou incompatibilidade de conceitos entre a cidade portuguesa e marroquina não se reflecte tanto na questão do traçado ser regular ou irregular, já que o aparecimento das estruturas recticuladas surge também em Marrocos por iniciativa própria com influência ocidental, como em Essaouira ou Rabat, mas na questão da hierarquização e sobretudo especialização da rede viária e das funções instaladas, que têm no impasse o seu elemento original fundamental. Aliás, verificou-se ser comum acções de regressão após o abandono das cidades pelos portugueses, através da criação de impasses em eixos viários por meio da construção de muros encerrando arruamentos ou simplesmente pela eliminação de troços do espaço público.
“O labirinto típico da cidade muçulmana mantém-se, mas em seguementos de recta (…) o traçado rectilíneo não é contrário ao ideal muçulmano de cidade. A hierarquização das vias de comunicação, que provoca maior acessibilidade às áreas de trabalho, bem como o recato dos espaços residenciais e a diferenciação das zonas da cidade, consoante as suas funções, constituem a sua verdadeira originalidade.” (GASPAR, 1968, p. 30-31)
Esta questão do labirinto típico da cidade Árabe e da hierarquização da rede viária materializa-se assim na criação dos impasses, estes sim, elementos da sua originalidade e de incompatibilidade com a cidade europeia, conferindo aos espaços públicos de acesso às habitações um carácter o mais privado possível, evitando o seu atravessamento por pessoas não residentes no local, assumindo a forma de espaços semi-públicos ao nível da sua utilização. Os impasses, coordenados com os traçados sinuosos, desencorajam não só a penetração de estranhos ou inimigos no seu interior, como de vizinhança indesejável.
Uma rua de Arzila
“Se, numa compreensão mais lata, um sistema viário sinuoso e aparentemente labiríntico concorria para a protecção natural dos habitantes perante uma penetração inimiga, desorientada e surpreendida pela imprevisibilidade dos espaços construídos e vazios, por outro lado, o verdadeiro ‘inimigo’ residia no olhar indiscreto dos vizinhos ou outros moradores. Os valores da privacidade e da intimidade regem a distribuição do espaço não construído, encontrando-se subordinados, em última instância, a uma concepção familiar que se esconde e se desmultiplica em becos, suprimindo ou reduzindo as vistas sobre a via pública, interditando as do vizinho, fechando a casa da violação visual exterior.” (CORREIA, 2008, p. 374-375)
Ao ocupar as cidades de Marrocos, a prioridade dos portugueses era garantir a sua defesa, levando a cabo significativas obras de fortificação. Expulsos os seus habitantes, as casas eram ocupadas pelos novos moradores e não havia no imediato lugar a intervenções na estrutura urbana, mas sentia-se essa necessidade, para instalar de forma racional os equipamentos fundamentais à sua sobrevivência e facilitar a vigilância e os movimentos no seu interior.
Esta necessidade de ordem, disciplina e racionalidade, acabam por traduzir-se em intervenções urbanísticas que os portugueses chamaram de arruar, baseadas na afirmação de uma Rua Direita enquanto eixo principal, de ligação e de especialização de funções, e na regularização do traçado de alguns quarteirões, muitas vezes na introdução de pavimentações do espaço público e também na introdução de elementos de mobiliário urbano como o chafariz.
As intervenções urbanísticas começam a operar-se a partir do reinado de D. Manuel, e não são estranhas aos conceitos urbanísticos do Renascimento Europeu, Renascimento que influenciou toda a vida e cultura europeia e que em Marrocos se reflectiu também nas inovações portuguesas ao nível da arquitectura militar, civil e religiosa e da própria arte de fazer a guerra, em termos de organização dos exércitos e das armadas.
Antigos celeiros portugueses em Mazagão
As intervenções urbanísticas eram indissociáveis dos próprios conceitos de defesa das praças, já que estavam intimamente ligadas à facilidade de movimentação das tropas e seu acesso rápido aos caminhos de ronda e à localização estratégica dos equipamentos de logística e defesa.
Assim, para além das operações de arruar, as intervenções urbanísticas organizavam as cidades em termos funcionais, implantando equipamentos vitais à sua sobrevivência, como os edifícios da administração (casa do governador ou alcaide, vedoria, prisão, tribunal), de logística (armazéns de armas, celeiros, estrebarias, mercados) e edifícios religiosos (igrejas, conventos).
Mas cada caso foi um caso, dependendo de circunstâncias próprias, que aqui se procura esclarecer e sistematizar.
Relação de grandeza entre as sete cidades ocupadas por Portugal em Marrocos
Um aspecto que ressalta de imediato ao analisarmos as sete cidades que os portugueses ocuparam na costa de Marrocos é o das diferenças entre as suas áreas. Apesar de todas elas terem sido atalhadas, afim de serem reduzidas no seu tamanho, serem menos populosas, e mais facilmente governáveis, não se criou uma dimensão tipo que servisse de regra, já que a cidade, mesmo atalhada, tinha que manter a sua coerência e lógica urbana. As suas áreas variam entre os 3 hectares de Alcácer Ceguer e os 20 hectares de Tânger, observando-se três categorias distintas em termos de dimensão. As cidades de pequena dimensão, Alcácer Ceguer (3 hectares) e Azamor (3,5 hectares); as cidades de média dimensão, Mazagão (6 hectares), Arzila (7 hectares) e Ceuta (8 hectares); as cidades de grande dimensão, Safim, (13 hectares) e Tânger (20 hectares). É claro que os conceitos de pequena, média e grande dimensão devem ser entendidos de forma relativizada, referindo-se a cidades ocupadas em território estrangeiro, governadas com guarnições relativamente reduzidas e muitas vezes com uma população extremamente heterogénea.
Outro aspecto que ressalta é o de que não dependeu do tempo de ocupação a dimensão da intervenção urbanística operada na sua estrutura, como provam os exemplos de Arzila ou Azamor, ocupadas apenas pouco mais de meio século, e objecto de intervenções de fundo, que contrastam com os quase dois séculos da ocupação de Tânger, cidade que manteve no essencial a estrutura urbana herdada.
Ceuta pré-portuguesa (fonte Carlos Gozalbes Cravioto)
A apropriação de Ceuta pelos portugueses é marcada por um enorme processo de regressão urbana, através da redução da área da cidade, eliminando-se os seus arrabaldes, zonas que se vão transformando progressivamente em terrenos de cultivo. Este processo é facilitado pelo facto de já existirem tramos de muralha que seccionavam os vários bairros da cidade, permitindo aos portugueses apoderar-se da Medina, onde se instalam e que desdensificam.
A população original, estimada em cerca de 30.000 habitantes é expulsa, ficando inicialmente reduzida a uma guarnição de 2.500 homens. Com o tempo aumenta, atingindo os cerca de 3.500 habitantes no interior do recinto muralhado.
O processo de anulação dos arrabaldes é lento e demora cerca de 100 anos. Na gravura de Braun e Hogenberg é patente a situação transitória, com a Medina bem conservada e fortificada, contrastando com os arrabaldes com as suas muralhas e construções arruinadas.
Gravura de Ceuta no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
Basicamente a estrutura urbana da Ceuta portuguesa é a herdada da Ceuta marroquina, com os principais edifícios administrativos e religiosos do lado Poente, situados numa ampla praça, e uma área residencial do lado Nascente, cuja estrutura original se desconhece, mas que tudo indica seria de cariz labiríntico, mas marcada por um eixo estruturador e atravessador, a futura Rua Direita, implantada em situação excêntrica, pelo facto de comunicar com uma porta que os portugueses acabariam por encerrar.
Inicialmente, como era usual, as mesquitas são adaptadas a igrejas, mas com o passar dos tempos acabam por ser demolidas para dar lugar à construção de templos cristãos de raiz, situação sem dúvida influenciada pela incompatibilidade entre o conceito espacial do espaço muçulmano do cristão.
O lado Poente da cidade é fortemente fortificado, por ser o lado de terra, de onde surgiriam os previsíveis ataques, e as instalações militares são também aí implantadas.
Estrutura urbana da Ceuta portuguesa
A redução da sua população e necessidade de maior facilidade na mobilidade das tropas no seu interior levam a algumas alterações, sobretudo do seu lado Nascente, onde surge um esboço de malha ortogonal.
“Esta cidade muralhada girava em torno de uma grande praça, o terreiro dos portugueses, verdadeiro centro urbano tanto em termos de administração como militar, religioso e inclusive comercial. A zona mais importante e habitada era a oriental, com quatro vias principais E-O, que eram os caminhos de ronda norte e sul, denominadas hoje Palmeras e Independencia, e as duas intermédias Direita – hoje Jáudenes – do lado sul e Freiras ou Amparo na parte central, que actualmente absorve a Avenida Alcalde António Sanchez Prado”. (GOMEZ BARCELÓ, 2004, p. 297)
Podemos afirmar que o traçado de Ceuta era de certa forma pouco equilibrado e pouco homogéneo, estando patente de forma clara essa dicotomia entre a pré-existência da cidade árabe e a tentativa de racionalização portuguesa. Este facto demonstra também que as cidades, apesar de sofrerem alterações profundas em função de transformações políticas e sociais, muito dificilmente perdem a essência da sua estrutura urbana.
Na planta de Ceuta de Dom Julio Banfi, desenhada no século XVIII (e orientada a Sul), temos uma imagem do traçado urbano da cidade, com a implantação dos principais equipamentos da altura, sendo interessante notar a agressividade da frente de terra e o recuo da área habitacional, deixando entre uma e outra um espaço vazio operacional, que demonstra bem o caracter de praça de guerra que Ceuta tinha.
Planta das fortificações da Praça de Ceuta no século XVIII. Dom Julio Banfi, Arquivo General de Simancas
Jorge Correia descreve a estrutura urbana da Ceuta portuguesa da seguinte forma:
“Em termos gerais, o interior do rectângulo fortificado da cidade apresentava dois sectores equivalentes em área, sensivelmente quadrados e dispostos lado a lado. A metade oriental exibia uma malha densamente ocupada por cerca de onze quarteirões de casas, lojas e hortas, enquanto a metade ocidental albergava praticamente todos os equipamentos públicos, fossem religiosos, militares ou civis.” (CORREIA, 2008, p. 131)
A antiga Alcáçova é transformada no Palácio do Governador, junto ao qual funcionavam os principais edifícios administrativos e militares, existia uma área de comércio, as alcaçarias, um mercado e um Hospital da Misericórdia.
A cidade continha inúmeros edifícios da arquitectura religiosa. Conventos existiam dois, o de S. Francisco ou S. Tiago, e o de S. Domingos ou do Espírito Santo. A imponente Catedral de N. Sra. da Assunção, antiga Mesquita Maior, as igrejas de N. Sra. de África ou Santa Maria de África, N. Sra. do Socorro, Espírito Santo, S. Sebastião, Santo António e Misericórdia. As capelas de S. João de Deus, N. Sra. do Rosário, N. Sra. da Conceição, S. Miguel, Mártires de Ceuta, N. Sra. da Cabeça, Santa Ana e S. Francisco. Fora de portas, na Almina, existiam várias ermidas, a saber, Vera Cruz, S. Simão, S. Pedro, N. Sra. do Vale, Santo António, Santo António do Tojal e Santa Catarina.
A Porta do Mar de Alcácer Ceguer
Alcácer Ceguer foi uma praça portuguesa construída sobre uma estrutura pré-existente, que nunca teve uma importância significativa em termos militares e administrativos, ofuscada pela sua posição intermédia entre as poderosas Ceuta e Tânger.
Quando os portugueses a abandonaram em 1550 arrasaram edifícios e muralhas e nunca mais foi ocupada, sendo hoje um sítio arqueológico que mantém a estrutura que os lusitanos deixaram.
É uma fortificação de planta circular, muito pouco comum na região, com cerca de 3 hectares, tendo sofrido uma intervenção de fundo após a ocupação portuguesa. Havia que voltar costas ao território e abrir a cidadela ao mar, protegendo-a dos ataques terrestres e garantindo o seu abastecimento por via marítima, e a cidadela foi fortemente fortificada.
Inicialmente os edifícios existentes são adaptados para satisfazer as necessidades dos novos ocupantes.
Estrutura urbana de Alcácer Ceguer
Mas a intervenção dos portugueses não se resumiu ao aumento da eficácia defensiva do local e à adaptação de alguns edifícios, estendendo-se à própria estruturação do núcleo edificado, instalando equipamentos vitais à vida urbana e organizando-os em termos espaciais no território. A Rua Direita, ligando a Porta do Castelo e o Terreiro à Porta de Ceuta, era o eixo principal, ao longo do qual se localizavam a Igreja de Santa Maria da Misericórdia, construída sobre a antiga mesquita, a Igreja de S. Sebastião e a Assembleia da Cidade, principal edifício administrativo. A prisão é edificada sobre os antigos banhos públicos, havendo também notícia da existência de um mercado. A estrutura urbana criada denota alguma racionalização no seu traçado, com a criação de quarteirões de forma regular e arruamentos com certa ortogonalidade.
Referem Charles Redman e James Boone, arqueólogos americanos que escavaram o local, a propósito de Alcácer Ceguer no período da ocupação portuguesa, que “a colónia tornou-se mais do que um posto avançado militar, evoluindo para uma cidade altamente diferenciada com ruas calcetadas, várias praças, grandes edifícios públicos e uma variedade de estruturas particulares, públicas e religiosas”. (REDMAN e BOONE, 1979, obra citada)
As habitações da cidade, identificadas nas escavações de Redman e Boone, eram construídas em alvenaria de pedra e cal ou tijolo e tinham entre 3 e 6 compartimentos e uma área média de 60 m2.
Estas estruturas acolhiam os moradores, comerciantes, artesãos e restantes habitantes que asseguravam as actividades necessárias à vida na praça, e os fronteiros, nobres com funções militares e administrativas, e suas famílias. A população total é estimada em 800 indivíduos.
Gravura de Arzila no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
A extensão da intervenção urbanística em Arzila foi resultado das destruições causadas pelo cerco e ocupação da cidade em 1508 pelas tropas do sultão de Fez Mohammed Al-Burtughali, durante a qual ficou apenas o castelo nas mãos dos portugueses. No ano seguinte dá-se um segundo cerco a Arzila, abortado devido ao apoio de uma armada enviada por D. Manuel.
Estes dois cercos vêm comprovar as debilidades das defesas de Arzila e a necessidade de uma intervenção de fundo no recinto muralhado, “levando D. Manuel a tomar a decisão de interromper as obras do Mosteiro dos Jerónimos para que o mestre responsável pelos respectivos trabalhos pudesse orientar as obras de defesa de Arzila (…) Diogo Boytac é enviado em 1509 para Arzila, levando consigo uma avultada quantia em dinheiro e instruções para fortificar a cidade com muros de pedra e cal, em vez das habituais construções de pedra e barro.” (MATIAS, 2003, p. 68)
Diogo Boytac permanece um ano na cidade, durante o qual elabora “um plano global de intervenção assente em três vectores fundamentais para a sustentabilidade e afirmação da praça portuguesa: reforço da cerca, com particular relevo para a muralha do atalho; emergência simbólica do castelo; consolidação urbana da vila”. (CORREIA, 2008, p. 185)
Estrutura urbana de Arzila
Foi realizada uma operação de reestruturação do tecido urbano, ou seja, uma reorganização do traçado viário e dos conjuntos edificados, racionalizando a transposição das funções para o território, à luz as necessidades funcionais dos seus novos habitantes.
A Vila Nova estrutura-se em quarteirões de desenho mais regular, tendo como espinha dorsal a Rua Direita, que atravessa a cidade longitudinalmente, ligando a área residencial ao Terreiro, espaço urbano central onde ocorriam as principais manifestações colectivas, e onde se situava o acesso ao Castelo, à Igreja de S. Bartolomeu e à principal porta da Cidade, a Porta do Mar ou da Ribeira. A Rua Direita era constituída por dois troços perpendiculares, formando um cotovelo, as actuais Rue Attijara e Rua Al Kadiria, de modo a estabelecer a ligação com a Porta da Vila. Este conceito é bastante interessante, já que corrobora a noção de que o termo “direita” tem o sentido de “directa”, em termos de ligação funcional.
“O cuidado no tratamento do espaço público surge anotado no relatório de Boytac onde se percebe a presença de um chafariz na vila e de calçada no pavimento.” (CORREIA, 2008, p. 197)
A operação urbanística dirigida por Boytac incluiu a construção de habitações, de umas estrabarias para mais de mil cavalos, a reabilitação da Matriz, anteriormente dedicada a N. Sr. Da Assunção e na altura dedicada a S. Bartolomeu, a Misericórdia e o Convento de S. Francisco, no local onde posteriormente seria edificado o Palácio do Raissouni.
A população de Arzila era no início do século XVI, de acordo com Jorge Correia, de “mais de meio milhar de habitantes”. (CORREIA, 2008, p. 184)
Gravura de Tânger no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
Tânger foi a maior cidade ocupada por Portugal, contendo uma área muralhada de 20 hectares e uma população superior a 3.000 habitantes, depois de sujeita a um processo de atalhamento. Apesar de se ter mantido em mãos portuguesas durante 191 anos, a marca de Portugal na estrutura urbana foi reduzida, muito por motivo da irregularidade topográfica do seu terreno e da dificuldade de implantação de eixos ortogonais.
No entanto, várias intervenções tiveram um carácter relevante. Desde logo a adaptação da antiga Alcáçova a Cidadela, que os portugueses chamavam Castelo Velho ou Castelo de Cima e a construção de um segundo Castelo junto ao Porto, o Castelo Novo. Este processo repetir-se-ia em Safim, com a criação de uma segunda estrutura defensiva próxima do Mar, na tradição dos castelos que Portugal implantava nas cidades que ocupava. Na área exterior fronteira ao Castelo Novo é criado o Terreiro, que em Tânger se chamava Chouriço, criando-se ao longo do pano Norte da muralha um conjunto de estruturas de carácter militar, conectando a alta da cidade à baixa. O Paço seria implantado no Castelo Velho, que Miguel de Arruda transformaria em meados do século XVI numa moderna Cidadela.
Estrutura urbana de Tânger
A principal intervenção de estruturação urbana que subsiste foi a afirmação da Rua Direita enquanto principal eixo da cidade, actuais Rue Siaghine e Rue de la Marine, ligando a Porta da Ribeira à Porta do Campo, ao longo da qual se localizavam os principais equipamentos urbanos. A meio do seu percurso foi aberto um largo de dimensões adequadas à criação do Mercado, hoje ainda chamado Petit Socco ou Zocco Chico.
“A regularidade do espaço público começava a definir-se como uma prioridade, renunciando ao tecido islâmico herdado e procurando novas racionalidades geométricas e perspéticas.” (CORREIA, 2008, p. 231)
Outros arruamentos foram rasgados, mas acabaram por regredir em termos de traçado após a apropriação da cidade por Marrocos. Segundo Jorge Correia, “o núcleo urbano sofreu uma definição do espaço público, e induziu um tímido processo de regularização do tecido residencial. Procurou-se que o espaço público fosse a ligação entre os principais equipamentos e espectador da representatividade de novas fachadas expostas”. (CORREIA, 2008, p. 232)
Uma rua na Medina de Tânger
Em Tânger é criada uma das três dioceses de Marrocos, sendo a Mesquita principal convertida em Catedral, dedicada a N. Sra. da Conceição, sofrendo para tal algumas adaptações no seu espaço interior.
Pedro Dias refere que Tânger chegou a ter nove igrejas _ Catedral de N. Sra. da Conceição, Misericórdia, S. Domingos, S. João, Santa Bárbara, Vera Cruz, S. Roque, Espírito Santo e S. Sebastião. (DIAS, 2002, p. 92)
Gravura de Safim no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
A presença de Portugal em Safim é marcada inicialmente pela sua função de principal centro urbano da criação de um Marrocos português, materializado durante a capitania de Nuno Fernandes de Ataíde com o estabelecimento de uma vasta área de mouros de pazes. O investimento da Coroa Portuguesa em Safim é comprovado pela afirmação de Pedro Dias de que “o rei enviou para a cidade a formidável quantia de 10.300.000 reais”. (DIAS, 2002, p. 170)
“Desfeitos os sonhos de Nuno Fernandes de Ataíde e as ilusões lusas de uma conquista da poderosa capital do reino de Marrocos, cabia a Safim contentar-se em ser mais uma praça de guerra costeira, à cabeça do arco geográfico Azamor/Santa Cruz, apesar de tudo. Depois do atalho, a forma da cidade assentava num V voltado para o Oceano Atlântico, como um anfiteatro voltado para a via de comunicação mais importante, canal receptor e emissor de socorro, abastecimento e comércio.” (CORREIA, 2008, p. 282)
A construção do Castelo do Mar permite aproximar a residência do governador ao porto, criando-se uma dualidade já observada em Tânger entre o Castelo de Cima, antiga Alcáçova e o Castelo de Baixo ou Castelo Novo.
A Rua Direita, actual Rue des Marchés, estrutura a cidade, ligando a Porta da Ribeira à Porta da Almedina, contendo no seu percurso pequenos alargamentos para criar espaços públicos. A intervenção na malha urbana é relativamente tímida, restringindo-se à organização de alguns arruamentos ortogonais na área a Norte da Rua Direita (Rue du Pressoir, Impasse Sidi Abdelkrim, Rue Benito, Rue Bouzertila e Rue des Perruquiers) e à regularização do traçado das ligações aos caminhos de ronda, por evidentes razões defensivas, com especial destaque para a ligação entre o Castelo do Mar e o Castelo de Cima ao longo do caminho de ronda Sul. O Terreiro situava-se frente ao Castelo de Cima.
Estrutura urbana de Safim
A instituição da diocese de Safim, que segundo Pierre de Cénival já no ano de 1499 tinha como bispo Dom João Aranha (CÉNIVAL, 1929, p. 13), tem como resultado a construção de dois importantes edifícios religiosos _ a Catedral de Safim, situada na Passage El Bouiba, e o Convento e Igreja de Santa Catarina, situados no Impasse Sidi Abdelkrim, para além de uma outra igreja referida por Joseph Goulven, situada na Rua Direita.
Poderão os mais incautos pensar que o estado lastimável em que se encontra a Catedral, restando apenas a capela-mor e uma capela lateral, se deve a destruições realizadas após a evacuação de Safim pelos portugueses em 1542. Assim não foi, já que foram os próprios portugueses que demoliram todo o património religioso da cidade com autorização do Papa Paulo III, “para os poupar à vergonha de caírem nas mãos dos infiéis. As destruições felizmente não foram totais para que nenhum vestígio não subsistisse dos edifícios mutilados.” (CÉNIVAL, 1929, p. 25-26)
Outros equipamentos de importância eram a Feitoria, a Alfândega e a Casa da Moeda, situados junto ao porto, esta última atestando a vitalidade económica e comercial de Safim.
A Passage Bouiba
Em Safim subsistem diversos pórticos de antigas habitações portuguesas, em estilo manuelino, reutilizados em edifícios de construção posterior, como refere Pedro Dias:
“Ainda hoje é possível ver no interior da medina alguns portais de recorte manuelino, cerca de uma dezena, quer de volta polilobada, quer mais simples apenas com os chanfros nas ombreiras e no lintel. A sua dispersão permite ainda supor que houve remodelações em toda a área muralhada e não apenas num bairro especial.” (DIAS, 2002, p. 186)
Gravura de Azamor no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
Em Azamor a intervenção urbanística foi uma intervenção de fundo, que para a generalidade dos autores resulta do facto de a zona intramuralhas onde os portugueses se estabeleceram ser uma área não edificada, à parte da Alcáçova que aí existia.
Como refere Ana Lopes, no caso de Azamor podemos estar em presença de uma área não edificada, que os portugueses terão urbanizado de raiz, com base numa carta enviada pelo primeiro governador da cidade, Rui Barreto, a D. Manuel, na qual escreve que “o Castelo é ermo, sem nenhuma coisa senão umas casas que aí estavam descobertas, para se recolher fazenda”. (CÉNIVAL, 1934, p. 496-497)
“A isto se junta o Plano de Simão Correia que o próprio propala em carta ao rei e denuncia com acções de construção nova e o ‘arruar’ (entenda-se arruar como a acção de traçar ruas e pavimentá-las) que propõe para o interior do castelo português. A ideia de uma vila nova construída pelos portugueses é algo que fica insinuado quer pela documentação como pela análise das plantas que resultam do levantamento do tecido urbano existente”. (LOPES, 2009, p. 161)
A porta do Castelo de Azamor
Este facto permite optimizar a relação e articulação entre os elementos defensivos da praça muralhas e baluartes) com os da estrutura urbana (ruas e edifícios), criando uma verdadeira praça de guerra, como defendia Francesco di Giorgio Martini, o grande mestre italiano do renascimento, que muito influenciou Diogo de Arruda, responsável pelas fortificações da cidade:
“A sobreposição destas linhas virtuais à malha urbana reforça a interconectividade tendenciosa entre todos os elementos constituintes de uma cidade fortificada, tal como Francesco di Giogio considerava dever ser: uma cidade fortaleza devia ser organizada, como a constituição de um corpo humano, por partes que se interligam. No caso de Azamor, a forma global da muralha, a localização e constituição de cada baluarte, porta, estrutura de apoio, via de circulação e agrupamento de tecido constituído parece ter uma razão justificada e enquadrada no conjunto, com uma função individual, mas sempre em harmonia com tudo o que a rodeia. Esta interdependência permitiria, em caso extremo de invasão do Castelo, voltar a capacidade de fogo dos baluartes para o interior da área urbana, com garantia de eficácia na estabilidade das formas.” (LOPES, 2009, p. 165)
Estrutura urbana da Azamor portuguesa
A malha urbana de carácter ortogonal, se bem que com alguma irregularidade devido à topografia do terreno, estrutura-se a partir de vários elementos fundamentais, o Castelo, antiga Alcáçova, o Terreiro, a Rua Direita, a Porta da Vila e a Igreja Matriz, originando cinco arruamentos paralelos no sentido Sul-Norte, que intersectam um outro no sentido Nascente-Poente, de ligação entre a alta e a baixa da cidade, desembocando na Porta da Ribeira. Tal como em Arzila, a Rua Direita assume a forma de cotovelo, ligando a Porta da Vila à Porta da Ribeira, abarcando as actuais Derb Touamia, Derb Kasbah e Derb Mellah.
Para Jorge Correia a filosofia do plano de Simão Correia, poderá ter tido por base a demolição das construções existentes no local e a edificação de uma Vila Nova sobre os escombros da Vila Velha. O que não suscita dúvidas é que a intervenção em Azamor tem um carácter pioneiro “inserido num pensamento manuelino mais atento ao espaço público” (CORREIA, 2008, p. 305), no qual os arruamentos são pavimentados com a responsabilidade desse trabalho atribuída aos próprios moradores, como refere uma carta escrita pelo capitão de Azamor ao rei, na qual escreve que “as ruas arruadas e calçadas de ladrilho, de muito que há nesta cidade, que cada um calçara sua porta, com que muito se escusaram de muito pó e lama que cá há”. (Carta de Simão Correia a D. Manuel transcrita em CORREIA, 2008, p. 305)
A mesma estrutura após o abandono da cidade por Portugal (fonte Jorge Correia)
Após o abandono da cidade pelos portugueses, a métrica da rectícula ortogonal foi em parte desfeita, com a anulação de arruamentos anteriormente existentes e a criação de impasses com alguns dos seus tramos.
Azamor foi também dotada de um Hospital da Misericórdia e de dois conventos, um de frades agostinianos e outro de franciscanos, cuja localização na cidade não se encontra definida. (Dias, 2004, p. 133)
No âmbito da intervenção na cidade, chegou a estar prevista a construção de uma ponte sobre o Rio Morbeia, financiada pelo Bispo de Safim, D. João Subtil, mas o projecto foi abandonado antes de iniciada a sua construção.
Evolução de Mazagão
A história portuguesa de Mazagão começa no ano de 1486, quando os portugueses encontraram no lugar da actual Cidadela uma pequena torre abandonada denominada El Brija, diminutivo de borj (torre), que ocuparam, instalando-se em permanência no local 16 anos depois, através da construção ao seu redor de diversos edifícios de campanha. Foi neste lugar que D. Jaime, Duque de Bragança, desembarcou no ano de 1513 para conquistar Azamor e foi o próprio D. Jaime que convenceu D. Manuel I a construir no local uma fortaleza, ao escrever ao Rei de Portugal, dizendo-lhe que o lugar “era o melhor porto do mundo”. (LOPES, [1937] 1989, p. 38)
No ano seguinte é construído um castelo provisório de madeira com a função de albergar os pedreiros encarregues da construção de um posterior castelo definitivo, e as tropas que lhes davam cobertura.
Esta construção inicial de uma estrutura provisória precedendo a construção definitiva é confirmada por Rafael Moreira na descrição da construção do Castelo de Mazagão em 1514, referindo que menos de um mês após a visita do Duque de Bragança, “D. Manuel já enviava um superintendente com materiais para as obras – 40 vigas, 440 tábuas e 17 mil pregos – o que sugere uma primeira veloz construção de madeira efémera” (MOREIRA, 2001, p. 32). E afirma que no ano seguinte a coroa portuguesa decide-se por uma fortificação mais consistente e inicia-se a construção de uma fortaleza, “em pedra, cal e tijolos vindos de Portugal”, obra a cargo dos irmãos Arruda, fortaleza que fica pronta em menos de um ano e que é denominada “Castelo Real de S. Jorge”. (MOREIRA, 2001, p. 32)
A torre El Brija ou Boreja, actual posto da polícia de Mazagão
O Castelo de S. Jorge de Mazagão seguiria a tipologia habitual das fortalezas portuguesas, de forma quadrangular com quatro torres cilíndricas nos cantos, integrando a já referida El-Brija, chamada pelos portugueses Boreja, e as torres da Cegonha, Rebate e Cadeia. Nos anos seguintes são implantadas várias edificações de madeira de apoio à guarnição militar no pátio central e construídos vários edifícios adoçados aos seus muros, no exterior.
Do lado Noroeste do castelo começa a formar-se um povoado de carácter indígena, o Arrabalde, onde se instala posteriormente uma comunidade judia e moradores ligados à actividade agrícola e pecuária. O castelo nunca foi uma estrutura defensiva eficiente, porque não protegia o Arrabalde de que dependia, mas também não podia sobreviver sem ele, em termos de abastecimentos.
A situação prolonga-se até 1541, altura em que Portugal altera a sua política colonial em Marrocos, desistindo definitivamente da criação de um reino português e confinando-se a três posições estratégicas, Ceuta e Tânger, para o domínio da navegação no estreito de Gibraltar, e Mazagão para a afirmação da presença portuguesa no Sul e apoio às armadas que faziam a rota da costa africana. O abandono das restantes praças exige a transformação de Mazagão numa super-fortaleza, que acabaria por constituir um modelo exemplar da arquitectura militar do Renascimento.
Plantas da Cidadela de Mazagão de 1757, de J. Bélicard, Bibliothèque Nationale de France, e de 1720-1760, de Simão dos Santos, Instituto Português de Cartografia e Cadastro
“A vila‐fortaleza foi pensada como um todo. A definição da escala do perímetro fortificado estava directamente relacionada com a dimensão da estrutura urbana interior e com o número de pessoas adequado à sua defesa, procurando assegurar um elevado grau de autosustentabilidade”. (MATOS, 2012, página electrónica citada)
A sua concepção e construção esteve a cargo de uma equipa multidisciplinar, dirigida por Miguel de Arruda, que contou com a colaboração de Benedetto da Ravenna enquanto principal projectista, Francisco de Holanda, que em Itália fez os primeiros esboços, Diogo de Torralva, que foi responsável pelo estudo de implantação no local, João de Castilho e João Ribeiro, que dirigiram as obras, e um exército de pedreiros que levaram a cabo a construção num prazo extremamente curto.
O conceito urbanístico, aspecto que aqui interessa salientar, foi baseado na manutenção do antigo Castelo enquanto centro da composição urbana, na integração do Arrabalde na orgânica do tecido a edificar e em dois eixos perpendiculares estruturadores, a Rua da Carreira, o principal, de sentido Nascente-Poente, ligando a Porta da Vila à Porta da Ribeira, e a Rua Direita, de sentido Norte-Sul.
Estrutura urbana de Mazagão
A estrutura urbana adapta o conceito de ortogonalidade a estes elementos e à própria forma em estrela da muralha, criando uma simbiose perfeita entre fortificação e cidade. As próprias regras urbanísticas tinham objectivos de defesa, como o facto de nenhum edifício poder ser mais alto do que a muralha, garantindo que o caminho de ronda dominava visualmente toda a fortificação.
As torres do Castelo são adaptadas a novos usos e ligam-se funcionalmente aos edifícios abobadados adoçados aos seus muros, onde são criadas as suas principais dependências, como as casas do Hospital da Misericórdia e a Cadeia. Ao seu redor situam-se a outros equipamentos como a Vedoria, os Celeiros e o Palácio da Inquisição.
O Palácio do Governador e a Igreja Matriz, dedicada a N. Sra. da Assunção, são elementos da composição urbana da área Poente da Cidadela, situada perto da Porta da Vila, definindo o chamado Terreiro, espaço público de maior área.
No pátio do Castelo é construída a Cisterna Manuelina, de forma quadrangular, com 34 metros de lado, área de 1.156 m2 e capacidade para cerca de 5.000 metros cúbicos de água, armazenada através de um pequeno aqueduto e de uma abertura central com 3 metros de diâmetro.
A Cisterna Manuelina
“Reaproveitada do pátio aberto do forte de 1514, de solo rebaixado para poder conter a floresta de colunas e pilares de ordem toscana que sustentava a meia altura do terraço superior, único espaço usualmente acessível – pois o depósito de água, como era lógico, era fechado – com o seu bocal de poço, (hoje no interior) e rodeado pelo magnífico conjunto de escadarias e armazéns de víveres tão castilhianos que se diria transportados desde Tomar, nessa junção simbólica da água com o pão: a Cisterna era e é o edifício emblemático de Mazagão. Nela resume-se, o coração da vila, o que ela tem de melhor.” (MOREIRA, 2001, p. 58)
Mazagão mantém ainda hoje o seu traçado urbano original e muitas das ruas conservam nomes portugueses, patentes nas placas toponímicas da época, como a Rua da Carreira, a Rua Direita, a Rua da Nazaré, a Rua do Arco, a Rua do Governador, a Rua da Mina ou a Rua do Celeiro.
A igreja de N. Sra. da Assunção
O pioneirismo da fortaleza de Mazagão, fortaleza inovadora, peça-chave da evolução das fortificações modernas, percursora da transição para o uso da artilharia, materializa em Marrocos pela primeira vez as novas teorias da fortificação abaluartada, que daqui seriam transpostas para a colonização europeia da América, Africa e Asia.
Mas a excepcionalidade de Mazagão ultrapassa o simples conceito de fortificação, revelando-se também como um modelo de planeamento e construção da cidade, de transposição para o território de funções urbanas, instaladas segundo determinada escala e de acordo com princípios de racionalidade e sustentabilidade.
“O actual bairro da Cité Portugaise em El Jadida encerra em si uma história portuguesa, construída e urbana, que debutou com o levantamento de um castelo manuelino em 1514 e se prolongaria por mais de dois séculos e meio. Porém, foi o investimento numa nova praça fortificada e abaluartada, com desenho regulado de vila no seu interior, conduzido por uma junta de arquitectos e engenheiros em 1541 que cristalizaria a imagem de Mazagão como baluarte inexpugnável no Norte de Africa e preservaria o estrato formal português na actual cidade marroquina”. (CORREIA, 2007, p. 184)
Mulheres junto à Porta do Mar
Mazagão é a única praça portuguesa da qual dispomos de informação precisa sobre a sua população, já que, para organizar a sua evacuação foi feito um recenseamento rigoroso. De acordo com registos de meados do século XVIII, a população era constituída por 2092 pessoas, a grande maioria das quais, cerca de 90%, integradas nas 425 famílias recenseadas. O número de homens e mulheres era praticamente igual, 54%-46%, e cerca de 30% do total de indivíduos tinha menos de 10 anos, o que significava que era uma população jovem. A guarnição militar era de 592 efectivos, 30% do total de habitantes, mas nos períodos de conflito os homens maiores de 13 anos eram chamados a prestar serviço na guarnição, aumentando o número de militares para 749, ou 36% do total. (SILVA, 2004, obra citada)
Durante os 255 anos que os portugueses permaneceram no local, isolados e ameaçados por uma envolvente hostil, desenvolveram um espírito comunitário e uma identidade próprias, nos quais pessoas e cidade eram uma só entidade, como Laurent Vidal tão bem sintetizou:
“Não havia espaço que não estivesse cheio de recordações: uma pedra, a esquina de uma rua, um largo… Os mazaganistas formavam um corpo com seus muros. Defendê-los era a sua razão de viver e de esperar. Muitos deles não imaginavam qualquer destino fora dos muros da fortaleza.” (VIDAL, [2005] 2008, p. 51)
Vista aérea da Cidadela de Mazagão . foto Aéroclub Jean Bertin
As experiências urbanísticas portuguesas em Marrocos puseram em prática os conceitos do racionalismo do Renascimento, preparando o terreno para toda uma série de construções de cidades de raiz, que posteriormente seriam fundadas pelo Mundo fora. Mas as inovações que Portugal colocou em prática não se esgotaram no seu tempo, já que contribuiriam decisivamente para o desenvolvimento do próprio planeamento urbano moderno.
Frederico gostaria de sabe porque grande parte das construções existem três aberturas frontais em arco, tem algum significado?
Caro Wellington
Pode ser mais específico? Não sei se fala de portas de muralhas, se de fachadas de edifícios ou de outras situações.
De qualquer forma, se a sua dúvida é em relação a algumas portas de muralhas em que existe um arco central de maior dimensão, ladeado por outros dois de dimensão mais reduzida, existe é claro um aspecto funcional dominante (para além de um aspectos estético que tem a ver com uma composição simétrica), que é o de que pelo arco central circulavam carroças, cavalos e, é claro, as comitivas oficiais, enquanto pelos laterais circulavam normalmente os peões, que aí tinham maior segurança.
Existe um aspecto simbólico na cultura árabe que é o do número ímpar, enquanto número que prevalece sempre sobre o par, inclusivamente, por exemplo, no número de tâmaras que se deve comer.
O número 3 em si não tem um significado especial em termos de arquitectura, mas tem em termos religiosos. Por exemplo, quando alguém morre, é acompanhado na sua primeira noite por três anjos.
Sempre um prazer ir até Marrocos consigo . mais uma vez excelente trabalho de estudo e divulgação, obrigada !
Marrocos é mesmo assim. Um prazer para quem sobre ele lê e para quem sobre ele escreve. Obrigado