Castelo dos Mouros em Sintra
O título deste artigo levanta desde logo a questão de se saber se podemos falar de uma arquitectura do Gharb Al-Andalus, no fundo, de uma arquitectura de um Al-Andalus português. Se parece evidente que não, no sentido de conter uma identidade própria, entendendo-se o termo Arquitectura no seu conceito mais vasto, que abarca a organização do território, o urbanismo, as técnicas de construção, os conceitos espaciais, as características da própria arquitectura militar, religiosa e civil e os elementos construtivos e decorativos, também é verdade que a arquitectura portuguesa assimilou de forma diversa da espanhola muitos desses conceitos, sobretudo no urbanismo e em determinados aspectos de detalhe das construções, por exemplo na azulejaria.
Para a generalidade das pessoas é notória a diferença abismal entre o legado patrimonial edificado árabe de Espanha e de Portugal, não ao nível das suas características, mas da quantidade e qualidade dos testemunhos.
“Diferentemente da Espanha, entre nós resta um escasso espólio edificado, apesar de alguns magníficos castelos, da singela mesquita de Mértola ou do verdadeiro alcácer árabe que é o Palácio da Vila, em Sintra. Todavia, o trabalho arqueológico, pacientemente, vai levantando algumas pontas do véu que oculta os vestígios do esplendor do Gharb al-Andalus. Vários factores explicam o contraste com a vizinha Espanha, a nível de património edificado. Não podemos ignorar o carácter periférico do nosso território relativamente às grandes urbes andalusinas, entre as quais sobressaía Córdova, e com que as nossas cidades não podiam competir.” (ALVES, 2001, p. 25)
Para além deste caracter periférico do Portugal Árabe, terá tido influência no desaparecimento de muito do legado desse período no nosso território os efeitos dos sismos e a própria política de terra queimada praticada durante a chamada reconquista.
O Estreito de Gibraltar, porta de entrada no Al-Andalus
O desenvolvimento da civilização árabe no século VII explica a rapidez e facilidade com que conseguiu penetrar no Magrebe e posteriormente no Al-Andalus, territórios onde se instalaram e administraram de forma eficaz, apesar dos reduzidos efectivos que constituíam as suas forças militares. As políticas de acordos e de garantia dos direitos das comunidades existentes foi determinante nesse processo, apesar de assumir contornos completamente distintos de um e do outro lado do Estreito de Gibraltar.
No Magrebe, onde a penetração foi mais lenta, mais violenta e onde provocou grandes êxodos de populações das terras férteis e das cidades para as montanhas e o deserto, observou-se sobretudo um processo de islamização, mas não de arabização, já que as tribos Amazigh conservaram a sua identidade cultural e as suas línguas.
Ao contrário, no Al-Andalus, a ocupação foi extremamente rápida e pacífica, tendo como princípio a integração de comunidades árabes no seio das comunidades existentes, substituindo as suas chefias, ou garantindo a lealdade das autoridades existentes ao novo poder instituído, e aqui podemos falar de um processo de arabização, já que as várias comunidades adoptaram a cultura e os hábitos árabes, mas não se islamizaram, tendo em conta que mantiveram as suas religiões e a liberdade para as professarem.
Árabes, Berberes, Judeus, Hispano-Romanos e Hispano-Godos, coexistiram de forma tolerante, respeitando a identidade de cada comunidade. Mas o Al-Andalus foi também um espaço de revoltas permanentes, entre tentativas de centralização do poder e aspirações de afirmação das várias identidades, personificadas pelos diversos grupos sociais que se mantinham organizados, por vezes dando origem a alianças com contornos que iam muito para além do campo estritamente político, mas que se explicam em termos estratégicos, ideológicos e mesmo espirituais, cujo exemplo paradigmático foi a aliança entre a Cavalaria Espiritual Muçulmana de Ibn Qasi e os Templários de Afonso Henriques, que alguns autores, como Garcia Domingues ou Adalberto Alves, colocam na génese da própria identidade de Portugal.
As Muralhas de Silves vistas do lado Norte
Um aspecto que se encontra no centro das discussões sobre o Al-Andalus é a questão de se saber se os Árabes de facto invadiram e conquistaram a Península, ou se, pelo contrário, foi a Península que se arabizou, chamando a si a administração árabe. É inegável que a entrada dos exércitos árabes na Hispânia, correspondente ao corolário lógico do seu percurso expansionista através do Norte de Africa, veio destronar a administração visigoda no poder, e nessa perspectiva não pode deixar de ser considerada como uma invasão, tal como a dos Romanos e Visigodos o tinha sido.
Mas a situação de desagregação das instituições visigóticas ao tempo da chegada de Oqba Ibn Nafi ao Magrebe e o posterior pedido de auxílio dos nobres visigodos a Mussa Ibn Nussayr para intervir nos destinos do poder vigente, a crescente convicção de que Guadelete foi um assunto interno visigodo, se bem que apoiado pelos guerreiros comandados por Tarik Ibn Zyad, a reduzida população árabe envolvida na expansão do Califado Omíada de Damasco, e consequente inexistência de mão-de-obra para uma colonização da Península, e ainda o facto de não existirem notícias de quaisquer batalhas travadas durante o processo de arabização, exceptuando Guadalete e a posterior revolta de Mérida, corroboram a teoria de que se tratou de uma invasão aceite e saudada pela sociedade visigoda da época.
Arcos polilobulados no interior do Alcazar de Sevilha
A matriz identitária do Al-Andalus, aquilo que o caracteriza e distingue, é fundamentalmente uma matriz civilizacional Árabe, enquanto aglutinadora de elementos culturais, linguísticos, sociais e científicos Árabes, incorporando elementos da cultura Berbere e dos Hispano-Romanos, Hispano-Godos e dos Judeus. É assim incoerente referirmo-nos a esse período como o período Islâmico, já que a sua identidade não lhe foi conferida pela religião, nem tão pouco o Islão foi o pólo aglutinador dos vários grupos sociais. Ao contrário, a arabização dos povos Hispânicos, em termos da sua adopção da língua e costumes dos árabes, foi sem dúvida o elemento aglutinador e caracterizador da sociedade Andalusina. Convém lembrar que os Cristãos tinham as suas igrejas e os seus bispos participavam em concílios, como refere José Garcia Domingues na sua descrição do período dos Becres de Ossónoba, bem como os Judeus eram livres de praticar o seu culto nas suas sinagogas. Nesta perspectiva, parece muito mais sensato designar o período em causa por Período Árabe.
Ao abordarmos o tema da arquitectura, no seu sentido mais vasto, ou seja, desde os aspectos urbanísticos, tipológicos, construtivos e estéticos, deparamo-nos com uma dificuldade evidente, que é a de que ela reflecte e incorpora todos esses elementos culturais tão diversos, apesar de indubitavelmente existirem conceitos próprios e genuínos do Al-Andalus, baseados na herança árabe, que subsistem em alguns vestígios na Península, e que foram transportados posteriormente para o Magrebe, onde integram a chamada Cultura Andalusa. Aqui faço um parêntesis para reforçar a ideia de que um outro conceito é fundamental enquanto caracterizador da identidade do Al-Andalus, que muitos arabistas hoje adoptam, é o da utilização do termo Andalusino em oposição ao termo Andalus, para evitar confusões com a designação da actual região espanhola da Andaluzia.
Interior da Mesquita de Córdoba
Neste aspecto é evidente que existirá uma grande diferença entre o Sagrado e o Profano, entre a arquitectura erudita e a arquitectura popular, entre as realizações próprias de uma corrente cultural dominante e as realizações de um saber transmitido de geração em geração.
E se aceitarmos a continuidade social do Al-Andalus, que, como diz Cláudio Torres, “para onde poucos vieram e de onde poucos partiram”, no sentido de que os movimentos populacionais foram diminutos entre a chegada dos Árabes ao estabelecimento da inquisição, somos forçados a concluir que as características da arquitectura “corrente” seguiu o seu caminho tranquilamente.
Mas assim não foi em termos civilizacionais e no urbanismo, sobretudo na qualidade do espaço urbano, nas infraestruturas e nos equipamentos, já que o Período Árabe marcou sem dúvida a diferença pelo grande avanço que aportou, como aliás já acontecera no Período Romano. Institui-se nas principais cidades um serviço de recolha de lixos, a iluminação pública, as redes de bibliotecas, escolas e universidades, os banhos públicos e outras facilidades próprias de uma sociedade avançada e culta.
Deixando de parte os aspectos civilizacionais, essencialmente dependentes de um avanço cultural e de um bem-estar económico, que se reflectem na qualidade de vida e do ambiente urbano, importa entender até que ponto o urbanismo árabe é diverso do urbanismo europeu, em termos de conceitos e de modo de vida. E aqui deparamo-nos com similitudes evidentes, apesar de que, para o senso comum, a cidade árabe e a cidade europeia serem diametralmente opostas, já que existe a falsa noção de que a cidade árabe é um labirinto de traçado irregular e a cidade europeia um conjunto de espaços ordenados e geometricamente regulares. Assim não o é, apesar de existir uma diferença importante, que se materializa, na cidade árabe, no excesso de especialização e no impasse, dois conceitos intimamente ligados. Na verdade, o urbanismo árabe e o europeu apresentam mais semelhanças que diferenças, sendo ambos marcados por traçados viários irregulares, fruto do desenvolvimento orgânico e da adaptação à topografia. Da mesma forma, as estruturas urbanas racionais surgem num e noutro como resultado de operações urbanística planeadas, coexistindo inclusivamente com os traçados irregulares, por exemplo, na introdução de áreas especializadas, como os souks ou as alcáçovas.
O Castelo de S. Jorge em Lisboa
O excesso de especialização reside num zonamento funcional extremo, no qual a função residencial é afastada de todas as outras, sejam administrativas ou comerciais. Aliado a este conceito existe o do impasse, arruamentos de acesso às habitações sem ligação ao restante tecido urbano, a não ser pelo retorno do caminho realizado, evitando o atravessamento das entradas nas residências, que constituem uma espécie de prolongamento da casa na via pública. Este esquema de traçado urbano em árvore corresponde a uma hierarquização do sistema viário, patente na largura dos próprios arruamentos.
“O labirinto típico da cidade muçulmana mantém-se, mas em seguementos de recta (…) o traçado rectilíneo não é contrário ao ideal muçulmano de cidade. A hierarquização das vias de comunicação, que provoca maior acessibilidade às áreas de trabalho, bem como o recato dos espaços residenciais e a diferenciação das zonas da cidade, consoante as suas funções, constituem a sua verdadeira originalidade.” (GASPAR, 1968, p. 30-31)
Esta questão do labirinto típico da cidade árabe e da hierarquização da rede viária materializa-se assim na criação dos impasses, estes sim, elementos da sua originalidade e de incompatibilidade com a cidade europeia, conferindo aos espaços públicos de acesso às habitações um carácter o mais privado possível, evitando o seu atravessamento por pessoas não residentes no local, assumindo a forma de espaços semi-públicos ao nível da sua utilização. Os impasses, coordenados com os traçados sinuosos, desencorajam não só a penetração de estranhos ou inimigos no seu interior, como de vizinhança indesejável.
Acesso a uma habitação em Chefchauen
“Se, numa compreensão mais lata, um sistema viário sinuoso e aparentemente labiríntico concorria para a protecção natural dos habitantes perante uma penetração inimiga, desorientada e surpreendida pela imprevisibilidade dos espaços construídos e vazios, por outro lado, o verdadeiro ‘inimigo’ residia no olhar indiscreto dos vizinhos ou outros moradores. Os valores da privacidade e da intimidade regem a distribuição do espaço não construído, encontrando-se subordinados, em última instância, a uma concepção familiar que se esconde e se desmultiplica em becos, suprimindo ou reduzindo as vistas sobre a via pública, interditando as do vizinho, fechando a casa da violação visual exterior.” (CORREIA, 2008, p. 374-375)
A herança das estruturas do Período Árabe e sua adaptação pelos portugueses, ao nível dos traçados urbanos, resulta sobretudo da anulação dos impasses, criando maior fluidez em termos funcionais, e as experiências posteriormente operadas nas Praças-fortes de Marrocos mostram isso mesmo, como por exemplo em Arzila ou Azamor, nas quais o excesso de fluidez dos traçados ortogonais introduzido pelos portugueses regride através do corte ou anulação de arruamentos, devolvendo às áreas habitacionais a privacidade que os impasses lhes conferiam.
No entanto, existe de facto uma diferença substancial entre o urbanismo português e o espanhol, cuja origem pode ter raízes na própria identidade do Gharb Al-Andalus, afirmação que admito ser controversa e especulativa. A cidade medieval portuguesa é caracterizada por vários aspectos que a diferenciam da espanhola, através de elementos base da sua estruturação, como a Rua Direita, eixo que constitui a sua espinha dorsal, em função do qual se organiza a malha edificada, formada não só por um conjunto de ruas, como de praças e largos de média e pequena dimensão, onde geralmente se situam os principais edifícios públicos, e que muitas vezes resultam do alargamento dos próprios arruamentos, e de grandes espaços públicos periféricos, não raras vezes abertos e de traçado pouco definido, os rossios, onde ocorrem as actividades económicas e os acontecimentos mais relevantes da vida comunitária. A Rua Direita era geralmente um arruamento de traçado irregular, e “o topónimo ‘Direita’ refere-se ao conceito abstracto de direcção” encerrando três aspectos fundamentais, em termos de “qualidade do elemento urbano” – direcção, articulação e atravessamento. (AMADO, 2011, artigo citado)
O Castelo de Silves
A Rua Direita é assim mais do que um simples arruamento. É o eixo que determina a própria hierarquização dos espaços urbanos e que relaciona e articula as diversas áreas homogéneas.
Ao contrário, o urbanismo medieval espanhol baseia-se na estruturação através de um grande espaço aberto central, a plaza mayor, em função do qual o tecido urbano se organiza.
Naquilo que Picard chama o “quadro urbano do poder”, a passagem da cidade Visigoda para a cidade Árabe manifesta-se sobretudo na introdução de alguns edifícios que simbolizam a “orientalização” urbana _ a mesquita, o souk, os banhos, a casbah ou a qaissaria. (PICARD, 2000, p. 222)
Neste quadro urbano do poder assume particular importância o Qasr ou Dar Al-Imara, o Castelo ou Palácio do Governador, implantado estrategicamente para “manter o respeito dos habitantes da cidade” (PICARD, 2000, p. 229). Com o evoluir da apropriação da cidade pelo poder Árabe, surgem as Alcáçovas, Al-Casabah, enquanto cidadela fortificada, onde se concentram os principais edifícios ligados ao poder urbano, que constituem o último reduto da defesa contra os inimigos externos e internos.
Ainda segundo Picard, as Alcáçovas ocupavam no século XI uma área significativa da generalidade dos perímetros muralhados, constituindo verdadeiros bairros administrativos, como em Silves, onde ocupava 1/6 da área total, ou em Lisboa, onde ocupava 1/3 da medina e 1/4 de toda a cidade, incluindo arrabaldes. (PICARD, 2000, p. 234)
O Alhambra ou “Qassr Al-Hamra”, o Castelo Vermelho, de Granada
A Alcáçova ou Cidadela era o centro do poder, onde se instalavam os edifícios administrativos e os palácios que albergavam os governantes da cidade, bem como os aquartelamentos das tropas que os protegiam. Situavam-se geralmente numa posição excêntrica no contexto da estrutura urbana, agarradas à cintura muralhada, ocupando as cotas mais elevadas do terreno e geralmente deixando um espaço vazio entre si e o tecido edificado propriamente dito. A posição dominante da Alcáçova em relação à cidade é uma evidente demonstração de autoridade e de poder, e nas cidades situadas em planícies essa demonstração de poder realiza-se através da grande área que a Alcáçova ocupa. Assim, a sua função acaba por ser muito mais a de defender os governantes dos habitantes, do que dos próprios inimigos, já que, quando a cidade era conquistada, a Alcáçova não resistia sozinha.
Normalmente o vazio existente entre a cidadela e a cidade era chamado de Albacar e constituía um espaço ocupado por gado, “que era levado para a cidade para comércio, para fins militares ou como tributo dos camponeses das zonas vizinhas” (MAZZOLI-GINTARD, 1996, p. 104). O Albacar podia também, em situações de ataques à cidade, servir para acolher os camponeses das áreas circundantes e os seus rebanhos.
“Esta fragmentação da cidade em dois espaços fundamentais, cidadela e habitat, é um elemento tão forte de composição da paisagem urbana que podíamos optar por entrar torre a torre na muralha da cidade ou na do reduto fortificado”. (MAZZOLI-GINTARD, 1996, p. 64)
A Praça Jamaa El-Fna em Marraquexe
Um outro aspecto marcante da cidade do Al-Andalus é a sua extrema especialização em termos de zonamento, distinguindo claramente o espaço público, fosse comercial ou industrial, do espaço residencial.
O “souk” era o coração da vida económica da cidade, organizando-se por profissões, constituindo assim um conjunto de souks especializados _ dos tanoeiros, dos latoeiros, das especiarias, dos cordoeiros, etc, etc. Esta especialização facilitava a fiscalidade, a racionalização dos abastecimentos e a riqueza da oferta para os clientes.
“O ‘souk’ não designa apenas um elemento urbano preciso enquanto mercado, o local de transacção no sentido lacto: é constituído por lojas dispostas ao longo das ruas que se organizam em torno de um ofício preciso. A loja, de dimensões reduzidas, integra também a oficina do comerciante que, sentado no meio das suas alpergatas ou dos seus livros, pode servir o cliente sem se levantar.” (MAZZOLI-GINTARD, 1996, p. 75)
Junto ao souk existia a qaissaria, um bairro comercial especializado onde se vendiam os produtos mais valiosos, como os tecidos de seda e os metais preciosos.
Associados ao souk e qaissaria surgem os funduks, uma espécie de albergues para comerciantes, onde estes podiam alojar os seus animais e mercadorias e aí desenvolver o seu comércio.
O bairro de Albaicín em Granada
A muralha da cidade marcava a diferença entre a Medina e o Rabad, ou a cidade intramuros e os arrabaldes, estes últimos normalmente situados a uma cota mais baixa ou junto a um curso de água, como em Silves, Coimbra ou Santarém. Mas para além desta diferenciação clara entre o intra e o extramuros, a cidade dividia-se em diferentes bairros, seccionados por muralhas secundárias, como acontecia em Lisboa. Este fracionamento do tecido urbano correspondeu em determinados períodos a um fracionamento social, criando-se bairros predominantemente ocupados judeus e dispondo das suas sinagogas, ou bairros moçárabes, dispondo das suas igrejas. No entanto, a regra geral era a de que muçulmanos e moçárabes partilhavam os mesmos bairros, enquanto que os judeus claramente viviam em zonas distintas. Esta estratificação urbana acontecia também ao nível das próprias tribos árabes e berberes, que muitas vezes ocupavam áreas da cidade, estruturadas em torno de uma mesquita de carácter tribal. (MAZZOLI-GINTARD, 1996, p. 70-72)
A cidade do Al-Andalus era densamente povoada, apesar de muitas delas apresentarem vazios interiores ocupados por hortas e pomares. Segundo Christine Mazzoli-Gintard, referindo-se ao caso de Málaga, estima que teria cerca de 348 habitantes por hectare.
A questão do abastecimento de água, seu armazenamento, gestão e saneamento tinham um papel fundamental, sobretudo numa cultura baseada na escassez desse bem e na especialização das técnicas de o gerir. A água era um factor importantíssimo na vida das cidades do Al-Andalus, onde proliferavam os banhos públicos e onde a higiene era parte integrante da forma de viver. Geralmente as cidades situavam-se longe da costa, mas junto a um curso de água. Se a fonte de água estivesse afastada era comum recorrer-se à construção de um aqueduto. O armazenamento era feito em cisternas subterrâneas, e os processos elevatórios tinham por base as noras. Nas principais cidades existiam redes de esgotos complexas, que desaguavam nos cursos ou linhas de água.
Aliás, ligado ao aspecto do saneamento encontrava-se o da localização das próprias industrias poluentes, como as tinturarias e tanoarias, situadas junto aos cursos de água e a jusante da sua utilização pública. Também ao nível da segurança urbana, os fornos ou outras fontes de fogo situavam-se em situação periférica, evitando possíveis incêndios.
O Mihrab da Mesquita de Córdoba
Mas o verdadeiro coração da cidade residia na Mesquita, edifício geralmente simples na sua estrutura, com os seus elementos fundamentais _ a sala de orações, com o mihrab orientado para Meca, o pátio, muitas vezes ajardinado, e o minarete. Ligada à mesquita ficava a escola corânica, local de ensino do Alcorão e de aprendizagem da escrita e leitura.
A Mesquita AJ-Jamaa, a principal, era como que o pulso da cidade, reflectindo a sua unidade, através da presença de fieis nas 5 orações diárias, mas sobretudo na oração da 6ª feira, na qual os dignatários e autoridades locais marcavam presença para afirmação do seu poder.
Uma questão interessante é a de saber por que razão não subsistem praticamente mesquitas do período árabe, apesar de que invariavelmente eram adaptadas a igrejas após as conquistas cristãs das cidades. Podemos especular sobre o assunto, invocando a intolerância religiosa, argumento que não parece ter consistência, já que a adaptação da construção em si a outro uso seria teoricamente possível.
Interior da Mesquita de Córdoba
A questão reside nos conceitos espaciais das arquitecturas religiosas muçulmana e cristã, diametralmente opostos e mesmo antagónicos. O problema das características do espaço interior é a questão central da teoria da arquitectura e da definição dos próprios estilos arquitectónicos. Aliás, é a existência de espaço interior que distingue a arquitectura das outras artes, partindo do princípio que a construção não é um acto apenas de cariz técnico. Nessa perspectiva, aquilo que define os vários estilos arquitectónicos não são os elementos decorativos que exibem, vulgo maquilhagem da construção, mas sim as características do seu espaço interior. Ou seja, a arquitectura não são as paredes e os telhados, mas sim o espaço habitável que estes proporcionam.
Se quiserem, podemos fazer um paralelo com um ovo. Será que o ovo é a sua casca, ou é a clara e a gema que contém no seu interior? Parece razoável para o senso comum que o ovo é de facto a parte que se come, sendo a casca apenas o seu invólucro.
O espaço interior da mesquita é um espaço marcado pela horizontalidade, no qual o crente, prostrado diante de Deus, se volta para Meca. O próprio termo Masjid, designação Árabe de Mesquita, deriva do verbo sajada, que significa prostrar-se. Este conceito espacial horizontal, está também relacionado com a outra designação Árabe de Mesquita, Jamaa, ou local de reunião, tendo em conta que a oração ou salat é um acto colectivo, e consequentemente o espaço em que é praticado deve poder acolher o máximo de fiéis. As mesquitas são assim edifícios com altura relativamente reduzida e área generosa, concentrando-se os elementos decorativos nas paredes, colunas e mihrab.
Mezquita de Córdoba desde el aire. foto Toni Castillo Quero. É notória a agressividade da intrusão causada pelo “enxerto” da Catedral na Mesquita
Ao contrário, o espaço cristão é eminentemente vertical, concebido para que o crente levante os olhos na direcção do tecto do edifício, simbolicamente contemplando o céu. As igrejas são edifícios em que a altura se sobrepõe á área e apresentam geralmente o seu tecto ricamente decorado. A verticalidade do espaço não resulta apenas das suas próprias características volumétricas, mas é acentuada pelos elementos decorativos utilizados nas zonas superiores do edifício. “Um edifício-símbolo construído para representar uma ideia, um mito que impressione, se sobreponha e domine o homem.” (ZEVI, 1977, p. 92)
Para além disso, o espaço de culto cristão é extremamente especializado, no sentido em que encerra um simbolismo materializado num percurso que evoca a própria caminhada da vida. A Pia Baptismal à entrada, marcando o nascimento, a caminhada ao longo da Nave, que simboliza a vida, a transposição do Arco Triunfal, que evoca a morte e a entrada no Paraíso, a Capela-Mor.
A própria relação entre a arquitectura religiosa Muçulmana e Cristã com o meio urbano em que se insere é totalmente distinta. Enquanto a Mesquita se afirma através do minarete, marco urbano identificativo e local de chamamento, a Igreja impõe todo o seu volume edificado, afirmando a sua presença de forma muito mais evidente. O exemplo da Mesquita de Córdoba é paradigmático, já que a grandiosidade da Mesquita se afirma pela área que ocupa na cidade, enquanto a Catedral se afirma pela marca que deixa na sua silhueta. É evidente que, para além deste aspecto conceptual do espaço sagrado muçulmano e cristão, há que ter em conta que a mesquita ocupava uma localização central no contexto urbano, que seria posteriormente disputada pela igreja, que acabava por tomar o seu lugar.
Uma rua em Arzila
A tipologia de habitação dominante não permite caracterizar a casa do Gharb Al-Andalus como um estilo próprio, mas antes o resultado de uma evolução lógica da habitação mediterrânica, voltando costas ao espaço público e abrindo para um pátio interior, que a generalidade das escavações arqueológicas estimam ter em média 100 m2 e 10 habitantes e na Cozinha o seu compartimento principal. (PICARD, 2000, p. 245-246)
A casa típica urbana do Al-Andalus tinha basicamente três espaços espacializados, sem contarmos com dependências existentes para os animais _ o compartimento de entrada para recepção de visitas, a cozinha e a latrina. A restante habitação era um conjunto de compartimentos sem verdadeira especialização, servindo de salas ou quartos, constituindo aquilo a que certos autores consideram o espírito nómada no sedentarismo, ou seja, a utilização dos vários compartimentos em função das épocas do ano, devido às suas características de temperatura ou humidade, e mesmo simbólicas, no quadro de uma hierarquização espacial. Era uma tipologia de habitação voltada para o interior, com uma ligação mínima ao espaço público, que tinha no pátio e na açoteia os seus elementos de contacto com o exterior, protegido das vistas dos vizinhos.
Os edifícios mais abastados tinham dois pisos, eram ricamente decorados e tinham o seu próprio hammam ou compartimento para a higiene pessoal.
Nos palácios e edifícios públicos o conceito de arquitectura modelar, baseada em em conjuntos organizados em torno de pátios interiores, é valorizado com elementos construtivos e decorativos complexos e inovadores.
O provável local do Xarajibe de Silves
O célebre Palácio do Xarajibe de Silves foi descrito por Almotaze, filho de Al-Mu’tamide, e wali (governador) de Silves, citado pelo historiador Ibn Cacane, descrição que, apesar de extremamente poética, não deixa de dar uma ideia da grandiosidade desse edifício:
“Este palácio do Xarajibe chegara então ao mais alto cimo da magnificência e do esplendor. Era semelhante ao mais ínclito da cidade de Bagdade, no Iraque. Corriam nele os nobres cavalos nos seus átrios e brilhavam nos seus terraços os relâmpagos das coisas que mais se poderia desejar e ele oferecia. A fortuna, na verdade obediente, irradiava dele, desde aquele momento em que começava a viagem da manhã até ao fim da viagem da tarde, isto naqueles dias em que não eram afastados desse palácio os talismãs que constituíam a sua segurança. E não faltavam, sequer, ao palácio, cálices com as flores da juventude. Esta cidade tinha-o como local onde alegremente vivia a sua múltipla esperança e a mais alta das suas riquezas. Ao que se acrescentava a beleza do panorama, a fragância dos perfumes e das brisas e a disposição alegre e luxuriante dos jardins e dos tufos de arvoredo. Além do mais, era esta cidade quase rodeada pelos seus dois rios como por um colar, do mesmo modo e no mesmo local em que o homem costuma usar o cinturão”. (DOMINGUES, 1997, p. 157-158)
Trabalho de estuque com motivo epigráfico no Alhambra de Granada
Eram muito utilizados elementos como o arco em ferradura e o arco ogival, simples, lobulados ou com estalactites. Os arcos apoiavam-se em paredes ou em colunas ou conjuntos de colunas, inicialmente com capitéis coríntios e mais tardiamente decorados com folhas de palmeira. As estalactites eram muito frequentes na decoração de cúpulas, executadas com estuques monocromáticos.
Os elementos decorativos eram geométricos, já que os elementos figurativos são proibidos pelo Alcorão. Dentro destes, destacam-se os estuques, os azulejos, as madeiras e os ferros forjados.
Os trabalhos de estuque eram utilizados na decoração de paredes e tectos, com base em elementos abstractos, geométricos, vegetais ou epigráficos. Mas os revestimentos estucados não eram apenas decorativos, mas revestiam também os compartimentos húmidos. Neste campo destacava-se o tadelakt, revestimento da família dos nossos rebocos estanhados, escaiolas ou queimados à colher, que aliam o carácter estético e decorativo à durabilidade e conforto do material. A designação tadelakt provém do Árabe dlak, que significa massajar ou amassar, dado que é uma argamassa tem de ser apertada para lhe ser retirado todo o ar existente no seu interior. O tadelakt é um reboco à base de cal da planície do Haouz, que utiliza o pó de mármore ou a areia fina como inerte, pigmentado, apertado à talocha, barrado com sabão diluído em água, polido com um seixo e, opcionalmente, finalizado com uma camada de cera.
Exemplo de painel de azulejos no Alhambra de Granada
O azulejo andalusino era um dos elementos mais utilizados no revestimento de lambrins e paredes, e está na base da azulejaria medieval e moderna, absorvendo muito dos painéis de tecelas romanos. A técnica utilizada é a do azulejo alicatado, assim chamado pelo facto de utilizar fragmentos de cerâmica vidrada, com combinações de distintas formas e cores, que posteriormente são agregados em painéis, através de uma massa à base de cal e areia fina ou gesso, processo chamado de embrechamento. Esta técnica exige uma grande perícia ao nível do corte dos azulejos e mestria ao nível da disposição das peças para a composição dos painéis, já que as mesmas são dispostas com a face vidrada para baixo, não permitindo visualizar o resultado final.
O processo de fabrico de azulejo implica a utilização de uma argila homogénea, que após uma primeira cozedura é coberta com um líquido para se obter o vidrado. As cores do vidrado obtêm-se a partir de óxidos metálicos _ o azul através do cobalto, o verde através do cobre, o castanho e o preto através do manganésio, o amarelo através do cádmio, o vermelho através do ferro, o branco através do estanho.
A arte andalusina também utilizava muito a madeira, não só na execução de tectos gravados ou pintados, mas também como material de transição dos paramentos de fachada com as coberturas, dando uma ilusão de leveza aos telhados.
Varandas Árabes ou muxarabyas na cidade do Cairo, numa foto antiga
As janelas de entrelaçado de madeira projectadas ou não para o exterior do plano da fachada, concebidas para permitir a visão do exterior sem devassamento do interior, constituíam uma solução muito comum. A varanda Árabe, se assim lhe podemos chamar, é assim um elemento da fachada, uma abertura de dimensões generosas, situada nos pisos superiores da habitação, por vezes balançada sobre a via pública, protegida por painéis de entrelaçado de madeira chamados muxarabyas termo derivado do verbo shariba, que significa beber, já que constituem o local onde se bebia o chá. São também chamados rawshan, termo que deu origem ao nome português reixa. Às designações muxarabia e rawshan juntam-se outras como takhrim, que significa interdição, no sentido de designar o local onde as mulheres olham, mas não são vistas, ou xurjub, plural xarajib, que significa alto ou longo, designando uma abertura generosa na fachada.
O metal era aplicado nos gradeamentos de proteção das janelas, sob a forma de ferro forjado e em chapas para conferir maior resistência às portas.
Execução de uma parede de taipa no Alto Atlas marroquino. autor desconhecido
Os processos construtivos tradicionais são fruto da disponibilidade dos materiais existentes, não dependendo de uma escolha do construtor. Mesmo assim, a construção com pedra e madeira dominava o período pré-árabe, apesar de já se utilizar a terra crua estabilizada em bolsas do território.
Com a chegada dos Árabes, a utilização da terra crua generaliza-se, sendo a taipa o processo dominante, já que se adapta perfeitamente aos terrenos pobres e gravilhosos, consistindo na aplicação directa do material através de uma estabilização mecânica por compressão, através da sua colocação em taipal e apiloamento. Nas construções militares e edifícios administrativos, utiliza-se a taipa militar, chamada também de formigão, que é também estabilizada quimicamente através de incorporação de cal.
Esta generalização da utilização da taipa acontece no século XI e corresponde também a uma forma de construir bem mais económica e rápida, sendo combinada com a pedra nos remates das construções, como nos cunhais e molduras de vãos. A taipa viria a revelar-se como um material extremamente eficaz quando surgem as primeiras armas de fogo, desmistificando a ideia de que a pedra era um material muito mais resistente e eficaz, já que evitada os ressaltos e lascagem que a pedra produzia e tinha uma capacidade de absorção dos impactos muito superior.
Nas zonas onde a pedra domina, como por exemplo nas serras, a construção com pedra mantém-se como processo dominante. Nalgumas situações podia existir pré-fabricação, nos casos em que o material disponível não se encontrava em condições de ser utilizado directamente, como por exemplo nas zonas de várzeas, onde os terrenos são extremamente fortes. Esses solos integram um teor de ligante demasiadamente alto para serem utilizados sem provocarem a sua fissuração, o que obriga à pré-fabricação de blocos armados com fibras vegetais, chamados adobes.
Torre Albarrã no Castelo de Silves
Mas as inovações na arquitectura militar do Al-Andalus não se ficaram pela técnica em si, introduzindo-se conceitos que poderemos chamar de pré-renascentista, já que abriram caminho para a própria arquitectura adaptada à pirobalística, plenamente desenvolvida a partir do século XV por italianos e portugueses. Surgem os primeiros alambores, escarpas na base das muralhas para afastar os seus atacantes e evitar a minagem das fundações, os fossos, e as filosofia de implantação dos torreões nos panos de muralhas atinge o seu ponto mais elaborado com a introdução das torres albarrãs, ou exteriores, que, ao projectarem-se para fora do pano das cinturas fortificadas, permitiam atacar o atacante pelas suas costas e criar nas portas esquemas de entrada em sifão que inviabilizavam a utilização de armas de assalto.
Os conceitos da arquitectura militar aliam ao aspecto prático o próprio poder de dissuasão que muitas vezes desencoraja um ataque inimigo. (MAZZOLI-GINTARD, 1996, p. 61)
Tecto Mudéjar na Casa de Pilatos em Sevilha
A arquitectura do Gharb Al-Andalus perdura no pós-período Árabe de diversas formas e por diversas razões. No período subsequente à conquista cristã, os chamados Mudéjares, muçulmanos integrados na sociedade cristã, termo derivado de mudajjan ou domesticado, criam um estilo próprio peninsular, chamado hispano-muçulmano, que não só incorpora nas novas construções elementos construtivos e decorativos anteriores, como sobretudo permite constituir uma alternativa à arquitectura cristã tradicional, baseada na utilização da pedra, e, como tal, muito mais difícil de trabalhar e muito mais cara. O Mudéjar afirma-se sobretudo como um conjunto de estilos regionais, que em Portugal tem uma expressão reduzida, mas que perdura até finais do século XVI.
A dissimulação Mourisca na arquitectura poderá ter na chaminé algarvia uma das suas manifestações, se bem que constitua uma posição controversa, existindo autores que defendem que simboliza o minarete das mesquitas.
Pátio da Casa do Alentejo em Lisboa
No período Romântico, concretamente nos finais do século XIX e primeiro quartel do século XX, surge o estilo Neo-Árabe, muito ligado a edifícios públicos de prestígio, moradias e prédios urbanos, ou a imóveis de carácter industrial, como os matadouros. A influência é apenas ao nível da cosmética, como na forma dos vãos, estilos de platibandas, uso de arcos em ferradura, cúpulas ou revestimentos de azulejos.
Como conclusão direi que a influência da Arquitectura do Gharb Al-Andalus ficou sobretudo enraizada no Sul de Portugal, em muitas das características das estruturas urbanas, em tipologias da arquitectura popular e nas técnicas tradicionais de construção.
Pingback: Ceuta nos primórdios da ocupação portuguesa – Título do Site
Gosto muito deste blog!! Escrevo isto após terminar a 2.ª leitura deste trabalho impressionantemente bem realizado, parabens!
Muito obrigado pelo seu comentário.
Cordiais saudações
Pingback: Pitch: Subsídios à relação entre as Cruzadas Cristãs como causa do Jihadismo | Gustavo Augusto Bardo
O seu blog é magnifico .Parabéns.
Obrigado