A Cidadela de Mazagão, que se constitui no Mellah ou Bairro Judeu de El Jadida, 50 anos após o abandono da praça pelos Potugueses
O período da ocupação da costa Atlântica de Marrocos por Portugal, através da criação de uma rede de praças-fortes, que marca o início da época da Expansão Portuguesa, é um período de grandes transformações políticas e sociais, que ficaria marcado pela intolerância, perseguições e expulsões das minorias religiosas. Portugal e Marrocos passam a ser duas margens de um Mundo onde essas minorias se relacionam, tentando sobreviver e preservar a sua identidade, enfrentando forças poderosas que infernizavam a sua existência.
Os Judeus tiveram um papel determinante para a sobrevivência económica das praças Portuguesas e para o relacionamento institucional entre Portugal e Marrocos, já que eram uma comunidade aceite pelos dois lados e um veículo do entendimento entre ambos. Mais do que isso, foram um elo de ligação entre as várias religiões e etnias, que permitiu estabelecer pontes e um diálogo, fundamentais para a solução de muitos problemas da vida quotidiana das várias comunidades.
A Judiaria de Castelo de Vide
Apesar de não ser consensual a definição do estabelecimento dos primeiros Judeus no actual território Português, sabemos com toda a certeza que no início da nossa era já existiam comunidades consideráveis. O seu estatuto no Portugal Cristão instituído pela chamada reconquista “mostrava-se similar aos de outras áreas de maioria cristã. Era regrado e definido pelo direito canónico e romano, ao que se somavam as ordenações particulares do reino, a legislar sobre as especificidades vivenciadas pelos hebreus da região” (ASSIS, 2003, p. 214). Não existia assim uma segregação espacial dos Judeus no Portugal dos primórdios da sua formação, tendo inclusivamente um papel essencial no povoamento e controlo territorial de determinadas regiões e no preenchimento de cargos de relevo, pelo seu conhecimento especializado em determinados ofícios, por exemplo a medicina, e contributo para a economia dado o grande número de comerciantes que as suas comunidades integravam.
No reinado de D. Dinis começa a esboçar-se uma tendência para a segregação dos Judeus em bairros próprios, que viria a ser formalizada por D. Pedro I em 1361. São então instituídas as Judiarias, inicialmente também chamadas Aljamas, à semelhança das Aljamas de Mouros ou Mourarias (do Árabe “al-jamaa” ou “ajuntamento”), em todas as cidades onde o número de Judeus ultrapassasse os 10 indivíduos. À segregação espacial correspondia a instituição de um “sistema de rabinato”, em que era nomeado um Rabi-mor, pessoa notável aceite como tal pela comunidade e que a representava no relacionamento com o Estado, e reconhecido pela Coroa Portuguesa. Foram instituídos três impostos especiais para as Judiarias e um horário de entrada e saída nas mesmas, que vigorava entre o nascer e o pôr-do-sol. (ASSIS, 2003, pp. 217-218)
As comunas Judias eram todas urbanas, “por razões de segurança e de vida colectiva”, tinham como elemento central a Sinagoga, e eram legitimadas por uma Carta de Privilégios, na qual eram “referidos os direitos e os deveres dos membros da comuna que podemos sintetizar do seguinte modo: afirmação da sua dependência directa em relação ao rei, seu único senhor; declaração de naturais do reino; permissão para livremente poder praticar a sua religião, língua e direito, este último inserto no Talmud; declaração da autonomia administrativa, jurídica e fiscal perante o concelho cristão e os seus oficiais, através da possibilidade de eleger os seus próprios magistrados entre os correligionários mais aptos para o desempenho dos mesmos; autorização para poderem circular livremente pelo reino, adquirir bens móveis e de raiz, urbanos ou rurais, fazer contratos com cristãos e mouros, naturais e estrangeiros e exercer, sem qualquer espécie de restrições, toda a actividade lícita; especificação dos tributos que deviam pagar à coroa (peitas, serviço real, incidindo este sobre o indivíduo, os bens fundiários e móveis, rendimentos de trabalho e ensino), à comuna e ao concelho”. (TAVARES, 1993, pp. 447-448)
Sinagoga da Judiaria de Castelo de Vide
Esta segregação espacial era o corolário de uma segregação social já instituída desde o reinado de D. Afonso IV, com a obrigatoriedade de uso do “sinal”, uma roda ou uma estrela, cosido nas roupas. Este conceito de segregação e de redução dos direitos de cidadania é comum a toda a Europa do século XIV, marcada por pestes e fome, que canalizam para os “assassinos de Cristo” a causa de todos os males e provocam perseguições e assassinatos. Em Espanha acontecem assaltos a várias judiarias em 1328, sobretudo nas regiões de Navarra, Catalunha e Castela. Estas perseguições dão origem a um primeiro movimento de fuga de Judeus para Portugal.
Durante a revolução de 1383-1385 vários judeus tomam o partido de D. Leonor e têm que fugir para Castela, sendo os seus bens confiscados. Alguns deles, muitos dos quais pertencentes à comuna de Santarém, inclusivamente participam na Batalha de Aljubarrota pelo lado Castelhano. (MORENO, 1991, pp. 23-25)
Mas em Espanha o clima anti-judaico era generalizado e nos anos de 1366, 1367, 1373 e 1391 novos “pogroms” ocorrem, provocando novas fugas em massa para Portugal. A Coroa Portuguesa tem neste período uma atitude de protecção aos Judeus, se bem que não acompanhando o sentimento geral da população. D. João I vê nos Judeus um apoio à guerra contra Castela, apoio sobretudo económico. (MORENO, 1991, p. 26)
Maria José Tavares refere a importância dos nomes próprios e dos apelidos Judeus na sua identidade comunitária, que a denunciam de forma clara e exclusiva, como José, Abraão, Moisés, Jacob ou Salomão, ou Cohen, Levi, ou Benjamim, e espelham muitas vezes as origens geográficas dos seus portadores. Por exemplo, após as migrações para Portugal no século XIV, “encontramos os apelidos associados à toponímia da naturalidade, quer na forma adjectivada, como Navarro, Aragonês, Castelhano, Catalão, Galego, Toledano, Soriano, Segoviano, Zamorano ou Samorano, Sevilhano, Barcelonim, Valencim, Malagui, Carmonin, Ledesmim (…) Mas a mobilidade também ocorria no interior de cada reino, arrastando consigo, no caso português, o topónimo da naturalidade: de Tomar, de Leiria, de Coimbra ou Coimbrão, de Beja, de Seia, de Gouveia, de Faro, de Vila Real, do Porto, de Viana, da Pederneira, de Aveiro, Beirão.” (TAVARES, 2014, p. 91)
A comunidade Judia em Portugal seria de cerca de 30.000 pessoas nos meados do século XV. Com a expulsão dos Judeus de Espanha pelos Reis Católicos em 1492, estima-se que 120.000 Judeus Espanhóis tenham fugido para Portugal, aumentando exponencialmente o seu número no nosso país.
Apesar de a “Carta Patente” de D. Manuel de 1496 ordenar que Judeus e Mouros devessem abandonar Portugal até Outubro de 1497, não era intenção da Coroa que todos partissem, mas que se convertessem. A saída dos barcos era dificultada e usavam-se formas de pressão para obrigar as famílias à conversão, como raptar os filhos e baptizá-los. As sinagogas foram progressivamente confiscadas, apesar de neste período inicial a liberdade de culto fosse teoricamente legal (BRAGA, 2020, pp. 259-260). Muitos fugiram, tendo como destinos preferenciais o Norte de África, a Índia, o extremo Oriente, a Itália, os Países Baixos e a França. Os que ficaram afastaram-se das áreas mais populosas, refugiando-se na Raia onde a pressão era menor, sobretudo no Alentejo e na Beira.
Mouriscos do Reino de Granada, passeando pelo campo com mulher e criança. Desenho de Christoph Weiditz de 1529
Uma primeira nota sobre as minorias religiosas do século XV em Portugal.
Os Cristãos-Novos eram os antigos Judeus da Península convertidos ao Cristianismo após a expulsão decretada em 1496, de forma forçada ou voluntária, que em muitos casos assumiam uma cripto-religiosidade Judaica, situação que não era, no entanto, regra geral. O facto de existir esta designação de Cristãos-Novos é sintomática da desconfiança que as autoridades nutriam por eles, colocando permanentemente em causa a sinceridade da sua conversão. Era uma população extremamente estratificada, desde “grandes magnatas do tráfico colonial até aos pequenos mercadores, artesãos e camponeses que sobreviviam da labuta diária”. (BARROS e TAVIM, 2013, p. 5)
Os Mouriscos eram os Muçulmanos convertidos ao Cristianismo no seguimento da mesma expulsão decretada em 1496, mas contrariamente aos Cristãos-Novos, os Mouriscos portugueses não eram naturais de Portugal. Por um lado, muitos dos Muçulmanos portugueses fugiram para Marrocos ou para Espanha, ou foram assimilados pela sociedade, diluindo-se sobretudo no meio rural. Os Mouriscos de Espanha “eram descendentes dos antigos mudéjares dos vários reinos hispânicos, acrescentados, no final do século XV, pelos muçulmanos de Granada e pelos contingentes de mudéjares lusitanos a que fizemos menção. No caso português, os mouriscos eram estrangeiros de várias procedências, sobretudo da região magrebina, que vinham ingressando em Portugal, na condição de escravos, em meio à expansão marítima” (RIBAS, 2006, p. 2). Eram uma comunidade pouco estratificada, constituída por gente urbana extremamente pobre. Os homens trabalhavam como almocreves (condutores de animais de carga), mariolas (moços de fretes), estribeiros, vendedores de palha, serviçais ou criados, enquanto as mulheres eram sobretudo lavadeiras, criadas de serviço doméstico, amas de crianças, cozinheiras, compradeiras, regateiras, vendendo peixe, pão, água e leite nas ruas, ou trabalhavam nos portos “escamando e salgando linguados e cavalas ou arrumando sardinhas” (RIBAS, 2006, p. 6). Esta situação acentuava a dificuldade de conversão ao Cristianismo e de integração na sociedade, já que os mouriscos, na sua grande maioria, eram convertidos já adultos, com personalidades já formadas e crenças próprias, sendo na sua maioria cripto-muçulmanos. O cripto-islamismo deu origem a termos dissimulados, alguns dos quais estão na origem de muito do calão da língua portuguesa (PAULA, página electrónica citada). Em Marrocos, os Mouros que colaboravam com os portugueses eram Mouriscos que viviam nas praças-fortes, normalmente exercendo as funções de almocadéns.
Os Judeus eram os chamados “judeus livres que tinham autorização para se deslocar a Portugal, ou aqui residir, a título precário” (BARROS e TAVIM, 2013, p. 5). Apesar da expulsão decretada aos Judeus, o poder permitiu que alguns se mantivessem em Portugal, mas que sobretudo muitos dos Judeus Marroquinos se deslocassem a Portugal para comerciar, já que os seus negócios eram vitais para a Coroa Portuguesa, como a importação de cereais ou a exportação do lacre e da pimenta, ou a sua mediação no resgate de cativos. Eram os chamados “judeus de sinal”. Eram obrigados a usar uma estrela amarela cosida no vestuário e um chapéu de cor amarela, sendo os homens também conhecidos como “judeus de chapéu amarelo”.
Os Mouros eram os Muçulmanos, comunidade que “cobria, de facto, uma realidade social e jurídica bastante diversificada: o da minoria muçulmana (os “mouros forros”), os escravos/cativos de guerra ou, ainda, a população de território islâmico, globalmente designada por “Terra de Mouros” (BARROS e TAVIM, 2013, p. 9). Eram tratados como cidadãos de segunda, já que os cristãos não lhes reconheciam direitos de plena cidadania. Entre outras restrições, refira-se que não lhes era permitida a saída das mourarias após o pôr-do-sol, não podiam frequentar casas de putaria ou tabernas e, caso se ausentassem do país sem licença real, viam todos os seus bens confiscados. Eram obrigados a diferenciar-se dos Cristãos através das roupagens, como por exemplo, “no toucado teriam uma marca branca, as aljubas seriam com dois palmos de largura, nos albornozes haveriam quartos diantes (…) capas, balandraus, capuzes e escapulários assinalados com o sinal do Crescente, em vermelho, cosido no ombro. O cabelo deveria ser rapado à navalha” (ALVES, 2007, p. 125). Em Marrocos, os Mouros que lutavam do lado dos Portugueses, eram conhecidos como “mouros de pazes ou mouros de sinal”.
Forno em Mazagão
Um aspecto interessante do trabalho de Barros e Tavim referenciado na bibliografia é o facto de que cerca de dois terços dos Judeus denunciados e julgados pela inquisição eram mulheres, não só por serem elas a preservar os rituais Judaicos, como a transmiti-los às gerações seguintes. “Elas são as continuadoras do culto judaico, estando muitas vezes os maridos ausentes devido às suas actividades. São elas as mentoras e praticantes dos rituais, que cozem o pão ázimo e interditam a feitura de certos alimentos. É devido à sua prática quotidiana no lar que elas também mantinham mais facilmente os preceitos religiosos que uniam a família, não só relativos ao ritual mas também ao património moral” (BARROS e TAVIM, 2013, p. 15).
Frequentemente as mulheres Cristãs-Novas casavam-se com Cristãos-Velhos com o objectivo da transmissão por via feminina da identidade cripto-judaica, passando a herança Judaica de geração em geração. “Sabemos por exemplo que em Tânger, no século XVI, todas a filhas da família Mendes-Fernandes – uma família de sapateiros – acabaram por se casar apenas com sapateiros cristãos-velhos. Os progenitores – Álvaro Mendes e Joana Fernandes – eram ambos cristãos-novos e a última filha de pai castelhano. Acontece que as irmãs de Álvaro Mendes já se haviam casado todas com sapateiros ou outros cristãos-velhos, assim como também se casariam com cristãos-velhos uma sua neta e uma sua sobrinha” (BARROS e TAVIM, 2013, pp. 16-17).
As mulheres Mouriscas eram também alvo especial do santo ofício, já que a denuncia de um cripto-islamismo se manifestava em grande medida nas práticas domésticas, que eram origem de denuncias, como por exemplo tomar banho frequentemente, vestir roupa lavada à sexta-feira ou assinalar a morte de um familiar com a oferta de cuscuz aos pobres, como foi o caso de Francisca Lopes, moradora em Almeirim, descrito por Maria Filomena Barros. Os testemunhos de Francisca Lopes aos esbirros da Inquisição, o Tribunal do Demónio, como os Mouriscos lhe chamavam, revelam claramente esse cripto-islamismo patente em práticas, mas também na língua. Exprimiam-se em árabe, “falavam todos em aravya”, e utilizavam expressões corânicas nos ritos que praticavam, nomeadamente nas refeições conjuntas ou no “cella”, “salat” ou oração. (BARROS, 2013, pp. 39 e 50)
Mouriscas em trabalhos domésticos. Desenho de Christoph Weiditz de 1529
Existia uma identificação entre as minorias, não só pelo facto de terem um agressor comum, mas também por questões de vínculo social/laboral e inclusivamente religiosas. Há relatos de fugas para Marrocos envolvendo Judeus e Mouros, como são exemplo a tentativa do Judeu Abrão Benzamerro (Ben Zamirou), rabi-mor da comuna dos Judeus da cidade de Safim entre 1537 e 1539 por nomeação do Rei D. João III (TAVIM, 2013, p. 60), para levar para Marrocos a sua amante Leonor Mendes, judia conversa, acompanhando-se por um casal de Mouriscos, ou a tentativa do Judeu de Ceuta, Jacob Mexia, para levar para Marrocos três Mouriscas. Essas Mouriscas, Cristãs por conversão, chamavam à água benta “água de bacalhau”, no sentido de água suja (BARROS e TAVIM, 2013, p. 31). No caso das fugas promovidas por Judeus fazendo-se acompanhar por Mouros, é provável que se tratasse de empregados ao seu serviço.
Esta identificação era também religiosa, já que ambas as religiões, Judaísmo e Islamismo, consideravam que o Cristianismo não era um Monoteísmo verdadeiro, patente na negação da Trindade, assim como pelo caracter iconoclasta de ambas as religiões, que recusam a adoração de imagens, considerada idolatria.
No texto de Barros e Tavim é relatada a visita do Cristão-Novo Diogo da Cunha e do Mourisco Lourenço de Melo à casa das prostitutas Maria de Aguiar e Maria da Rosa, onde Diogo perguntou a Lourenço “qual era a melhor religião – a dos cristãos ou de “Mafoma”? O mourisco respondeu que a de “Mafoma” e nela havia de morrer, e que só se dizia cristão para receber um tostão de esmola. Então também Diogo da Cunha confessou que continuava a acreditar na “Lei de Moisés”, esperando nela salvar-se. Neste diálogo exprimiram-se ambos em Árabe para que as mulheres os não entendessem” (BARROS e TAVIM, 2013, pp. 33-34).
Esta identificação Judaico-Islâmica correspondia a uma falta de entendimento por parte de muitos Cristãos em diferenciar uns dos outros, já que o conceito de nação e de confissão era confuso. Para os portugueses, Portugal era Cristão e a Terra dos Mouros professava a fé de Mafoma. O facto de os Judeus marroquinos que visitavam Portugal serem “arabizados”, não só nos trajes, mas inclusivamente porque a língua que os interpretes utilizavam era o árabe, tendia a inclui todos no conceito de Norte-Africanos. Os próprios Judeus ajudavam a aumentar esta confusão, como refere José Alberto Tavim, ao citar o exemplo de “um converso de Fez, de nome Felipe Correa de Balboa, casado em Portugal com uma lavradora”, que disse “a uns companheiros que conhecia outros mouros de nação hebreia, como ele” (TAVIM, 2013, p. 62).
Gravura de Ceuta. Origem, data e autor desconhecidos
Os primeiros contingentes de Judeus que se estabeleceram nas praças de Marrocos foram sobretudo degredados, indivíduos condenados em Portugal que cumpriam penas no além-mar, normalmente beneficiando de uma redução na sua duração. Nesta fase inicial da vida das praças não existia uma motivação para a fixação voluntária de populações, pela situação de degradação física que essas urbes apresentavam, fruto das destruições provocadas pelas suas conquistas, e pelo clima de insegurança que nelas se vivia, dado que eram sujeitas a ataques permanentes. Exceptuavam-se alguns indivíduos de profissão especializada e fundamental, como os físicos e os cirurgiões. (TAVIM, 2004, p. 149)
A estes somavam-se as comunidades já existentes à data da conquista das praças, os chamados “Toshavim”, do Hebreu “residentes”, que no período inicial, ou seja, até 1496, beneficiam do apoio inequívoco das autoridades Portuguesas, contribuindo para a vida económica das cidades cuja generalidade da população tinha sido expulsa. É o caso de Ceuta, onde os Judeus que viviam num arrabalde extramuros chamado Al-Hara, que dispunha de sinagoga e cemitério, que após a conquista se transforma numa zona de guerra e acaba por ser arrasado. Durante a conquista toda a população é morta ou expulsa, mas pensa-se que que as comunidades Cristã e Judia abandonaram a cidade antes do assalto português, o que corrobora a teoria de que a Ceuta portuguesa era no seu início uma cidade exclusivamente dedicada à pirataria (GOZALBES CRAVIOTO, 1995, pp. 193-198).
Mesmo assim há notícia da presença de Judeus em Ceuta nesta fase inicial após a conquista portuguesa. Alguns deles inclusivamente participaram na conquista da cidade e no saque que se seguiu, conforme Zurara refere: “E assim D. João, e D. Fernando seu irmão com todos os nobres fidalgos, que ali estavam, e assim cavalgando foram pelo lugar onde fora aquela peleja, na qual já andavam Judeus, e mulheres, e outra gente a roubar, e não sem causa, porque haviam ali muitas, e muito boas coisas de grande valor (…) nem os Judeus ficavam sem parte daquela gloria, porque como eles são gente, cujo ânimo se esforça muito sobre as coisas vencidas, andavam tão ferozes naquele dia, que aquilo somente ficava por descanso aos vencedores, vê-los postos naquele ardimento contra sua antiga natureza” (ZURARA, [1463] 2015, pp. 472-474).
Alguns deles ocupavam cargos de relevo, como o ourives do Infante D. Henrique, José Arame, José, cirurgião e intérprete do Infante D. Frenando e mestre José, físico do capitão da Praça, D. Pedro de Meneses. (GÓMEZ BARCELÓ, 2015, pp. 189-190)
Carta náutica da Costa Ocidental de Africa de 1571, in Atlas de Fernão Vaz Dourado, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Aliás a participação dos Judeus nos Descobrimentos foi relevante na própria preparação das viagens marítimas, fosse na produção de cartografia, como foi o caso da contratação de Jácome de Maiorca pelo Infante de D. Henrique, “o qual viria a ser, depois de muita celeuma, identificado com Jaffuda Cresques, filho de Abraão Cresques”, ou por exemplo o envio do Judeu José Vizinho pelo Rei D. João III à Guiné para medir a altura do sol no equador. José Vizinho fazia parte, juntamente com D. Diogo Ortiz e mestre Rodrigo, de um conselho régio para o estudo do empreendimento dos descobrimentos. “A ele deve ter sido agregado Abraão Zacuto, na década de 90, pois dele conhecemos a ordem de pagamento de cinco moedas de ouro, mandada lavrar por aquele soberano e cujo recibo foi assinado em hebraico por ele (…) José Vizinho traduziu para castelhano e latim o Almanaque Perpétuo de Zacuto e as tabulas de declinação solar, que viriam a ser editados em Leiria, na tipografia dos judeus Orta”. (TAVARES, 1993, p. 461)
Muitos outros Judeus integravam as tripulações das caravelas, sobretudo como mercadores e para o resgate de mouros e negros.
Ainda antes de 1496, há notícia do estabelecimento em Ceuta de uma família de comerciantes Judeus, os Alfaquim, que controlavam o comércio na cidade e em Alcácer Ceguer. (GÓMEZ BARCELÓ, 2015, p. 190)
As primeiras grandes migrações de Portugal para as Praças acontecem nos anos de 1492 e 1496, datas da expulsão dos Judeus de Espanha e de Portugal. Em Marrocos são conhecidos como “Megorachim”, do Hebreu “reenviados”, mas que são conhecidos universalmente como Sefarditas, designação que deriva de Sefarad, nome Hebreu da Península Ibérica. Alguns, conversos forçados ou Judeus que mantiveram a sua fé, optaram por fixar-se nas praças Portuguesas, Ceuta Tânger e Arzila, e mais tarde, em Santa Cruz, Safim e Azamor. A ida para as praças de Marrocos era para eles de alguma forma atractiva, já que podiam aí exercer as suas profissões de artesãos ou comerciantes à margem das perseguições que na Península sofriam e podiam, sobretudo, fugir para as cidades Marroquinas, onde a tolerância era bastante maior. (TAVIM, 2004, p. 149)
A Bab Dekaken (Porta das Lojas) ou Bab as-Saba’ (Porta do Leão), também conhecida como Porta do Principe Português por aqui ter estado exposto o corpo de D. Fernando, o Infante Santo, entrada para o Mellah ou Bairro Judeu de Fez
Muitos dos Judeus expulsos dirigiam-se directamente para as cidades Marroquinas. Fez foi o primeiro destino de muitos deles, estabelecendo-se em Fès-Jdid, junto ao palácio do sultão Merinida, onde lhes era garantida a sua segurança. O “mellah” ou bairro Judeu de Fez Jedid, palavra cuja origem não é clara, mas que alguns autores defendem que deriva de “terra salgada”, no sentido de “terra estéril”, já existia desde o século XIII e seria o único de Marrocos durante alguns anos. A sua localização na “nova Fez” resulta da transferência dos Judeus que viviam anteriormente em Fès el-Bali, a “Fez velha”, no chamado Fondok El-Youdi, e que foram alvo de perseguições pelos muçulmanos, invejosos do seu poder económico e influência que detinham na vida política (TERRASSE, [1950] 2016, pp. 30-31).
Após a conquista de Fez pelos Oatácidas, Mulai Cheikh, que estabelecera o acordo de paz em 1471 com D. Afonso V, promove junto das autoridades portuguesas de Arzila a transferência de Judeus para o “mellah” de Fez, beneficiando da sua cultura e conhecimentos, mas também da sua riqueza e espírito empreendedor. (TAVIM, 2004, p. 151)
Segundo Marmol y Carvajal, o “mellah” de Fez tinha 10.000 habitações, muitas lojas e várias sinagogas. (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 170)
Os Judeus e os Cristão estavam abrangidos em Marrocos pelo estatuto de “dhimmi” ou “protegidos”, já que, pelo facto de professarem religiões do Livro de Deus, não podiam ser atacados ou obrigados à conversão ao Islão. No entanto, por não seguirem o Alcorão, não tinham direitos iguais aos dos Muçulmanos, como por exemplo exercer o seu culto de forma pública, terem a obrigatoriedade de pagar um imposto especial, não poderem ter cavalos, animais considerados nobres, e terem de usar roupas distintas. Esta condição inferior das duas comunidades levou a que muitos Cristão habitassem também o “mellah”, onde se sentiam mais seguros, mediante um pagamento aos Judeus. (TAVIM, 2004, pp. 151-152)
O segundo “mellah” a ser criado foi o de Marraquexe, que Luis de Marmol y Carvajal refere ter três mil fogos (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 59). Existiam também outros importantes “mellah” nas chamadas cidades Andalusas de Marrocos, ou cidades que acolheram os contingentes de Muçulmanos e Judeus expulsos da Península, como Tetuan, Chefchauen, Meknès e Ksar El Kebir. Na obra de Marmol y Carvajal é feita uma referência aos Judeus de Safim, dizendo que o seu comércio era muito mais próspero antes da chegada dos portugueses (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 78) e a Azamor, que o autor diz ter 400 fogos pertencentes a Judeus (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 97).
A Medina de Fez
Neste ponto convém fazer uma referência à questão da compartimentação das cidades em bairros destinados às várias religiões ou etnias. É claro que a criação das mourarias e judiarias após a conquista Cristã da Península tinha um objectivo de criar guetos para as minorias expulsas dos núcleos urbanos centrais, inclusivamente colocando-as em áreas extra-muros. Esta segregação física correspondia também ao exercício de regras diferentes para essas minorias.
No caso da cidade Árabe ou Islâmica, conforme lhe quisermos chamar, já que a designação não é consensual, essa realidade não é tão evidente. O processo de construção da cidade Árabe assenta num processo de planeamento parcial, promovido pela autoridade supervisora, limitado à definição das linhas mestras do seu traçado, eixos viários principais e traçado da muralha, e ao estabelecimento de certas instalações comunitárias, por exemplo a mesquita principal, os banhos, o mercado e as construções governamentais como a “dâr al-imâra”. O território ficava assim dividido em células que eram atribuídas aos vários grupos étnico-tribais, que as ocupavam e geriam.
Os seguintes relatos de Ibn Abi Zar’ de 1326 sobre a fundação de Fez por Idriss ben Idriss no ano de 808 e seu desenvolvimento subsequente foram retirados da obra de Navarro Palazón e Jimenez Castillo referenciada na bibliografia:
“Começou a construção do muro do bairro de al-Andalus pelo Norte, e rodeou-o todo de muros; nele edificou a mesquita que está em rahbat al-bîr (a esplanada do poço), que se chama mesquita dos xeques, e pregou nela o sermão da sexta-feira. De seguida, empreendeu a edificação do bairro de al-Qarawiyîn (…) transferiu-se para aí desde o bairro de al-Andalus, estabelecendo-se no lugar chamado al-Maqarmada. Levantou ali uma tenda e começou a edificar a mesquita, hoje chamada dos Chorfâ, pronunciou nela a jutba e, depois, empreendeu a construção da sua casa, chamada agora Dâr al-Qaytûn, onde habitam os seus filhos os Chorfâ al-Djûtiûn. De seguida, edificou a alcassaria, ao lado da grande mesquita; e ao seu redor, os mercados. Mandou os moradores construir e plantar e disse-lhes: ‘Aquele que construa no seu lugar e o plante antes de se terminar a construção da muralha, terá esse lugar para si grátis, por meu desejo de ver la cara de Dios’. Os moradores construíram e plantaram pomares e as casas e jardins multiplicaram-se.”
Fez
Navarro Palazón e Jimenez Castillo comentam desta forma este trecho do texto de Ibn Abi Zar’:
“Do texto deduz-se que aquilo que o fundador constrói primeiro é a muralha ao mesmo tempo que os moradores se instalam livremente dentro dela, seguramente que com a limitação de não obstruir os caminhos que previamente existiam; em segundo lugar será a mesquita principal e a sua casa, seguramente situada junto a ela, que seria a referência principal da autoridade; depois se levantará a alcassaria e o mercado, que provavelmente foram fundações piedosas destinadas à manutenção do oratório. Também se promove a criação de espaços cultivados, que pensamos indicia a necessidade de garantir o sustento do grupo construtor ao mesmo tempo que demonstra que o lugar elegido para estabelecer a cidade antes de ser cercado é transformado num espaço agrícola. O aspecto do primeiro núcleo urbano é, indubitavelmente, o de uma cidade dispersa, na qual abundam jardins e hortas e plantadas árvores frutícolas. Outra das fontes referidas por Ibn Abî Zar’ incide no carácter tribal da ocupação do espaço intramuros no momento da fundação:”
“Quando terminou Idriss a construção da cidade e a rodeou de muralhas toda ela e montou as portas, instalou nela as cabilas, dando a cada uma o seu lugar. Deu aos árabes qaysíes desde Bâb Ifrîqiya até Bâb al-hadîd, no bairro de al-Qarawiyîn; instalou a cabila de al-Azd ao seu lado; e aos Yahsubíes ao lado destes, pela outra parte. Estabeleceu as cábilas de Sinhâdja, Luâta, Masmûda y al-Chayjân, cada uma no seu lugar, e mandou-os lavrar a terra e cultivá-la.” (NAVARRO PALAZON e JIMENEZ CASTILLO, 2007, pp. 276-278)
Mértola. Livro das Fortalezas de Duarte de Armas de 1509-1510
Estas descrições são esclarecedoras do processo oficial de promoção da cidade, mas com uma implementação semi-planeada, na qual o promotor, neste caso o Estado, assume a definição das linhas gerais do traçado urbano, mas deixa para as comunidades a estruturação das suas áreas, os bairros. Por outro lado, a estrutura da cidade prevê áreas não edificadas, pelo facto de não prever mecanismos para a sua expansão, que acabam por desaparecer através de um processo de densificação ou de saturação. A separação entre esses bairros fazia-se muitas vezes através de tramos de muralha que marcavam de forma clara os territórios de cada uma das etnias.
Estas operações de parcelamento tinham assim como objectivo estruturar as zonas residenciais, atribuindo a grupos com determinadas afinidades uma zona para se instalarem, constituindo bairros ou quarteirões, chamados “darbs”, ficando esses grupos responsáveis pela sua gestão.
“Idealmente os agregados familiares de um darb são considerados unidos por laços pessoais múltiplos e por interesses comuns. Estes laços complexos simbolizam a qrâba, um conceito chave que literalmente significa proximidade (A palavra “qraba” tem como significado “familiar”). Quando utilizado por Marroquinos tanto em meio urbano como rural, qrâba comporta contextualmente significados que atinge imperceptivelmente reclamados e reconhecidos laços de parentesco, participação em alianças faccionárias, laços de apadrinhamento e clientelismo, e obrigações comuns desenvolvidas fora da vizinhança. Uma darb pode ser definida como a ampliação da qrâba num espaço físico contíguo. Pode afirmar-se que o prestígio e força da qrâba são atribuídos pelos seus agregados familiares e por outros cidadãos. Os agregados familiares de uma darb deveriam ter capacidade para assumir uma determinada unidade moral para que o espaço social da sua darb possa ser considerado uma extensão do seu próprio agregado familiar.” (EICKELMAN, 1974, pp. 283-286)
O bairro Judeu ou “mellah” era normalmente situado intramuros numa posição não central, geralmente confinante com a muralha. Muitas vezes, e dependendo sobretudo da importância económica dessa comunidade e consequente utilidade para o Estado, as comunidades judias eram colocadas num bairro localizado em situação privilegiada, paredes meias com o palácio do governador ou o castelo, onde ficavam melhor protegidos de ataques ou de calamidades como incêndios ou pestes (GASPAR, 1968, p. 20).
A explicação anterior é relevante no sentido de se compreender que planeamento e gestão eram conceitos indissociáveis, o que pressupunha que existisse uma unidade social dentro de cada célula habitacional.
Planta de Essaouira de 1767 de Théodore Cornut, Bibliothèque Nationale de France
A construção Essaouira nos finais do século XVIII através de um plano desenhado por Théodore Cornut, encomendado pelo sultão Sidi Mohamed ben Abdallah, processa-se em moldes semelhantes, se bem que o planeamento da época já justificasse uma acção estatal mais interventiva. Foi criado o Bairro do Rei ou Casbah, onde se localizavam os principais edifícios do Estado, os consulados dos países Europeus e se instalaram os Toujar, ou negociantes do rei, geralmente Judeus. A Medina foi habitada sobretudo por Berberes Haha e Árabes Chiadma, e foi criado o “mellah”. Importantes contingentes militares encontravam-se estacionados na cidade, incluindo os famosos ’Abid Al-Bukhari, os escravos negros do Sultão, que estiveram na origem de outros três bairros residenciais da actual medina _ Ahl Agadir, Bani Antar e Bouakhir. Quando a cidade foi terminada, o Sultão chamou negociantes Europeus para fazerem o seu comércio e, para os atrair, dispensou-os das taxas alfandegárias. Neste processo foi determinante o peso da comunidade Judia local, cujos contactos e relações comerciais que mantinha com a Europa facilitaram o estabelecimento dos Europeus. Estima-se que nos finais do século XVIII os Judeus representassem 40% da população de Essaouira, o que levou inclusivamente à construção de um segundo “mellah”.
Mapa das praças, fortalezas e feitorias portuguesas em Marrocos
A situação das comunidades Judias nas Praças do chamado Marrocos Verde e do Marrocos Amarelo era distinta.
No Marrocos Verde ou Praças do Norte, Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger, a situação era menos tolerante, pela proximidade a Portugal, pela pressão da existência das Dioceses de Ceuta e Tânger, pela pouca vitalidade económica das Praças e pelo facto de que foram povoadas de raiz, tendo em conta que as populações autóctones foram expulsas durante a sua conquista.
No Marrocos Amarelo ou Praças do Sul, Santa Cruz, Safim e Azamor, vivia-se um clima de maior tolerância, pelas razões contrárias, ou seja, pela maior distância a Portugal, a menor pressão que a Diocese de Safim exercia, a grande vitalidade económica, e consequente importância da presenças dos Judeus, e pelo facto de os próprios Judeus que viviam antes da conquista portuguesa em Safim e Azamor terem permanecido nessas cidades e inclusivamente terem apoiado essa conquista.
Apesar desta realidade, em Ceuta sempre existiu comércio com Tetuan, exercido pelas comunidades Judias das duas cidades, bem como contactos diplomáticos oficiais mediados por Judeus, com especial incidência no resgate de cativos. São exemplo as mediações de Bastião Vargas utilizando o Judeu Jacob Rute no relacionamento entre o capitão de Ceuta, Afonso de Noronha, e a governadora de Tetuan, Saída al-Hurra, ou o resgate de vários cativos por um Judeu de Alcácer Quibir de nome Isaac Arrivas, que adiantou o pagamento dos resgates, vindo a Ceuta receber o seu valor. (GÓMEZ BARCELÓ, 2015, p. 191)
Safim
Numa carta datada de 4 de Maio de 1509, o Rei D. Manuel escreve aos Judeus de Safim prometendo-lhes nunca os expulsar da cidade e de não os obrigar à conversão ao Cristianismo, mas, caso o pretendam, poderão praticar o culto judeu até ao dia do baptismo. Acrescenta que se por algum motivo decida expulsá-los de Safim, seria concedido um prazo de dois anos para que preparassem a partida e que, ao partirem, levariam todos os seus bens e não seriam molestados. (CÉNIVAL, 1934, pp. 174-176)
Numa outra carta de 5 de Junho de 1510 D. Manuel confirma o Rabi Abraão Benzamerro, médico habitante da cidade de Safim, como rabi-mor dos Judeus de Safim, com jurisdição civil e criminal em todos os assuntos que concernem os Judeus. É inclusivamente criada uma prisão especial para Judeus. (CÉNIVAL, 1934, p. 175)
Pedro Dias refere que após a conquista de Azamor “a população muçulmana abandonou as suas casas, ficando apenas a comunidade judaica, à qual se juntaram mouros de outras zonas, colonos idos do Continente, de Castela, e, sobretudo, da ilha da Madeira.” (DIAS, 2004, p. 126)
A frente de rio de Azamor
Manuel concede privilégios aos Judeus de Azamor idênticos aos que tinha concedido aos de Safim, incluindo não pagar como tributo “mais do que uma onça por habitação, ao preço de 320 reais a onça, como concedemos aos Judeus que vivem na nossa cidade de Safim” (CÉNIVAL, 1934, pp. 175-176).
D. Manuel não queria que fossem acolhidos Cristãos-Novos em Azamor com receio de que os Judeus pudessem influenciar o seu comportamento, conforme refere o capitão da Praça Rui Barreto numa carta datada de 21 de Fevereiro de 1514, na qual escreve que “quanto aos cristão novos que Vossa Alteza não há por seu serviço viverem cá, eu não tinha mais neste cidade por vizinhos que até dez cristãos novos, a saber: um cerieiro e um tintureiro e dois alfaiates e um tosador e um serralheiro; e este não é cristão novo na arte nem no coração, que o conheço, que é de Lagos. Os outros são mercadores, aos quais não dei senão chãos para fazerem casas e dois ou três pardieiros; alguns deles têm suas casas feitas. Não me parece que podemos recusar oficiais destes ofícios, que não temos cristãos velhos para estes, deve Vossa Alteza de dar lugar, e mais deles foram na tomada desta cidade e ficaram logo aqui. Se Vossa Alteza há porque lhe parece que não serão cá tão bons cristãos por respeito dos Judeus, onde eu estiver, haja Vossa Alteza por certo que o hão de parecer mais que lá, onde não olhara ninguém por eles”. (CÉNIVAL, 1934, p. 497)
A comunidade Judia era ouvida na gestão urbana da própria Praça, como em Azamor, conforme relata Simão Correa numa carta enviada em 3 de Outubro de 1516 a D. Manuel: “E quanto, Senhor, à Judiaria, bem se pode fazer dentro, em que se recolham todos os que na cidade há em uma rua ou duas. Porém Senhor, eles me requerem por Ahe Adibe, que é bom servidor de Vossa Alteza e o acho homem certo, que Vossa Alteza lhe desse ao longo do muro da ribeira duas ou três ruas, que fossem direitas á fortaleza, e que eles à sua custa se taipariam e se velariam, e tendo necessidade se recolheriam à fortaleza”. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1939, Parte 1, p. 40)
O tratamento privilegiado que os Benzamerro de Safim detinham era semelhante ao dos Adibe de Azamor, família que também apoiou os portugueses na conquista da cidade. Moisés Adibe tinha tido uma educação Cristã em Tavira e sabe-se que parte da sua família era de confissão cristã, apesar de serem públicas cerimónias judias na cidade, onde se vivia uma liberdade considerável. (TAVIM, 2004, p. 157)
Interior do Castelo do Mar de Safim
A importância das comunidades judaicas na vida económica das Praças portugueses era determinante e está patente no facto de D. Manuel ter tentado por todos os meios evitar o abandono dos Judeus que viviam em Safim aquando da sua conquista em 1508, tendo-lhes para tal, concedido liberdade religiosa e facilidades tributárias. A esta situação não seria estranho o facto de algumas das famílias Judias que viviam em Safim terem ajudado os Portugueses a conquistar a cidade, como os Benzamerro e os Rute. Isaac Benzamerro ganhou inclusivamente o direito a deslocar-se a Marrocos quando entendesse, acompanhado de dois criados, para fazer os seus negócios, e estava dispensado do uso do “sinal”. (TAVIM, 2004, p. 154)
O poder económico dos Benzamerro era tal, que dominavam o comércio em Safim, Santa Cruz e Mazagão, negociando entre as duas margens do Estreito, ou seja, importando e exportando entre Marrocos e Portugal. Abraão Benzamerro promovia a exportação de trigo para Portugal e a importação de lacre da metrópole. Chegou a ser agraciado por D. João III com o estatuto de cavaleiro (TAVIM, 2004, p. 155). Esta aceitação da sua actividade pela Coroa Portuguesa tinha correspondência com os negócios que também mantinha com as autoridades de Marrocos, o que fazia com que na prática fosse um intermediário das trocas comerciais entre os dois países. De entre os seus clientes estavam Mulai Ibrahim, alcaide de Chefchauen e Vice-rei de Fez e inclusivamente o próprio Sultão de Marrocos.
As ordens de compra de determinados produtos eram por vezes dadas pelo Rei aos comerciantes Judeus, que informavam as autoridades dessa compra, como é o caso de uma carta 29 de Maio de 1512 de Nuno Gato a D. Manuel informando-o de que estava a tratar da compra de 3.000 moios de trigo, conforme lhe havia sido comunicado por Isaac Benzamerro. (CÉNIVAL, 1934, pp. 311-315)
Os Judeus intermediavam na compra de mercadorias em Marrocos para serem enviadas para a feitoria de Arguim e trocadas por escravos, patente numa carta de Meyer Levi de 14 de Novembro de 1514 ao Rei D. Manuel, pedindo o pagamento de várias compras que fizera em Marraquexe para o Tesouro Real, compostas de haiques, 1.000 peças de roupa e 200 lambéis, no valor de 2.000 cruzados (CÉNIVAL, 1934, p. 653). Noutra carta com mesma data, Nuno Gato informa o Rei que a Casa da Índia pede com urgência roupas para Arguim, que estão na posse de Meyer Levi e de Yehouda, irmão de Isaac Benzamerro, entre as quais se encontram 2.000 haiques e mais de 100 tapetes. (CÉNIVAL, 1934, p. 655)
O trigo da Duquela
A importância da própria gestão da logística das Praças em termos de abastecimento de trigo tinha participação directa dos Judeus, como se comprova numa carta de Nuno Fernandes de Ataíde a D. Manuel datada de 29 de Outubro de 1513, na qual o capitão de Safim informa o Rei que enviou Isaac Benzamerro a Almedina buscar trigo, o qual apenas deveria ser entregue em Safim se não fosse necessário em Azamor, cidade que se encontrava numa grande carência de alimentos. (CÉNIVAL, 1934, pp. 443-445)
Os Judeus de Safim e Azamor exportavam para Portugal os bens de que o país necessitava. Desde logo cereais, mas também açúcar, passas, cera, goma, anil, ouro e escravos. Em contrapartida importavam de Portugal pimenta, lacre, lambéis e algodão. (TAVIM, 2004, p. 158)
As receitas da alfândega de Safim eram um reflexo desse comércio próspero, como refere David Lopes. “Por uma declaração de Nuno Gato, em Maio de 1512, relativa aos direitos que pagavam na alfândega de Safim determinadas mercadorias que entravam na cidade, se vê o comércio que aí se fazia de produtos da região. Eis a enumeração de alguns: peles de cabra, couros de vaca, cera, lã, anil marroquim, alquicés, pescado, mel, manteiga, boi ou vaca, carneiro, tasconte, cardão, haiques” (LOPES, [1937] 1989, p. 55).
O pagamento de elevadíssimos tributos por parte das tribos submetidas na Duquela, pagos sobretudo em trigo, cevada, milho, cavalos, burros, camelos, carneiros e têxteis, constituíam outra fonte de receita e comércio de grande valor. “Os tributos em trigo que a Duquela, Abda, Xiátima e outras tribos pagavam eram mais de 7.000 cargas de camelo”. (LOPES, [1937] 1989, p. 61)
“Safim, revelou-se um negócio lucrativo para os mercadores portugueses, tendo-se consolidado durante o reinado de D. Manuel, com a criação de uma fábrica de alambéis, cuja produção foi confiada ao judeu Meyer Lévi”. (EL ATTAR, 2016, p. 104)
O Morabito de Sidi Bouknadel no local da antiga Cidadela de Santa Cruz do Cabo Guer
A sobrevivência económica das Praças dependia muito dos contratos estabelecidos entre a Coroa Portuguesa e os Judeus, com base no seu abastecimento com produtos comerciados com os Marroquinos, o que implicava também acordos de paz circunstanciais com os portugueses. A situação que se viveu em Santa Cruz em Setembro de 1529, quando o Xerife cerca a Vila com 400 lanças e proíbe o comércio dos Judeus de Safim em Marraquexe, põe em causa o abastecimento da Vila e a paz que Benzamerro tinha alcançado com os Sádidas. Numa carta de Simão Gonçalves da Costa de 15 de Setembro de 1529 pode ler-se: “Senhor, depois de minha chegada a esta Vila, veio aqui um mercador de Marrocos e me deu conta do concerto de pazes que tinha feito Benzamerro com o Xerife, e por vir um navio a Tafatana de mercadores, e tanto que souberam o concerto tiveram seus receios que as desmancharam, como pode saber pelo dito Benzamerro que me dizem que é a V. A. E assim tem mandado o Xerife que todo o Português e Judeu que não entre na sua terra, sob pena de perder toda mercadoria e morte; porque diz que, com o trato, trazem dinheiro para pagarem este lugar e os outros que V. A. tem nesta parte, e, se Benzamerro não vender suas mercadorias, que não poderá cumprir o contrato que tem feito com V. A. e que se perderão de todo estes lugares.” (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1946, Parte 2, pp. 482-487)
Os judeus praticavam também a usura, através de empréstimos realizados a título individual, mas também às próprias autoridades, para pagamento dos soldos e das obras de reparação das muralhas ou outras construções.
Isaac Benzamerro é encarregue pessoalmente por D. João III de pagar os soldos na cidade de Azamor no ano de 1529, bem como fornecer as mercadorias de que a cidade necessitava. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1946, Parte 2, pp. 453-454)
Numa carta de 20 de Junho de 1530 é dada a nota de que Benzamerro se encontrava preso (não existem dados sobre que cativeiro foi este) e que por essa razão os soldos não eram pagos em Azamor. “E se a V. A. parece que tem cá provido para se pagarem os soldos da gente desta cidade, passa de um ano que se lhe não paga nada por este cativeiro de Benzamerro, sem haver cá pessoa que se possa obrigar a fazerem-lhe pagamento, porquanto no seu contrato que eu vi não por quem lançar mão somente por ele só ser obrigado no contrato”. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1946, Parte 2, pp. 535-543)
O poder económico dos Judeus era utilizado pelas autoridades também através de donativos que a comunidade fazia, como em 1518 para a construção de uma ponte para atravessar o Rio Morbeia. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1939, Parte 1, pp. 248-249)
O Dragão de Azamor num pavimento da cidade
O chamado comércio humano, fossem escravos, mas sobretudo resgate de cativos eram promovidos pelos judeus, que utilizavam a sua capacidade de transferência de dinheiro entre a Europa e Africa para realizar o pagamento dos resgates. Estes processos de resgate eram realizados em missões de redenção, geralmente da responsabilidade de ordens religiosas, os chamados redentoristas, com a intervenção de intermediários, quase sempre judeus, que cobravam somas astronómicas como comissões, que podiam atingir os 40% do valor do resgate. Por exemplo, “a troca dos cativos portugueses por cativos marroquinos realizada no ano de 1696 realiza-se pelo adiantamento duma soma de 60.000 piastras por um judeu residente em Amesterdão escolhido pelo tesoureiro do Sultão”. (MAZIANE, 2002, p. 8)
Azamor era um centro económico com grande afluência de mercadores portugueses e italianos, sendo testemunho do seu comércio com o Oriente a figura do Dragão de Azamor, patente ainda hoje nos bordados da cidade. Era um importante centro de venda de escravos, sobretudo de populações arrebanhadas nos campos circundantes, como atestam muitos dos autos de fé realizados em Portugal pelo Santo Ofício contra mouriscos originários da região, ou como ilustra a própria história do lendário Estêvão de Azamor, considerado o primeiro africano na América do Norte.
Este papel de Azamor enquanto principal e primeiro mercado de escravos do Algarve dalém, está também patente nos Anais de Arzila, quando, no ano de 1521, Bernardo Rodrigues se desloca a Azamor para comprar escravos. O autor diz que “de Safim e Azamor vinham muitos navios carregados de mouros e mouras formosas”. Mais adiante afirma que “trouxe cinco peças de muito boas escravas”, que descrimina da seguinte forma: “Eu comprei, dentro em Azamor, de um morador uma moura, moça de menos de vinte cinco anos, muito alva e formosa, e mais alta de corpo do que eu, com um filho de seis anos, por quarenta tostões (…) Também andei nos aduares com meus companheiros, e neles comprei, de um senhor de uma alhaima ou tenda, uma filha e uma neta, assaz bem assombradas, a filha por trinta e dois tostões, a neta por vinte oito; e, acabando de lhe contar sessenta tostões por duas moças, que ambas não passavam de vinte cinco anos, me quis convidar com uma pouca de carne de camelo assada, que em tasalhos tinha, a qual eu não ousei comer; e comprei um moço, muito gentil homem, por dezasseis tostões”. (RODRIGUES, [156-] 1915, pp. 327-329)
A par deste comércio lícito, alguns judeus praticavam o comércio ilícito, importando da Flandres armas e pólvora que vendiam ao Estado Marroquino. (TAVIM, 2004, p. 159)
Cavaleiros da Duquela
Quando em 1518 o chamado Protectorado da Duquela se encontrava em desagregação, são mantidas negociações com algumas tribos, como os Ouled ‘Amran, que pedem a presença do Rabi Abraão nas conversações com os portugueses, conforme carta de D. Nuno Mascaremhas a D. Manuel, datada de 29 de Julho desse ano. As conversações iniciam-se em Safim e foram difíceis, prolongando-se por vários dias, tendo sido delegado no Rabi o poder para negociar em nome do capitão da Praça, incluindo libertação de prisioneiros e pagamento de vinte onças de prata a cada um dos seis notáveis da tribo, tendo sido montado um acampamento para o efeito em Tazrout, para onde Abraão se deslocou. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1939, Parte 1, pp. 204-213)
Noutra ocasião Abraão Benzamerro acompanhado de outro Judeu de nome Damam desloca-se ao Suss para libertar seis portugueses cativos do Xerife. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1939, Parte 1, pp. 323-328)
A própria libertação do famoso Adaíl Lopo Barriga é mediada por Abraão Benzamerro, como atesta uma carta de Garcia de Melo ao Rei D. João III datada de 5 de Outubro de 1526. Parte do resgate seria pago em moedas e prata e parte em tecidos. No final da carta, Garcia de Melo escreve ao Rei: “Abraão Benzamerro tem muito bem feito sobre estes cativos de muitos anos a esta parte, e assim em tudo o que cumpre entre esta cidade e os Mouros fê-lo sempre fielmente. Segundo tenho sabido, é desejoso de Vossa Alteza o saber e lhe mandar seus agradecimentos por carta. Receberei mercê em lha mandar, porque certo eu tenho necessidade dele para casos.” (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1939, Parte 1, p. 371)
As negociações de paz levadas a cabo por D. João III e o Rei de Fez no ano de 1518 são mediadas por Abraão Benzamerro (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1946, Parte 2, pp. 432-437)
. Há notícias que também em Santa Cruz do cabo Guer Abraão Benzamero enviava familiares seus para acompanharem os portugueses nas negociações para resgate de cativos. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1946, Parte 2, pp. 438-440)
A Batalha de Alcácer Quibir num panfleto volante ilustrado de grande formato, com gravura em madeira de Hans Rogel, Augsburgo, 1578. Zentralbibliothek-Zürich
Mas a grande operação de resgate de cativos Portugueses tem lugar após a batalha de Alcácer Quibir, quando é negociado o resgate de 80 nobres portugueses através da mediação de Abraão Rute, líder da comunidade judia de Fez e do italiano André Corso. Esta mediação incluía a instalação temporária de muitos cativos no “mellah” de Fez enquanto as diligências para o pagamento dos resgates se processavam. (TAVIM, 2004, p. 159)
Basicamente, os Judeus adiantavam às autoridades de Marrocos o valor do pagamento dos resgates dos nobres Portugueses, que se comprometiam a pagar quando chegassem a Portugal. Como era proibida a livre entrada de Judeus em Portugal, o acordo previa que se faria uma conversão dissimulada, cujo padrinho era invariavelmente o resgatado, e após o pagamento do resgate o Judeu fugia de volta para Marrocos e para o Judaísmo.
A conversão para cobrança de dívidas pelos resgates de nobres era assim uma situação apenas económica, mas obrigava o converso a apresentar-se no Santo Ofício, que o encaminhava para o Real Colégio dos Catecúmenos de Lisboa, instituição criada para doutrinação de “infiéis” e sua integração no universo Cristão. José Alberto Tavim cita os casos de António de Barcelos, aliás Jacob Jaén, cuja conversão esteve ligada ao resgate de D. Teodósio, Duque de Barcelos, seu padrinho de baptismo, ou Bastião Pereira, aliás Juda Castiel, que se baptizou em Ceuta tendo como padrinho o capitão da praça, D. Dinis Pereira, ou ainda Francisco de Castro, aliás Abraão Sason que acompanhou cinco cativos a Portugal para cobrar o resgate. (TAVIM, 2004, p. 161)
“Man in Oriental Costume” de Rembrandt, supostamente retratando Samuel Pallache. Hermitage Museum, Saint Petersburg
Os Juseus foram interpretes pelo seu conhecimento da língua árabe, do português e castelhano. Por vezes desempenhavam cargos diplomáticos, como foi o caso de Samuel Pallache, que foi embaixador de Marrocos nos Países Baixos. O seu papel foi determinante para o incremento do comércio entre os dois países no século XVII e para o apoio holandês às acções do corso marroquino. (TERRASSE, [1950] 2016, pp. 228-229)
Na sequência do grande cerco de 1511 a Safim, o Rabi-mor da cidade, Abraão Benzamerro escreve ao Rei D. Manuel solicitando-lhe uma credencial diplomática para conduzir negociações com os Mouros e pede que o capitão da Praça, Nuno Fernandes de Ataíde, seja convidado a trata-lo como um servidor de Sua Alteza. (CÉNIVAL, 1934, pp. 281-283)
O seu conhecimento de segredos dos dois lados permitiu-lhes também ser espiões, muitas vezes agentes duplos. Frequentemente passavam informações aos Portugueses sobre as movimentações dos Mouros dos aduares vizinhos, como neste relato de Nuno Fernandes de Ataíde a D. João de Meneses datado de 28 de Março de 1514 que refere que “me chegou aqui um Judeu, que me disse que oito aduares de Sidi Abdellah que estavam junto de Almedina se levantaram e se foram para os outros Alarves que estão esperando el-Rei de Fez e os seus alcaides”. (CÉNIVAL, 1934, p. 512)
O rei de Portugal socorria-se também dos Judeus enquanto conselheiros, caso de Isaac Benzamerro, como testemunha uma carta de Nuno Fernandes de Ataíde ao Rei D. Manuel, na qual refere que irá enviar a Portugal Isaac Benzamerro para lhe relatar o plano da incursão que pretende fazer a Marraquexe, acrescentando que “eu, Senhor, o escolhi para este negócio, porque é pessoa em que eu muito confio nas coisas de vosso serviço, e tenho necessidade dele para estas coisas, e tem discrição para isto, e sabe bem as coisas de cá; e também por muita amizade que tem com Yahia”. Nuno Fernandes refere-se ao alcaide Mouro Yahia Bentafuft, chefe dos Mouros de Pazes e nomeado Alcaide da Duquela pelo próprio Rei D. Manuel, em quem confiava mais do que nos seus próprios capitães. A carta ao Rei D. Manuel inclui ainda a opinião de Benzamerro sobre qual deveria ser a delimitação dos territórios de Safim e Azamor, terminando assim: “eu, Senhor, nomeei aqui a Vossa Alteza estas coisas em que tem servido Isaac Benzamerro a Vossa Alteza, e são de substância, e assim tem servido em outras coisas, que também o são, e serve cada dia, e por lhe fazer favor e merece, eu a receberei muito grande, porque eu afirmo a Vossa Alteza que ele a merece, e espero em Deus de receber dele em diante maiores serviços que estes já feitos”. (CÉNIVAL, 1934, p. 573)
Rua na Medina de Azamor
Ahe Adibe escreve directamente ao Rei D. Manuel em 25 de janeiro de 1517 dando-lhe conta de que o Rei de Fez se prepara para atacar a Duquela e conquistar Azamor, e que será necessário reforçar a guarnição da Praça. Vale a pena ler esta passagem da carta: ”Quanto, Senhor, a esta cidade, saberá V. A. Que está muito desfalecida de gente, o qual ela nunca esteve tanto, e o temor que aqui temos, Senhor, é que este perro é muito grande manhoso na guerra e temos medo que uma noite nesta cidade com 15 ou 20 mil homens a escale e a tome, o que Deus lhe não dará tal poder, porque certifico a V. A. que se ele toma a cidade que não temos remédio no castelo ainda que o castelo seja muito forte (…) e isto tome-o V. A. de mim como de seu servidor leal que eu sou e serei enquanto Deus quiser e não o tome V. A. como Judeu, porque isto, Senhor, não digo por medo que haja, senão pelo que cumpre a V. A.”. (CÉNIVAL, LOPES e RICARD, 1939, Parte 1, pp. 60-62)
Nos anos 30 do século XVI os Xerifes Sádidas já dominam Marraquexe e a Duquela e estão em guerra aberta com o Rei Oatácida de Fez. A diplomacia tem neste período um papel fundamental. Por um lado, os portugueses tentam tréguas com os Xerifes para manter Santa Cruz, Safim e Azamor, por outro negoceiam tréguas com o Rei de Fez para evitar a sua queda e o inevitável controlo de Marrocos pelos Sádidas, que alteraria por completo a situação das nossas praças. Para o Rei de Fez, a paz com Portugal era fundamental para se concentrar na guerra contra os Xerifes.
Mais uma vez o papel diplomático dos Judeus é determinante, como foi exemplo o de Jacob Rute e seu irmão, Judeus de Fez, que, junto com Mulai Ibrahim Berrechide, vice-rei de Meknés, conferenciam com D. João Coutinho, capitão de Arzila, enquanto intermediário do Rei D. João III (CÉNIVAL, 1948, pp. 46-55). Mas a política portuguesa jogava também com as guerras internas de Marrocos e o capitão de Arzila informa D. João III que o momento era propício à ocupação de Larache, que não poderia ser socorrida pelo Rei de Fez, empenhado na sua guerra com o Xerife. (CÉNIVAL, 1948, pp. 57-58)
O Baluarte de Tambalalão em Arzila
No ano de 1538 é assinado um Tratado de Paz entre D. João Coutinho, em representação de D. João III, e Mulai Ibrahim, representando Ahmed el-Wattassi, que estabelece os limites territoriais das Praças, determina que o comércio será livre entre as duas partes e que nenhuma delas acolherá navios estrangeiros nos seus portos (CÉNIVAL, 1948, pp. 158-165). No ano seguinte é discutido entre Bastião de Vargas (ou Sebastião de Vargas), informador de D. João III e seu feitor do trigo junto do Rei de Fez, e Mulai Ibrahim, qual seria o nome do Embaixador de Marrocos na Corte Portuguesa, sendo um dos nomes mais consensuais o do Judeu Jacob Rute, em quem o Rei de Fez confiava como seu emissário. (CÉNIVAL, 1948, pp. 202-206)
Numa carta datada de 8 de Setembro de 1542, Bastião de Vargas escreve a D. João III dando-lhe conta que o Rei de Fez o contactou informando-o que as autoridades Portuguesas tinham fechado o porto de Ceuta aos comerciantes de Marrocos devido a um desentendimento entre a governadora de Tetuan, Saída al-Hurra, e o capitão da praça, D. Afonso de Noronha, situação que estava a ser muito prejudial aos interesses de Marrocos. O Rei de Fez informou-o que enviou Jacob Rute a Tetuan para falar com a governadora e pediu-lhe que intercedesse junto do capitão de Ceuta. A desavença tinha como base a autorização que Saída al-Hurra, “mulher muito belicosa e mal sossegada em tudo”, dera aos Turcos para utilizarem os portos na sua dependência. (RICARD, 1951, pp. 89-93)
As comunidades judias das praças criaram também redes de fuga de cristãos-novos de Portugal para Marrocos, utilizando Safim, Arzila e Azamor como “placa giratória” de passagem de judeus com destino a Fez, Tetuan e Larache. “Abraão Benzamerro, Abraão Rute, Joacb Rute, Moisés Rute e tantos outros estiveram ligados a essa actividade (…) chegando Moisés a ser detido por ordem da Inquisição, em Tânger, no ano de 1542 devido às acusações deste teor que sobre ele recaíam” (TAVIM, 2004, p. 161).
É prova disso uma carta que o feitor do trigo em Fez, Bastião de Vargas, escreve a D. João III dizendo que muitos Cristãos-Novos Portugueses vão comerciar a Marrocos e fogem, voltando ao Judaísmo e ficando no país. O autor da carta pede ao Rei que esses Cristãos-Novos não sejam autorizados a sair das Praças, obrigando-os a fazer o comercio com os Judeus Marroquinos no seu interior. (RICARD, 1951, pp. 55-56)
Esta situação está também patente numa carta de Bastião de Vagas a D. João III, datada de 2 de Abril de 1539, na qual pede ao Rei que reitere a interdição de deixar passar os Cristãos de Espanha a Marocos e de Marrocos a Espanha, e que tomem medidas contra os Cristãos-Novos que, sob pretexto de vir comprar trigo marroquino, desembarcam em Larache, Mamora e Salé e se instalam em Meknés, aplicando-se penas severas a todas as pessoas provenientes de Portugal. (CÉNIVAL, 1948, pp. 200-201)
Barqueiro no Rio Morbeia em Azamor
No início do século XVI a situação das Praças de Marrocos era de penúria, sobretudo em Azamor, como relata o físico mestre Rodrigo em 1527, que não poupa críticas aos Judeus da cidade. “Posso bem certificar a V. A. que a pobreza e a necessidade dos moradores desta cidade é tanta que não crerão senão que o vi e que se não fosse a caça do monte, com que se reparam, assim para comer dela, como para vender e comprar disto o pão e o vinho e o pescado e todas as outras despesas da casa, que já muitos deles se foram por este mundo de desesperados; e a causa disto é V. A. não lhes acudir com a paga dos seus tempos devidos, e assim por haver três anos que uns judeus rendeiros desta cidade, por uma condição que tinham no seu arrendamento, roubavam aos moradores em tanta maneira que o que valia mil reais vendiam por três mil”. (LOPES, [1937] 1989, p. 67)
A situação de penúria e especulação com os víveres em Azamor é também relatada pelo juiz Vicente Rodrigues Evangelho em 1530, que descreve a corrupção que existia. “Esta cidade está em condições de se perder pela grande fome que nela vai, há bem quatro meses, não por culpa de V. A. que nos mandou pão para sete ou oito meses e não se pagaram senão quatro; o outro se sumiu da maneira que lhe direi. Os capitães que querem entesourar engrossam dos judeus e mouros e os judeus dos cristãos que, por não lhes pararem os tratadores, vendem seus soldos e rações a 10 e a 15 reais o alqueire.” (LOPES, [1937] 1989, p. 68)
A degradação de Azamor nos anos 30 é acompanhada de um endurecimento das liberdades das minorias, como é testemunhado numa carta de Estêvão Ribeiro a D. João III datada de 16 de Janeiro de 1537, na qual refere que “certas pessoas que receberam água de baptismo e agora vivem aqui publicamente casados com Mouras e vivem na sua mesma lei que antes tinham, chamando-se pelos seus nomes de Mouros, e assim alguns Judeus que também foram Cristãos a agora são casados com Judias, e se nomeiam pelos seus nomes de Judeus. Eu perguntei ao Capitão como se consentia em viver estes Mouros aqui tão publicamente, pois são cristãos. Ele me disse que já tinha esprito a V. A. como estes Mouros e estes Judeus aqui estavam, e que V. A. lhe respondera que os deixassem estar, que não bulissem com eles. E porque se espera que V. A, mande qua a Santa Inquisição, a qual cá será bem necessária”. (CÉNIVAL, 1948, pp. 83-84)
A frente de terra de Ceuta
No século XVII o comércio nas mãos dos Judeus em Ceuta era próspero, de tal forma os Judeus eram tantos, que acampavam em tendas fora das muralhas (GÓMEZ BARCELÓ, 2015, p. 196). Ceuta era também uma cidade de trânsito entre Marrocos e a Península muito utilizada por comerciantes como os irmãos José e Samuel Pallache. E apesar do endurecimento da ação da Inquisição nessa época, as judiarias e o papel dos Judeus prestavam um serviço inestimável às autoridades que as mantinham com determinados privilégios, como refere Bernardo López Belinchon citado por José Luis Gómez Barceló:
“A peculiar situação dos presídios requeria manter neles pequenas judiarias cujos membros actuavam como intérpretes ou intermediários com o território que rodeava a fortaleza. Pese a excepção legal que supunha permitir a presença de judeus, ainda que com algumas limitações para os seus moradores, dentro do território da Monarquia, a sua utilidade permitiu que estas judiarias subsistissem, com diversas vicissitudes, até ao século XVII e princípios do XVIII como no caso de Ceuta”. (GÓMEZ BARCELÓ, 2015, p. 196)
Este facto não impediu os muitos processos inquisitoriais levados a cabo em Ceuta contra Judeus durante os séculos XVI e XVII.
Em Mazagão os Judeus que controlavam o comércio na Praça eram vistos com desconfiança pelo papel duplo que jogavam com as autoridades de Marrocos, surgindo muitas vezes como interlocutores e intermediários entre as duas partes. Obedeciam a uma disciplina rigorosa e tinham autorizações temporárias de permanência na Cidadela.
O Bispo de Ceuta visitou a Praça em 1607-1609 e nessa altura foram feitos uns estatutos para regular a sua presença, bem como a das restantes comunidades de “infiéis”. Esse normativo impunha que aqueles que chegavam numa cáfila partiriam no dia seguinte, pernoitando em zona encerrada. Nos dias santos também ficavam confinados numa área encerrada. Os residentes pertencentes às minorias não podiam abrir as janelas à sexta-feira, quando se realizassem cerimónias religiosas ficavam recolhidos e tinham que usar chapéus ou barretes azuis. Não podiam vender nas ruas e só podiam fazer compras às segundas e quintas-feiras. Só podiam ter sinagoga com autorização do Rei e os Cristãos não podiam participar ou colaborar nas suas cerimónias, nem jogar com eles, nem entrar nas suas casas e não podiam ter livros contrários à religião Cristã, sendo revistados frequentemente. Tinham que falar português ou espanhol, e não podiam testemunhar nos tribunais, entre outras coisas. (FARINHA, 1970, pp. 78-79)
Em Tânger a permanência dos comerciantes Judeus na cidade também se torna excepcional, como aconteceu com Salomão Parente e sua família. (TAVIM, 2004, p. 157)
O Baluarte do Anjo em Mazagão
Em 1541 os Sádidas conquistam Santa Cruz do Cabo Guer, corolário do movimento de guerra às praças portuguesas e de unificação das tribos que desde os anos 20 do século XVI se vinha consolidando. A queda de Santa Cruz é o presságio de que nada seria como dantes. D. João III ordena a António Leite, capitão de Azamor que faça despejar a cidade de todos os Judeus, e que nenhum ficasse nela, e os enviasse para Arzila com todos os seus pertences, na previsão de um cerco pelo Xerife (CÉNIVAL, 1948, pp. 352-355). Tânger e Ceuta foram também o destino de Judeus de Azamor e de Safim. Os habitantes de Azamor e de Safim foram evacuados entre os dias 20 e 31 de Outubro. Alguns foram para Mazagão, mas a grande maioria seguiu para Portugal (RICARD, 1951, pp. 335-336). As evacuações foram acompanhadas de grandes destruições, que se prolongam por algum tempo, nomeadamente no património religioso que teve para tal autorização do Papa.
Portugal altera a sua política em Marrocos, iniciando nesse mesmo ano a construção de uma super-fortaleza no local do Castelo Real de S. Jorge de Mazagão, que fica terminada no ano seguinte.
Em 1542, ano de muita fome devido à seca, o Rei D. João III ordena a expulsão dos Judeus de Arzila, pelo facto de os habitantes da cidade se terem endividado a eles e não conseguirem pagar os empréstimos. Numa carta datada de 29 de Janeiro desse ano, D. Manuel Mascarenhas pede ao Rei que cumpra o prometido aos Judeus de lhes dar dois anos caso tivessem ordem de expulsão, já que está convencido que durante as colheitas seguintes os moradores poderão pagar o que devem (RICARD, 1951, p. 19). Esta ordem provoca o pânico na comunidade Judia e corre o boato que os portugueses pretendem evacuar a cidade e também Tânger e Alcácer Ceguer, como fizeram com Safim e Azamor. Jacob Rute confirma esta notícia e transmite-a ao Rei de Fez, que a acolhe com desagrado, tal como sucedera aquando da evacuação de Safim e Azamor, já que caíram em poder do Xerife (RICARD, 1951, pp. 25-29). Bastião Vargas viria a censurar o Rei de Portugal por ter expulso a família Rute de Arzila, já que o Jacob Rute perdeu a confiança nos portugueses e perdeu-se um aliado muito útil na cidade e na sua intermediação com o Rei de Fez. (RICARD, 1951, pp. 57-58)
Rua na Medina de Safim
A situação que envolveu os irmãos Rute tem um destaque especial nos documentos existentes na Torre do Tombo e merece ser relatado, como exemplo de uma intervenção do Santo Ofício nas praças de Marrocos. Um documento publicado por Sousa Viterbo, no qual Jacob Rute é nomeado interprete de Safim, esclarece que ele era filho do Rabi-mor da cidade, Abraão Bezamerro (Abraham Benzamirrou), que, conforme já foi referido, tinha apoiado os portugueses na conquista da cidade, sendo inclusivamente recebido em Lisboa por D. Manuel I. Os Benzamerros terão sido expulsos de Espanha em 1492, situação que se depreende do facto de escreverem em castelhano ou num português com influência castelhana, tendo-se fixado inicialmente em Fez. Seriam oriundos de Granada e pertenciam aos Ouled Zamirrou de Fez. O termo Zamirrou, segundo os especialistas, deriva do Hebreu “zamar” ou “cantar”.
Em 1499 estabeleceram-se em Safim, mas sabe-se que em 1523 alguns membros da família viviam em Azamor. Não se sabe em que ano é que os seus filhos abandonaram Safim, tendo Jacob se instalado em Fez e Moisés em Arzila e também não é claro porque razão os dois não utilizavam o nome de família Benzamerro, mas sim Rute.
No seguimento da já referida expulsão dos Judeus de Arzila em 1542, em desconformidade com o disposto no acordo estabelecido no tempo de D. Manuel, os Judeus abandonaram as praças, apesar de no Tratado de Paz de 1438 estabelecido entre D. João III e o Rei de Fez, poderem permanecer nos domínios Portugueses por determinado tempo. O Rei Mulai Ahmed pediu ao feitor e emissário da Coroa Portuguesa em Fez, Bastião de Vargas, que se deslocasse a Arzila e falasse com um tal Frei Estêvão, padre Capucho que andava a atemorizar os Judeus, para lhe pedir explicações sobre o que se passava. O tal Frei Estêvão disse a Vargas que Moisés Rute tinha maltratado um religioso seu e que queria falar com ele.
A baía de Tânger
Confrontado com a situação, Moisés Rute partiu de Fez e dirigiu-se a Tânger, para onde o tal Estêvão foi para o encontrar e conseguiu uma ordem emitida pelo inquisidor João de Melo, reputada figura sinistra do Santo Ofício, que o encarcerou. O rei de Fez acusou Vargas de traição e escreveu aos capitães de Arzila e Fez, exigindo a sua libertação. O próprio filho do Rei de Fez exigiu uma ruptura diplomática e política com Portugal por quebra do tratado de 1538, situação que Jacob Rute tentava evitar para conseguir salvar o irmão, que, entretanto, foi transferido para a prisão de Arzila. Vargas temia também pela integridade dos Cristãos residentes em Fez e defendia a libertação imediata de Moisés Rute.
A verdade do “caso Rute”, não seria tanto a acusação de “crime religioso” praticado na praça de Arzila, mas parece ter tido origem numa ordem emanada pelo Santo Ofício em Lisboa, devido a factos conhecidos relativos a actividades de Moisés no auxílio à fuga de Cristãos-Novos e desvio de armas para o Norte de África. Jacob Rute teria ajudado um Cristão-Novo chamado Rui Mascarenhas a fugir para Marrocos e voltar ao Judaísmo, dando-lhe 100 cruzados para a viagem e recolhendo mais 200 pelos Judeus de Fez para o apoiar à chegada. Um outro Cristão-Novo de Lisboa, artilheiro de profissão fugiu com a sua ajuda e passou a integrar o exército do Rei de Fez. O mesmo sucedeu com outros dois jovens conversos. Rute teria também enviado um navio carregado de armas saído de um porto Espanhol com destino a Tlemcen. O rol de acusações não se ficava por aqui, já que Moisés Rute era também acusado de maltratar Cristãos em Fez e de especular com Bastião Vargas nas transacções de trigo vendido a Portugal.
Moral da história: segundo se apurou posteriormente, as acusações de especulação na venda do trigo eram o cerne da questão e teriam sido instigadas por dois comerciantes espanhóis que pretendiam eliminar os Rute e, por arrastamento, Bastião Vargas, para ficarem senhores dos seus negócios junto do Rei Mulai Ahmed. A libertação de Moisés Rute nunca ficou registada, mas sabemos que Bastião Vargas foi ilibado de todas as acusações de especulação e que Jacob Rute continuou a comerciar trigo nos anos de 1543, 1544 e 1545. O Rei de Fez, cada vez mais isolado no controlo do território de Marrocos pelos avanços do Xerife, alia-se aos Morabitos e quebra o tratado com Portugal. (RICARD, 1951, pp. 106-112)
Gravura de Tânger no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
Em 1549 a Dinastia Sádida conquista Fez e unifica Marrocos. Portugal evacua nesse mesmo ano Alcácer Ceguer, no dia 16 de Junho, e Arzila no dia 24 de Agosto (RICARD, 1951, pp. 338-342). D. João III propõe aos moradores instalarem-se em Tânger, mas a decisão final é rumarem ao Algarve, sendo os militares e os religiosos instalados em Tânger (RICARD, 1951, pp. 350-352). Restavam Ceuta e Tânger no Norte e a nova Cidadela de Mazagão no Sul.
A nova situação política altera toda a correlação de forças e o próprio relacionamento das Praças com as comunidades envolventes, aumentando a pressão sobre elas e intensificando-se o bloqueio terrestre. A situação política em Portugal também endurece para as minorias, devido à Reforma Católica.
As cáfilas de Judeus que comerciavam regularmente com Ceuta, Tânger e Mazagão, foram reduzidas a uma expressão mínima, o que provocou também um abandono de parte das comunidades judias que nelas viviam.
Nos finais do século XVI e inícios do século XVII regista-se um afluxo de Judeus marroquinos a Portugal com o objectivo de se converterem. A vinda processou-se em duas vagas. Uma após a batalha de Alcácer-Quibir, beneficiando do processo de resgate de cativos e de cobrança das suas dívidas, a segunda após a morte de Ahmed al-Mansur, período em que o país mergulha numa guerra civil de 50 anos, acompanhada de epidemias e fomes (TAVIM, 2013, pp. 68-69).
Placa toponímica num Mellah de Marrocos
Muitos apresentavam-se nas praças de Marrocos e, conforme já referido, chegados a Portugal eram presentes no Santo Ofício, que os encaminhava para o Real Colégio dos Catecúmenos de Lisboa, instituição criada para doutrinação de “infiéis” e sua integração no universo Cristão. José Alberto Tavim refere que esta chegada de Judeus à Península poderia ser também uma reacção à sua assimilação à cultura árabe e “uma idealização do passado ‘original’ na Península Ibérica”. Mas o processo era difícil, já que a maioria não falava português e o entendimento e sobretudo interiorização da religião Cristã não eram evidentes. A desilusão após a conversão era frequente e os “desvios” da fé de muitos deles levou-os ao julgamento pela Inquisição. (TAVIM, 2013, p. 70)
O Real Colégio dos Catecúmenos de Lisboa era também o destino de muitos Mouros, o mais notável dos quais foi Mohamed ech-Cheikh, filho do rei destronado Mohamed el-Moutawakil, o “esfolado”, aliado de D. Sebastião na Batalha de Alcácer-Quibir. “Acabaria por se converter ao Cristianismo, perante Filipe II de Espanha, no Escorial, em 1593, passando a designar‑se ‘D. Felipe de África, Príncipe de Fez y Marruecos”. (TAVIM, 2013, p. 78)
Este período é também marcado pela vinda de muitos renegados portugueses, a maioria cativos da batalha de Alcácer-Quibir convertidos ao Islão, que serviam Ahmed al-Mansur e por esse facto tinham a sua segurança em risco. De entre estes salientam-se Gaspar Ramos, Simão Mendes, Luís Barreto e Sebastião Pais da Veiga, que ocupavam cargos de grande relevo na hierarquia do Estado Marroquino, o que ilustra bem a importância que os renegados portugueses tiveram nas cortes de Ahmed al-Mansur e Mulai Xeque al-Mamoun. Luís Barreto, conhecido pelo “Monge” dirigia a Casa Real, era responsável pela armadura do Rei, assegurava que a comida do soberano não estava envenenada e assistia-o nas orações do deitar e do despertar. Já Sebastião Pais da Veiga era Tesoureiro-mor do Reino de Fez, gestor das finanças e dos exércitos. Tinha várias casas, um palácio, dirigia negócios e tinha riquezas de valor incalculável, escravos e um harém digno das Mil e Uma Noires, com 84 com mulheres de todas as idades e origens. (PAULA, 2019, pp. 148-150)
A Porta da Vila da Cidadela de Mazagão
As três praças portuguesas do pós-1550, Ceuta, Tânger e Mazagão tiveram sortes diferentes. Ceuta nunca aclamou a Rei de Portugal após a batalha de Alcácer Quibir de 1578 e seria definitivamente reconhecida como possessão Espanhola pelo Tratado de Lisboa de 1668. Tânger seria entregue aos Ingleses em 1662, juntamente com Bombaim, como dote do casamento de D. Catarina com Carlos II. Mazagão seria evacuada em 1769 sob forte pressão do cerco imposto pelo Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah, sendo os seus habitantes transferidos para a Amazónia, onde fundaram Nova Mazagão.
Mazagão ficaria abandonada durante 50 anos devido às destruições causadas pelos Portugueses, tomando o nome de “El Mahdouma”, a “destruída”, e também porque os Muçulmanos se recusavam a habitar na cidade anteriormente ocupada por Cristãos, até que, em 1821, no seguimento da sua reconstrução por Sidi Mohamed Ben Ettayeb, a Cidadela é ocupada por Judeus vindos de Azamor, passando a denominar-se “mellah”, como aliás hoje é conhecida em El Jadida.
Os Judeus desempenharam nas praças de Marrocos um papel fundamental para a sua sobrevivência económica, para a existência de um relacionamento oficial entre as autoridades de Portugal e de Marrocos e para uma concertação entre as várias comunidades que se entrecruzaram no espaço geográfico das duas margens do Mar dos Algarves.
José Alberto Tavim refere que “vogando entre os espaços cristão e muçulmano, os judeus foram um dos grandes vectores da sobrevivência das praças portuguesas do Norte de África e, por vezes, da convivência entre cristãos e muçulmanos. Ocuparam aí o ‘espaço de charneira’, que tão bem tinham preenchido na ‘Espanha das Três Religiões’.” (TAVIM, 2004, p. 157)
Mais um extensíssimo capítulo da nossa «desconhecida» história comum. Sendo vagamente descendente de safarditas (pela via do meu avô materno, refugiado alemão em Portugal, que escapou ao nazismo muito a contragosto…), sempre me fascinou o papel dos judeus na formação deste país — especialmente porque (por razões políticas, ideológicas, religiosas…) todos os países europeus tiveram sempre presente uma certa dose de anti-semitismo que procurou «apagar» os vestígios de qualquer influência e/ou ajuda «semita» (seja esta judaica, seja esta muçulmana…) que tenhamos tido no passado…
Que o papel dos matemáticos e astrónomos judeus e muçulmanos foi crucial aos Descobrimentos, já começa, aos poucos, ser do conhecimento geral (mas nos meus tempos ainda se falava em «cientistas de todo o mundo» que trabalhavam em Portugal — não se dizia explicitamente que eram, na sua essência, judeus e muçulmanos, de muitas origens diferentes…). Que ambos fizeram já parte da campanha diplomática e militar levada a cabo em Marrocos era totalmente desconhecido para mim. Surpreendente? Não — pois sempre me interroguei sobre a forma como é que os portugueses exerciam essa influência diplomática, se tecnicamente eram inimigos declarados do Islão, sendo que todo o incentivo para os Descobrimentos foi tentar «furar» a rede de transacções económicas nas mãos dos árabes, berberes e otomanos, e estabelecer a «nossa» rede própria. Deveria ser óbvio que isso seria tarefa impossível sem ter «bons amigos» no terreno, que conhecessem bem a cultura europeia e a avançada civilização muçulmana, e que conseguissem servir de intermediários da mais absoluta confiança e lealdade.
O seu texto é exímio em explicar tudo isto, em especial o complexíssimo sistema de classes sociais, ou castas, com vários tipos de indivíduos, classificados de acordo com a sua religião anterior, a sua religião presente, a sua afiliação, o espaço físico onde viviam, e até a distância da capital (quanto mais longe de Lisboa, mais direitos e liberdades eram cedidos aos não-cristãos que habitavam cidades nas mãos dos portugueses — apenas «para inglês ver», não fosse algum «estrangeiro» de visita a Ceuta ou Tânger queixar-se ao Papa de que os portugueses não se estavam a portar como «bons cristãos» e a esmagar o Infiel como aparentemente diziam…). Incrível e fascinante ao mesmo tempo, vivia-se numa sociedade multi-étnica e multi-cultural, de três religiões tecnicamente a competir entre si pelos mesmos recursos (terras, cidades, fortalezas, bens e produtos…), e era preciso conseguir manter uma paz relativa apesar de tudo apontar para isso ser impossível…
Bem haja!
Caro Luís Miguel Sequeira
Estas descobertas do nosso passado são sobretudo um factor de enriquecimento interior e de conhecimento para mim próprio. De facto, a melhor maneira de aprender é escrevendo. O que me surpreende são as descobertas por vezes desconcertantes de uma história que não nos é contada e que tem verdades ocultas e complexidades que dificilmente nos permitem ser categóricos em muitas das “certezas” que às vezes pensamos ter.
Abraço