A French Ship and Barbary Pirates, Aert Anthonisz Anthonissen 1615, Royal Museums Greenwich
Entre os séculos XV e XVIII, o Mediterrâneo, incluindo o chamado Mar dos Algarves ou Mar das Éguas, actual Golfo de Cádis, estava pejado de corsários que faziam do tráfico de escravos o seu maior negócio. A actividade corsária envolvia meios consideráveis, em homens e navios, e garantia lucros fenomenais, pelos valores dos resgates cobrados e pelo aproveitamento da mão-de-obra escrava que assegurava.
O corso atraiu milhares de aventureiros em busca de riqueza fácil, deu origem à concentração de um enorme número de cativos de diversas nacionalidades, criou um sistema de resgates com intermediários das mais diversas proveniências e foi responsável por grandes movimentos populacionais, sobretudo populações deslocadas das áreas costeiras. Muitos europeus, cativos ou aventureiros, os chamados renegados, converteram-se ao Islão e integraram-se nas sociedades Norte-Africanas.
Entre este conjunto extremamente dispare de pessoas, que na sua maior parte se encontravam em trânsito, desenvolve-se uma linguagem mestiça, chamada Língua Franca, que permitia um entendimento entre todos, sem que fosse utilizada a língua materna de uns ou de outros.
Masmorra da Casbá de Boulaouane
Era uma língua com carácter transitório, apenas utilizada durante o período em que os indivíduos se encontravam cativos, voltando a falar a sua língua natal se fossem resgatados, ou adoptando a língua árabe se fossem convertidos. Para o carcereiro árabe não era tolerável que o seu prisioneiro falasse a sua língua de origem, que não entendia, nem tão pouco que falasse o árabe, a língua do Alcorão, na sua condição de não crente.
Mas era acima de tudo uma língua que assegurava uma distância e frieza no relacionamento entre carcereiro e prisioneiro, em momentos de grande conflito e sofrimento, que Jocelyne Dakhlia apelida de “no man’s land da comunicação” (DAKHLIA, 2008: 9) ou “no man’s langue” (DAKHLIA, 2008: 207).
Jocelyne Dakhlia é a grande referência no estudo da Língua Franca. Historiadora e antropóloga francesa, é diretora de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, e o seu trabalho no âmbito da história política e cultural do Islão nos países do Magrebe, tem um especial enfoque nas questões linguísticas. A sua obra Lingua Franca. Histoire d’une langue métisse en Méditerranée é de enorme relevância para a compreensão dos mecanismos de comunicação no Mediterrâneo entre os séculos XV e XVIII.
Linguisticamente, a Língua Franca era um pidgin, designação que tem origem inglesa, e que designa qualquer língua criada, normalmente de forma espontânea, a partir da mistura de duas ou mais línguas e que serve de meio de comunicação entre os falantes dessas línguas.
É diferente de um crioulo, língua natural estável, que se desenvolve a partir do processo de simplificação e mistura de diferentes línguas numa nova forma (muitas vezes, um pidgin), originando um idioma completo com falantes nativos. Embora o conceito seja semelhante ao de uma língua mista ou híbrida, os crioulos são caracterizados por um sistema consistente de gramática, possuem vocabulários grandes e estáveis e são adquiridos pelas crianças como sua língua nativa.
Como adiante veremos, a Língua Franca acabou por se crioulizar, pontualmente, em determinados contextos.
Mercado de escravos cristãos, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
A origem da Língua Franca está na necessidade de entendimento entre proprietários árabes/turcos e escravos europeus, criada por iniciativa dos proprietários, utilizando uma mescla simplificada das várias línguas dominantes na comunidade dos escravos.
A Língua Franca surge assim inicialmente ligada à escravatura de europeus, como um instrumento para que os carcereiros e os proprietários se fizessem entender com os seus escravos, e que era também utilizada pelos corsários nas suas incursões terrestres e abordagens de navios.
É extremamente relevante, e de certa forma paradoxal, o facto de a Língua Franca ter sido criada pelos muçulmanos, por relutância em fazerem-se entender com os cristãos em árabe, mantendo os cativos no seu universo cultural e linguístico.
“Os muçulmanos, na sua condição dominante, são eles, e não os escravos, que teriam produzido este jargão (…) Este paradoxo em que são os mestres que aprendem a língua dos seus escravos (e não os escravos que adoptam a língua dos seus mestres) faz sentido? (Sim, se existe no horizonte da captividade a probabilidade de reintegração). A língua franca seria assim a língua de situações transitórias”. (DAKHLIA, 2008: 70-71)
Jocelyne Dakhlia acrescenta dois factos relevantes na caracterização da Língua Franca:
“Falar uma mesma língua não é em caso algum falar a mesma língua, e ainda menos falar a mesma voz” (DAKHLIA, 2008: 13) e “a razão de ser da língua franca pode ser vista, aliás, como o desejo ou a necessidade de escapar a qualquer operação de tradução, a qualquer intermediação”. (DAKHLIA, 2008: 25)
Mercado de escravos cristãos em Argel, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
Laurent d’ Arvieux foi um comerciante francês, apaixonado pelo orientalismo científico e diplomata de renome. Foi Cônsul de França em cidades como Alepo, Argel ou Tripoli. O cavaleiro d’Arvieux confirma esta associação da Língua Franca aos relacionamentos entre proprietários e escravos:
“A diversidade das Nações Cristãs que esta cidade (Argel) mantém na escravidão, formou pouco a pouco uma Língua que toda a gente usa, sobretudo os Patrões, para se fazerem entender aos seus Escravos”. (ARVIEUX, 1735: 235)
Para além disso, a diversidade de cativos europeus nas prisões também facilitou a sua utilização, pois permitia um entendimento entre si, sem terem que aprender as línguas uns dos outros. Emanuel de Aranda foi um viajante, historiador e poeta nascido em Bruges e descendente de Espanhóis, que esteve cativo dois anos em Argel e que, no seu relato de captividade fornece pistas sobre a Língua Franca.
“É a língua comum entre os escravos e os Turcos, e também entre os escravos das várias nações, é uma mistura de italiano, espanhol, francês e de português; de outra forma seria impossível de comandar os seus escravos, pois na nossa prisão entre 550 escravos, falavam-se 22 línguas”. (ARANDA, 1662: 21)
Olfert Dapper, foi um físico e escritor holandês, autor de obras sobre história e Geografia, apesar de nunca ter saído da Holanda. Refere o seguinte na sua obra Description de l’Afrique:
“Os Muçulmanos e os Cristãos utilizam um certo jargão composto de Francês, Italiano & Espanhol, a que se chama língua Franca, por meio da qual se entendem facilmente as três Línguas”. (DAPPER, 1686: 175)
A utilização de um falar românico e não árabe-turco para o relacionamento com os cativos poderia explicar-se pelo “número de proprietários de escravos serem renegados”. (DAKHLIA, 2008: 36)
Desembarque e maus tratos a prisioneiros em Argel, por Jan Goeree & Casper Luyken 1706, Amsterdams Historic Museum
A chegada dos cativos às cidades era um acontecimento terrível, sendo obrigados a desfilar pelas ruas, sujeitos aos insultos e agressões da populaça. O prisioneiro inglês John Elliot refe que quando chegou com os seus companheiros a Salé foram rodeados por “várias centenas de malandros e patifes” que os empurraram com “gritos horríveis e bárbaros” e os “perseguiram como um rebanho de carneiros pelas ruas” (MILTON, 2006: 75).
Os escravos eram divididos em dois grupos. Os destinados ao trabalho e os destinados a ser resgatados. Estes últimos eram considerados um investimento para quem os comprava. Nos mercados de escravos, os prisioneiros eram examinados ao pormenor, para avaliar a sua idade e condições físicas, desde calos nas mãos, situação das articulações, dentes, órgãos sexuais, e até o corte de cabelo, indício de eventual origem nobre. Os renegados participavam nestas inspecções, para ajudar a determinar a sua nacionalidade e origem social, fundamentais para o estabelecimento do preço dos resgates. Dos que não eram resgatados, os mais afortunados eram os que acabavam como criados nas habitações particulares, normalmente bem tratados e que desenvolviam com os amos relações de amizade. (DAVIS, 2006: 114-115 e 126-127)
As mulheres jovens eram rapidamente vendidas para os haréns. Quanto aos mais pobres, acabavam invariavelmente nas masmorras, sujeitos aos maus tratos e aos trabalhos forçados, ou enviados para as galés como remadores. José Rodrigues, natural da Madeira, foi aprisionado e levado para as galés. Conta que era comum a mutilação dos remadores ao mínimo pretexto. Normalmente cortavam-lhes o nariz ou as orelhas (CIAPPARA, 2008: 25).
The Slave Market por Jean-Léon Gérôme 1886, Clark Art Institute
A Língua Franca é também chamada “pequeno mourisco, pequeno mouro, pequeno franco, mistura bárbara, língua europeia, hablar cristiano, língua de carregadores ou miscelânea de línguas”.
Era composta maioritariamente por termos latinos ou romanos (italianos, castelhanos, portugueses e franceses), em cerca de 80%, e minoritariamente por termos árabes e turcos e de algumas outras línguas, como o grego.
O seu carácter latino tornava-a mais fácil de entender pelos latinos, como aliás refere um prisioneiro inglês:
“Não sabia exprimir-me em Mourisco, ou língua frank, socorri-me de gestos”. (DAKHLIA, 2008: 215)
Tinha um vocabulário reduzido e ausência de regras gramaticais, utilizando-se os pronomes apenas na primeira pessoa do singular e os verbos no infinito. O futuro, por exemplo, obtinha-se colocando a palavra bisogno [é preciso] antes do verbo.
A sua conotação com o meio prisional está patente em muitos dos vocábulos frequentemente utilizados, como por exemplo falaca [espancamento], galima [saque], sangre [sangue], schiavo [escravo], paura [medo] e mal ventura [pouca sorte].
São inúmeros os exemplos de expressões utilizadas pelos carcereiros nos seus contactos com os cativos europeus:
“A trabajo, cornutos [ao trabalho, cabrões]”. (PELLOW, 1890: 70)
“Surfa cani, a baso canalla [levantar cães, abaixo canalhas]; Forti, forti [depressa, depressa]; Pilla esse, cani [toma isto, cão]”. (ARANDA, 1662: 20-21-22)
Ficaram também célebres outras expressões utilizadas pelos corsários nas suas abordagens, como Non paura, non paura [não medo, não medo], por forma a desencorajar os tripulantes dos navios abordados de se defenderem, já que ferimentos em alto mal eram muitas vezes fatais.
Galé barbaresca, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
Jocelyne Dakhlia considera existirem duas “modalidades” da língua franca:
A primeira é a “língua que todos – muçulmanos ou cristãos, Ingleses ou Eslavos… – seriam susceptíveis de adquirir ou conhecer, uma língua elemento de união de uma fronteira à outra de um grande Mediterrâneo. (…) A segunda modalidade da língua franca vota-a ao contrário ao insólito e a uma posição sempre exterior: é um veículo linguístico que não podemos reconhecer como língua vernacular. Nunca figura como a língua de alguém e que não pertence verdadeiramente a ninguém.” (DAKHLIA, 2008: 199-200)
A língua franca é basicamente um pidgin falado. Nos exemplos escritos, nota-se a marca da nacionalidade do autor, como por exemplo a marca do português na forma de escrever no texto do cativo João Mascarenhas, na sua obra Escravo em Argel. (DAKHLIA, 2008: 87)
João Carvalho Mascarenhas foi aprisionado por corsários turcos ao largo da Ericeira quando regressava da Índia, após fazer escala nos Açores. A batalha que travou com os turcos durou dois dias, até que a sua nau foi afundada. Foi levado para Argel e vendido como escravo, tendo permanecido nessa condição até que, após uma tentativa falhada de fuga foi enviado como remador para as galés. Cinco anos depois de ser aprisionado foi resgatado e regressou a Portugal.
No seu relato, Mascarenhas inclui algumas passagens em Língua Franca, uma delas parafraseando o Bacha de Algel e outra um Arrais de uma galé.
Dizia o Bacha:
“Ó christianos, non porá, aun que todo romper, ali resta la madre!” [Cristãos, impossível fazer, mesmo se tudo ser demolido, a mãe ficar lá!] (MASCARENHAS, [1627] 1993: 83)
A frase atribuída ao Arrais é uma discussão com um escravo francês:
“Cani Francês trillenho, ti querer levar christiano de mi para terra de Espanha per arte de diabo. Non porá, cani sense fé, agora pagar!” [Cão Francês degenerado, tu querer levar cristão de minha terra para terra de Espanha por arte do diabo. Impossível fazer, cão sem fé, agora pagar!] (MASCARENHAS, [1627] 1993: 144)
A Prisão Cara em Mequinez
As prisões, chamadas bagnos no Mediterrâneo Central e no Levante, e matamar ou masmorras, em Marrocos, são o berço da Língua franca.
“Bagnos é o termo em língua franca para designar as prisões dos cativos do corso. O termo é de explicação incerta. Uma das possíveis origens do termo seria que essas prisões eram catacumbas cobertas com abóbadas onde existia uma abertura que servia para deitar água e alimentos. Os Bagnos eram verdadeiros “laboratórios” de formação da língua franca”. (DAKHLIA, 2008: 213-214)
Outra explicação para o termo banhos, assim escrito por João de Mascarenhas (MASCARENHAS, [1627] 1993: 71), é que em Constantinopla muitos banhos públicos foram transformados em prisões para conseguir acolher o grande número de cativos que existiam na altura.
O termo matamar, que significa masmorras, tem origem na designação dos silos subterrâneos para cereais. Existiam em Marrocos diversas prisões de cativos europeus, com diferente importância ao longo do tempo. As mais conhecidas eram as Masmorras de Tetuan, a Daracana de Fez (onde esteve o Infante Santo) e as Masmorras de Salé. No reinado de Mulai Ismail, que se inicia em 1672, é construída a Habs Qara de Meknés. Existiam outras com menor importância em Marraquexe, Anafé, Mamora, Larache e Alcácer Quibir. (PAULA, 2019: 109-110)
Germain Mouette foi um escritor francês que esteve 11 anos cativo em Marrocos. Esta é a sua descrição das masmorras de Salé:
“Estas masmorras são lugares subterrâneos escavados com forma redonda e com profundidade de quatro a cinco braças com uma boca (abertura) muito estreita que se fecha com uma grelha de ferro. Desce-se normalmente por uma escada de corda que é retirada todas as noites. As camas são estrados de canas que a humidade da terra provoca um mau cheiro e que com o calor se desfazem. Os mais felizes têm uma pele de carneiro ou de cabra que lhes serve de colchão. Deitam-se todos com a cabeça voltada para a parede da masmorra e os pés para o centro, deixando apenas espaço para colocar um balde de barro para fazer as necessidades”. Numa das masmorras de Salé “os Cristãos não podem dormir normalmente no solo porque durante alguns meses a água chega até aos joelhos. Eles fazem com cordas e grandes pregos umas camas suspensas, umas por cima das outras, e as mais baixas quase que tocam na água. Algumas vezes acontece que a que está mais acima se desprende e cai sobre os outros, e caem todos na água, onde são obrigados a passar o resto da noite.” (MOUETTE, 1683: 117-118)
O Padre Pierre Dan, um redentorista francês e cronista, descreve assim as prisões de Marraquexe:
“Nesta Cidade existem duas grandes caves, que eles chamam Matamours, em língua franca, nas quais se encarceram os Cristãos Cativos.” (DAN, 1637: 233)
Mulei Ismail parte para a guerra
As duríssimas condições de cativeiro em Marrocos alteraram-se radicalmente após a publicação do decreto de 1682 por Mulei Ismail, segundo o qual todos os prisioneiros passaram a ser propriedade do Makhzen, “não sendo mais vendidos nos mercados como escravos e não sendo mais assim designados; passam a chamar-se cativos e prisioneiros de guerra ou El-Ansara e não escravos” (MAZIANE, 2002: 5).
A publicação deste decreto teve também como consequência que o resgate dos cativos se começou a processar através de negociações Estado a Estado, incluindo trocas de prisioneiros, pagamentos e indemnizações por mercadorias aprisionadas. As ordens religiosas cristãs passaram a ser autorizadas a prestar apoio aos prisioneiros nas prisões e cada nação passou a ter o seu espaço definido, que geria à sua maneira. Para os escravos em si, esta mudança trouxe-lhes uma substancial melhoria. Em 1695 foram transferidos da Prisão Cara, para um bairro de escravos, o Canot, onde os cativos eram dispostos em vários sectores, um para cada nacionalidade. O termo Canot teria como significado pequenas casas ou celas. (MAZIANE, 2002: 5)
O Padre Nolasque Néant, redentorista francês, descreve assim o Canot:
“Durantes todas estas negociações fomos várias vezes visitar os Escravos Franceses doentes, no lugar onde os Escravos Cristãos se retiram todas as noites quando o seu trabalho acaba. Esse lugar, que eles chamam o ‘Canot’, era antigamente a Judiaria (…) Cada Nação tem o seu bairro à parte, e no meio há uma pequena Capela (…) Encontrámos aí dois Religiosos Beneditinos Portugueses, que tinham sido feitos escravos quando regressavam do Brasil, e que tinham a liberdade de dizer a Missa todos os dias, e de fazer todas as suas funções, como se estivessem no seu Convento. É preciso dizer que este Príncipe, bárbaro como é, tem esta consideração pelos Padres e os Religiosos Escravos, que deixa viver tranquilamente sem os obrigar a trabalhar, e com a autorização de usar os seus hábitos, e de exercer as funções dos seus ministérios.” (NÉANT, 1724: 98-100)
Escravos cristãos a trabalhar sob a dominação dos Barbarescos de Argel, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
A Língua Franca expande-se naturalmente para outros meios, desde logo entre os comerciantes ligados ao negócio dos escravos, muitos deles judeus e renegados cristãos.
Savary de Brèves, diplomata francês e orientalista, descreve a língua Franca, realçando a sua importância para os comerciantes de escravos:
“Tendo mencionado aqui os habitantes de Tripoli, convém saber que a língua comum da província da Síria, e ainda do Egipto, é o Arabesco, ou Mourisco, que é o mesmo, e que além daqui, os habitantes das cidades comerciais falam quase todos Italiano, mas um falar corrompido, melhor dizendo um jargão, que a prática dos comerciantes desta nação, com os Italianos e Franceses, para a necessidade do seu comércio lhes fizeram aprender: é composto de termos italianos, mas sem ligações, sem ordem, nem sintaxe, os nomes não guardam a concordância dos géneros, misturando os masculinos com os femininos, e utilizando os verbos apenas no infinito, em todos os tempos e pessoas, com os pronomes mi e ti.” (BRÈVES, 1628: 39)
Miguel de Cervantes e Saavedra, romancista e poeta castelhano, cativo em Argel durante cinco anos, também realça este caracter de generalização da Língua Franca no universo mediterrânico, na sua obra O engenhoso fidalgo dom Quixote de La Mancha:
“A primeira pessoa que encontrei foi o seu pai, que se dirigiu a mim nessa língua que é falada entre cativos e Mouros, em todas as costas da Berbéria, e mesmo em Constantinopla, que não é nem o árabe, nem o castelhano, nem a língua de nenhuma nação, mas uma mistura de todas as línguas, com a qual nos conseguimos todos entender.” (CERVANTÈS SAAVEDRA, 1863: 923)
Navios barbarescos em Argel, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
A obra de Diego Haedo, um monge espanhol cativo em Argel durante três anos, Topografia e História Geral de Argel, publicada em 1612, é a primeira conhecida que refere a Língua Franca e explica como a sua formação, com origem nos “patrões” muçulmanos, resultou num falar simples e sem regras gramaticais:
“Falam-se três línguas em Argel: o turco, que praticam os Osmanlis entre si e com os seus renegados; Mouros e também muitos cativos cristãos falam muito bem esta língua pela sua convivência com os Turcos. A segunda língua é o árabe que é geralmente utilizada por todos, não apenas pelos Mouros, mas pelos Turcos, por pouco tempo que estejam em Argel, e os Cristãos, em contacto com os indígenas, falam árabe pouco ou muito (…) A terceira língua usada em Argel é a língua franca assim chamada pelos muçulmanos não porque ao falarem-na pensem exprimir-se na língua de uma qualquer nação cristã, mas porque, por meio de um jargão utilizado entre eles, eles entendem-se com os cristãos, a língua franca sendo uma mistura de diversas palavras espanholas ou italianas na sua maioria. Algumas palavras em português também se utilizam, desde que se enviaram a Argel de Tetuan e de Fez, um grande número de pessoas desta nação feitas prisioneiras na batalha que perdeu o Rei de Portugal, D. Sebastião.” (HAEDO, 1612: 24)
É interessante verificar que o enorme número de cativos da batalha de Alcácer Quibir tenha influenciado a Língua Franca no chamado Mediterrâneo Central, pela sua exportação através de Marrocos.
“Adicionem-lhe a confusão e a mistura de todas estas palavras, a sua má pronúncia pelos muçulmanos, que não sabem conjugar os modos e os tempos dos verbos como os cristãos a quem essas palavras pertencem, esta língua franca não passa de um jargão, ou melhor uma gíria de negro chegado do seu país (…) Este falar franco, está tão generalizado, que é empregue em todos os negócios, e todas as relações entre Turcos, Mouros e Cristãos, que são numerosas; de tal modo que não é apenas o Turco, o Mouro mas mesmo as mulheres e as crianças, que falam correntemente esta linguagem e se entendem com os cristãos.” (HAEDO, 1612: 24)
Haedo adianta um detalhe que denuncia a crioulização da Língua Franca em determinados meios sociais, que é o facto de ser falada por crianças, ou seja, ser a língua materna de determinados grupos sociais. A sua generalização no meio doméstico está relacionada com o grande número de empregadas domésticas, sobretudo italianas que trabalhavam nas casas de Argel, ou com o grande número de renegados casados com autóctones Norte-Africanos, utilizando a Língua Franca como meio de comunicação.
“Os contributos contínuos de mulheres europeias no mercado matrimonial ou de concubinagem, ou do trabalho doméstico mantêm uma presença “maternal” das línguas romanas”. (DAKHLIA, 2008: 180-181)
Escravos cristãos acorrentados, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
O Padre Antoine Quartier esteve preso oito anos na Líbia. Conheceu no deserto de Mesrata um beduíno chamado Yusuf, com idade de 70 anos, descendente de mouriscos expulsos da Península, que falava Latim, Espanhol, Turco, Árabe e Língua Franca. Yusuf era viúvo e vivia numa tenda com as suas filhas, uma das quais viúva de um renegado italiano. A mais nova, chamada Alima, estava tatuada com henna e usava véu e como o pai também falava Língua Franca. (QUARTIER, 1690: 162-166)
Este taxto de Quartier demonstra a generalização da Língua Franca em meios tão afastados das zonas costeiras como era um acampamento de beduínos no deserto.
O Padre Pierre Dan também se refere às três línguas faladas nas várias cidades corsárias:
“Falam-se normalmente em Argel, Tunis, Salé e outras Cidades dos Corsários da Barbária três línguas diferentes. A primeira é o Arabesco ou Morisco que é a língua do país. A segunda é a Turca, que não tem nada de comum com a dos Árabes e Mouros; e a terceira, é a que chamam o Franco, que se usa normalmente para se fazerem entender, que é um jargão, fácil e agradável, composto de Italiano, francês e Espanhol.” (DAN, 1637: 92-93)
A Língua Franca, língua de ninguém, falada por toda a gente, associada à escravatura, aos espancamentos, aos insultos e à violação de mulheres, apesar de conotada como a língua dos marinheiros, dos escravos, das prostitutas e das tabernas do porto, ultrapassa o seu estatuto de língua de classe baixa, sendo utilizada por mercadores e diplomatas, normalmente apenas de forma falada, mas, como vimos, também em determinados extratos das sociedades Norte-Africanas, no meio familiar, entre a patroa árabe e a empregada europeia, entre o renegado europeu e a sua mulher nativa.
“É impossível colocar em evidência, com efeito, uma diferença significativa entre uma língua franca falada por representantes da “alta sociedade” e a que caracterizava os meios sociais inferiores: a taberna ou o porto, o bagno – todos locais mistos de risco. A esses dois níveis supostos extremos da escala social reinaria a mesma promiscuidade, a ausência de todo o critério de origem e de sangue. Esses dois mundos, o da corte e o do corso, comunicam; um cristão hábil ou ambicioso, se renega a sua fé, pode aceder às mais altas funções no Estado e fazer rapidamente fortuna. As próprias mulheres, partindo de nada, podem aceder a um estatuto social inesperado”. (DAKHLIA, 2008: 225)
Filippo Pananti, um italiano cativo em Argel, define a Língua Franca deste modo, sendo relevante a referência à sua utilização pelos funcionários públicos Norte-Africanos:
“Os funcionários públicos, os comerciantes, os Judeus na costa comunicam entre si por meio da língua franca, composta indistintamente de espanhol, de italiano e de um árabe corrompido; e, apesar de os verbos desta algarviada sejam empregues no infinito, e que não haja preposições, os estrangeiros e os indígenas conseguem entender-se”. (PANANTI, 1820: 233)
Recepção em Argel, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
Um aspecto surpreendente da generalização da utilização da Língua Franca é o seu uso no quadro das relações diplomáticas.
O cavaleiro d’Arvieux conta como foi recebido pelo Governador Otomano de Tunis, Hagi Mehemed:
“Recebeu-me com um cumprimento num italiano corrompido, que é chamado Língua Franca, a qual é utilizada normalmente em Tunis: Ben venuto, como estar, bono, forte, gramercy [Bem-vindo, como estar, bom, forte, muito obrigado]”. (ARVIEUX, 1735: 418)
Apesar de teoricamente ser uma língua apenas falada, surge na forma escrita em muitos documentos diplomáticos, como nesta passagem de uma carta do Pacha de Trípoli ao Cônsul da Sardenha:
“Mi conoscer ti aver bona cabesa, piro Re Sardinia mandar sempri Consul sensa rigal” [Eu conhecer tu haver boa cabeça, mas Rei Sardenha mandar sempre Cônsul sem ofertas]. (FERRARI, 1912: 149)
A utilização da Língua Franca pelo pessoal da Casa Real Otomana de Argel generaliza-se pelo facto de existirem pajens italianos e espanhóis como secretários do Dey (Governador Otomano), que o tratavam por patrone grand. (DAKHLIA, 2008: 132)
Venture de Paradis, orientalista francês e intérprete do rei no Levante, afirma que em Argel muitos renegados agas (oficiais do exército otomano) não falavam nem árabe nem turco. (VENTURE DE PARADIS, 1898: 83)
Renaudot, oficial do Cônsul de França em Argel, escreve sobre a forma como em Argel o Dey era chamado pelas várias comunidades:
“Os Turcos chamam ao dey, effendi, que significa senhor na sua língua. Os Mouros chamam-lhe baba, que significa pai em árabe, e os Europeus chamam-lhe patron-grand, que significa grande patrão em pequeno mourisco.” (RENAUDOT, 1830: 83)
A Língua Franca deu inclusivamente origem à italianização de nomes próprios de diplomatas anglófonos, como são exemplo Giacomo Chetwood, Giorgio Reynolds, Francesco Berrintone ou Tommaso Baker. (DAKHLIA, 2008: 219)
O Palácio Bahia em Marraquexe
Em Marrocos os renegados, sobretudos os portugueses e espanhóis, ocupavam cargos de relevância na administração e governação do país. A batalha de Alcácer-Quibir originou a captura e conversão de uma geração de jovens que o Sultão Almançor soube integrar na sua corte de forma habilidosa, e que, no reinado do seu filho Mulei Xeque chegariam ao topo da administração do Makhzen.
Sebastião Pais da Veiga, aliás, Soliman, chegou a Tesoureiro-mor e Vice-Rei de Fez, e Luís Barreto, aliás, Ali, dirigiu a Casa Real. (BENNASSAR, [1989] 2006: 280-281 e 478-508)
A recusa dos muçulmanos em aceitarem que os europeus se exprimissem em Árabe, está patente numa carta enviada pelo Sultão de Marrocos Sidi Mohamed ben Abdalá ao Consul da Dinamarca Georg Host, referindo-lhe que a correspondência oficial deveria ser escrita em Língua Europeia:
“Como te escrevemos em europeu para evitar qualquer erro, por que razão me escreves em árabe, língua que tu não entendes? Podes cometer erros, então porque não me escreves em europeu? Não queremos mais ler as tuas cartas em árabe, e todas as que me escreveres, escreve a partir de agora em europeu, senão nós nos recusaremos a lê-las”. (HOST, 1998:44-45)
A recusa de Sidi Mohamed, apesar de referir que é pelo facto de Host poder cometer erros, teria razões mais profundas, como não permitir que não muçulmanos utilizassem a Língua do Alcorão para assuntos de Estado. Este facto confirma-se pela carta que escreveu ao Juiz, ordenando-lhe que informasse todos os notários marroquinos que, se traduzissem as cartas de Host, mandava cortar-lhes a mão:
“Ordenamos-te que reúnas todos os notários e diz-lhes que se algum deles escrever uma carta à nossa Corte em árabe para o Consul da Dinamarca, nós mandamos-lhe cortar a mão, e se o cônsul que quiser escrever, deve fazê-lo em europeu”. (HOST, 1998: 45)
Como entender o que é esta língua europeia, quando o sultão conhecia perfeitamente as diferenças entre as várias línguas da Europa e as próprias rivalidades entre os vários países europeus?
Entrada solene do novo Pacha em Argel, por G. Broekhuizen, na obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
Termos da língua franca que surgem no quadro da administração: bachador [embaixador], scribano [escrivão], contador [contabilista].
Na redacção de tratados, originalmente escritos em Turco e em Francês, a língua franca constituía uma ferramenta de clarificação, como esclarece Christian Windler:
“Quando em 1757 Muhammad bey rcebeu cartas do rei (de França) redigidas em francês e acompanhadas de traduções turcas, leu essas traduções, mas acabou por devolver ao cônsul as versões em francês, pedindo-lhe que lhas explicasse em “pequeno mourisco” ou “pequeno mouro” para ver se ele as tinha verdadeiramente compreendido na versão turca, que ele entendia de forma imperfeita”. (WINDLER, 2002: 173)
Interessante esta descrição de um episódio conflituoso entre o Consul Inglês e o Pacha de Tripoli durante uma venda de mercadorias aprisionadas por corsários, narrado por Antoine Quartier:
“O Pacha durante a conversa apercebeu-se que o Cônsul tinha bebido licores não recomendados pelo Profeta. E vendo que os Turcos troçavam dele, disse-lhe, “Seignor Consule per que non restar à casa toya quando ti estar sacran?” [Senhor Cônsul porque não ficar em tua casa quando tu estar embriagado?]. O Cônsul que estava de mau humor, picado por estas palavras, e o vinho fazendo-lhe esquecer o seu dever, respondeu ousadamente ao Pacha, “Saper Sultan que gente comme mi bever vin, e bestie comme ti bever aqua” [Saibas Sultão que gente como eu beber vinho e bestas como tu beber água]. O Pacha em cólera por ser maltratado no seu Palácio por um Cristão sacou de imediato de uma espada para lhe trespassar o ventre; mas o golpe foi travado pelos Oficiais Renegados que testemunharam a folia do Cônsul, e o retiraram do Castelo, com medo que os Turcos se vingassem da injúria feita por um Cristão ao seu Pacha, que as preces dos Mercadores acalmaram um pouco. O resto do dia foi passado a pedir desculpas por parte do Cônsul, do qual Soliman Caya apenas obteve três mil Piastras, que o Inglês depois de curar a bebedeira pagou de bom grado, ficando feliz por resolver a questão por tão pouco”. (QUARTIER, 1690: 240)
Apenas como curiosidade, refira-se que o árabe “sacran” deu origem ao português “sicrano”.
A forte presença de italianos nas cortes Otomanas deu origem à italianização na Língua Franca de nomes próprios de diplomatas anglófonos, como Giacomo Chetwood, Giorgio Reynolds, Francesco Berrintone ou Tommaso Baker. (DAKHLIA, 2008: 219)
A Língua Franca surge escrita em peças literárias, a mais conhecida das quais é a comédia Le Bourgeois Gentilhomme de Molière, nas frases ditas pelos personagens Turcos. (MOLIÈRE, 1671: 99)
“Se ti sabir,
Ti respondir;
Se non sabir,
Tazir, tazir.
Mi star Mufti,
Ti qui star ti?
Non intendir:
Tazir, tazir.”
[Se tu saber,
Tu responder;
Se não saber,
Calar, calar.
Eu estar (ser) Mufti,
Tu quem estar (ser) tu?
Não perceber:
Calar, calar.]
A presença da Língua Franca em obras como o Bourgeois Gentilhomme, leva-a aos eventos da alta sociedade, sempre com um carácter cómico, acentuando a sua distância e marginalidade.
A Casbá Oudaia em Rabat
A Língua Franca não era monolítica, no sentido em que teria algumas variantes conforme as influências das línguas europeias dominantes em determinadas regiões. No levante do Mediterrâneo e no Mediterrâneo Central o italiano era claramente dominante, mas em Marrocos observava-se aquilo que Dakhlia chama os “iberismos marroquinos”, com influências mais acentuadas do castelhano e do português.
As fontes que referem a Língua Franca de Marrocos chamam-lhe “Langue Gémique”, termo que Henry de Castries, no capítulo Méthode de Publication das Sources Inédites de l’Histoire du Maroc, onde estabelece algumas “restituições” de palavras estrangeiras para a sua origem árabe, atribui a Gemique a origem Adjemi, com o significado de “língua estrangeira para o árabe”, que é “um espanhol ou português corrompido”. (LES SOURCES…, 1918 : XIX)
O termo vem do árabe Al ‘Ajamía, designação que é dada às línguas estrangeiras. A Aljamía era originariamente a forma escrita do falar os mouriscos e mudéjares. Falavam o português e o castelhano utilizando os caracteres do alfabeto árabe, como forma de dissimular o seu cripto-islamismo. Apesar de não ser uma língua, não era também uma simples escrita do romance com letras árabes, já que tinha um carácter de dialecto, como refere Gómez Renau:
“A linguagem da aljamia (língua romance escrita em caracteres árabes) apresenta um carácter híbrido com vocábulos arábico-hispânicos e frequentes citações corânicas. É uma língua dialectal e vulgar com constantes erros de ortografia; as construções sintáticas são toscas e as palavras e idiomas são antiquados. O romance que utilizam os mouriscos é muito arcaizante, no entanto muito valioso para testemunhar as alterações linguísticas e filológicas que se operam no Castelhano na sua evolução da Idade Média para a Moderna”. (GÓMEZ RENAU, 2000: 71)
Deste período não se conhecem textos em Português aljamiado, pelo facto de que a grande maioria dos Mouriscos das classes mais abastadas abandonou Portugal logo após a conquista cristã e os que ficaram eram sobretudo habitantes das áreas rurais, iletrados e vivendo de forma isolada, no não tendo um sentido identitário forte em relação ao Islão.
Corsários de Salé numa foto de 1944
A Aljamia, Langue Gémique ou Adjemi, era a designação do falar cristão ou “hablar cristiano”, Nazarani (Nazareno) ou Roumi (romano), que os marroquinos davam ao espanhol e ao português corrompido que usavam nas relações com os cristãos, nomeadamente com os cativos, renegados ou diplomatas.
Entre os séculos XV e XVIII a língua portuguesa “estabelece-se” em Marrocos por via dos fronteiros e habitantes portugueses das praças-fortes criadas por Portugal na costa marroquina. Os contactos com os habitantes das áreas circundantes, sobretudo com os chamados mouros de pazes, com quem vigoraram acordos e se estabeleceram relações de vassalagem com a coroa portuguesa durante longos períodos, influenciaram o modo de falar dessas populações. É sabido que alguns falavam português, como atestam as cartas escritas em português aljamiado, utilizando o alfabeto árabe, que David Lopes publicou na obra Textos em Aljamía Portuguesa. Documentos para a história do domínio português em Safim. (LOPES, 1897: obra citada)
Dois autores francófonos referem-se à “Langue Gemique”. O médico francês Jean Mocquet foi convocado pelo secretário do Rei de Marrocos para uma consulta médica, originando um diálogo em Língua Franca:
“Ele mandou vir um judeu para servir de intérprete de “Langue Gemique” (que é espanhol ou português corrompido) que eu conhecia”. (MOCQUET, 1617: 164)
O mesmo Jean Mocquet chamou “Langue Gemique” à Língua Franca quando visitou a Síria, dizendo que “é um italiano corrompido”, o que demonstra que para si as duas designavam a mesma coisa, com as devidas diferenças ao nível das influências. (MOCQUET, 1617: 380-381)
Pierre d’Avity, militar, escritor, historiador e geógrafo francês, também usa o termo “Langue Gemique” para designar a Língua Franca de Marrocos:
“Quanto às línguas que se usam nesses bairros são o Morisco, o Arabesco, e a “Langue Gemique”, à qual se chama Língua Franca (…) Usam também o Árabe, mas não tão puro como no seu verdadeiro país, já que a prática dos Mouros fez introduzir algumas palavras estrangeiras, como o Mourisco recebeu algumas palavras Árabes. Quanto à “Langue Gemique”, é um certo jargão, que eles compuseram, que é uma mistura de Espanhol, e de Português corrompido aproximado à Língua Franca dos Turcos e das suas Galés, mesclado de Espanhol, de Italiano, outras línguas da Europa.” (AVITY, 1637: 59)
As referências à Aljamia (Langue Gémique) após o século XVII desaparecem e torna-se dominante o termo “espanhol corrompido” para designar a Língua Franca marroquina, mesmo sendo claro que dela faziam parte termos portugueses, italianos e mesmo do tamazight, ou língua berbere.
Abdalá ben Aícha, embaixador de Mulei Ismail em França
Germain Mouette tem esta afirmação sobre as línguas que se falavam no país:
“Como os Reinos de Fez e de Marraquexe são os mais próximos de Espanha, os Mouros que daí fugiram trouxeram a Língua Espanhola, que aí é ainda tão comum como o Árabe.” (MOUETTE, 1683: página 2 do prefácio)
Maria Ter Meetelen foi uma holandesa que esteve cativa em Mequinez durante 12 anos, deixando um impressionante testemunho escrito desse período da sua vida. No seu texto, refere várias vezes que o relacionamento na corte do Rei fazia-se num “mau espanhol” que a maioria das pessoas falavam. (MEETELEN, [1748] 2010: 22-24)
Thomas Pellow era um jovem inglês que acompanhou o seu tio a Génova para comerciar. Pelo caminho o barco em que seguiam foi atacado por corsários, foi feito prisioneiro e levado para Mequinez, onde ficou cativo 23 anos. Converteu-se ao Islão de forma forçada, através da tortura. O sultão Mulei Ismail encontrou uma mulher para o casar. Quando Pellow acedeu a casar-se, o sultão exclamou bem-humorado: “bono! bono!” [bom, bom!]. Pellow acrescenta que na língua Espanhola “Bono! Bono!” significa “Bom! Bom!” (PELLOW, 1890: 76). Thomas Pellow falava português e espanhol, pelo que esta referência aparentemente errada em relação a um termo italiano não seria um erro por desconhecimento, mas uma constatação de que o “Espanhol falado” era de facto a Língua Franca de Marrocos.
Armas de D. Manuel no Castelo do Alto de Safim
É indubitável que a Língua franca teve uma base italiana-francesa-castelhana no Mediterrâneo Central e no Levante, mas a influência do português em Marrocos poderá ter tido uma dimensão muito mais expressiva do que se pensa, pela presença dos portugueses no país entre 1415 e 1769. (ASLANOV, 2010: 111)
Os portugueses utilizaram a Língua Franca, inclusivamente durante os Descobrimentos, como língua de contacto com os povos africanos, por ser de mais fácil compreensão, influenciando inclusivamente a formação do Crioulo. (PARKVALL, 2003: página electrónica citada)
A própria influência do Português na Darija Marroquina, Árabe dialectal falado em Marrocos, é um fenómeno não estudado de forma aprofundada, existindo uma ideia generalizada que as essas influências são sobretudo espanholas, resultando das migrações dos mouriscos nos séculos XV e XVI e espanholas e francesas do período dos Protectorados instituídos em 1912.
É certo que a entrada de mouriscos em Marrocos foi muito mais significativa por parte de populações originárias de Espanha, por várias razões, desde logo pela relação entre a população dos dois países, mas também porque muitos árabes de condições social baixa ficaram em Portugal, por apego à terra, fixando-se nas chamadas zonas “saloias” e no alentejo. Os mouriscos originários de Espanha fixaram-se nas grandes cidades chamadas “andalusas” de Marrocos (Tetuan, Chefchaouen ou Rabat-Salé) e, no caso de Rabat-Salé, tiveram uma expressão enorme, pelo acolhimento massivo de Hornacheros que aí se instalaram.
Estes factos não retiram contudo a importância que os 354 anos de presença portuguesa em Marrocos tiveram na criação de relações que influenciaram o falar das duas comunidades. Otmane Mansouri refere que “quando os portugueses abandonaram as suas fronteiras, levaram tudo com eles. No entanto existem nas línguas portuguesa e marroquina influências cruzadas” (MANSOURI, 2011: página electrónica citada).
Simon Levy, referindo-se aquilo que chama “a concorrência victoriosa do castelhano”, diz que “termos portugueses devem ter-se confundido com os seus primos castelhanos que puderam, por assim dizer, encobri-los”. (LEVY, 1997: 177)
BIBLIOGRAFIA
Depois de tanto tempo e situação pessoal tão adversa de dificuldades e saúde precária e desgostos profundos.
tenho gosto de vir cumprimentá-lo e felicitá-lo sempre ,
pela estima e muita consideração que permanecem .
Muito obrigada .
Saudações cordiais,
Isabel Maria Facão
Agradeço as suas palavras e desejo que a vida lhe sorria. Os meus cumprimentos