A Bab Es-Seba’ ou Bab Dekaken em Fez, conhecida como Porta do Príncipe Português, local onde o corpo de D. Fernando esteve exposto após a sua morte
Neste local esteve exposto o corpo de D. Fernando, o Infante Santo, após a sua morte no cativeiro em Fez, no seguimento da sua captura na batalha de Tânger de 1437. Inicialmente, durante quatro dias, foi pendurado pelos pés, nu, de cabeça para baixo. Posteriormente foi colocado dentro de um ataúde fixado à muralha através de duas vigas de madeira encastradas, “aonde esteve muito tempo, e fez nosso Senhor por ele muitos milagres.” (ALVARES, 1730, p. 303)
Os termos da rendição das forças portuguesas na praia de Tânger no ano de 1437, após 37 dias de combates pela conquista da cidade, foram estabelecidos no seguimento de negociações entre D. Henrique e Lazeraque, regente do sultão de Fez, conforme texto incluído na Crónica de El-Rei D. Duarte de Ruy de Pina:
“Que os mouros deixassem ir e embarcar livremente nos navios todos os cristãos com seus vestidos somente, e a eles ficasse o arraial com armas, cavalos e artilharias, e todas as outras coisas, e mais lhe fosse entregue a cidade de Ceuta com todos os mouros cativos que nela estivessem, e que ficassem em paz, a qual se obrigou o Infante que El-Rei desse por mar e por terra a toda a Berberia por cem anos; e para segurança dos cristãos, e que sem contradição os deixariam ir, deu Çalla Bemçalla um seu filho em poder do Infante, e pelo dito filho de Çalla Bemçalla ficaram reféns Pedro de Ataíde e João Gomes do Avelar, e Aires da Cunha, e Gomes da Cunha; e para segurança dos mouros, que Ceuta com os cativos lhe seriam entregues, se deu por refém em seu poder o Infante D. Fernando.” (PINA, [15–] 1901, p. 124-125)
Vista da medina de Fez
Após o fracasso de Tânger, D. Henrique refugia-se em Ceuta, a coberto de uma pretensa depressão, encarregando D. Fernando de Castro de assumir perante o Rei e o País a derrota da expedição a Tânger. De Ceuta escreve a D. Duarte e ao rei de Castela, narrando-lhes os acontecimentos ocorridos e defendendo que Ceuta não deveria ser trocada pela libertação de D. Fernando. D. Duarte convoca as Cortes de Leiria em 25 de Janeiro de 1438 para decidir a eventual troca de Ceuta por D. Fernando. Muitas vozes que já anteriormente se haviam manifestado contra a expedição a Tânger defenderam o abandono imediato de Ceuta e o resgate de D. Fernando, mas as Cortes terminaram sem uma decisão definitiva.
Só em Junho desse ano, oito meses após o desastre de Tânger, o infante D. Henrique voltou a Portugal e encontrou-se com D. Duarte em Portel onde o convenceu a não entregar Ceuta e tentar outras formas de libertar D. Fernando. “Resgatando-o por dinheiro, persuadindo Castela e Aragão a aderir a uma libertação massiva de prisioneiros muçulmanos, organizando outro exército para invadir Marrocos (…) Henrique propôs uma quantidade de esquemas para libertar D. Fernando, mas entregar Ceuta não foi um deles.” (RUSSEL, 2000, obra citada)
D. Fernando, foi mantido por Abu Zakaria Yahya Al-Wattasi, ou Lazeraque como lhe chamavam os portugueses, em Arzila até Maio de 1438, altura em que o regente do sultão Abdel Aláque se cansou do arrastar da situação por parte de Portugal e mandou-o para um presídio comum em Fez, onde o Infante Santo passou longos períodos acorrentado.
A Bab Dekaken
Após a morte de D. Duarte, o seu irmão Pedro é nomeado regente do reino por menoridade do herdeiro D. Afonso V. D. Pedro, que era um crítico da política expansionista em Africa, encarrega então Martim Távora e Gomes Eanes de encetar negociações com Marrocos a fim de concretizar a troca de Ceuta pela libertação de D. Fernando. Os mouros põem logo como condição que D. Fernando Noronha, conde de Vila Real e governador de Ceuta após a morte de D. Pedro de Menezes, um partidário da política de guerra do infante D. Henrique, fosse afastado do seu cargo, dado que temiam que boicotasse o processo de troca. Os termos da troca são estabelecidos _ D. Fernando de Castro assumiria o controlo de Ceuta e evacuaria a sua guarnição, enquanto D. Fernando seria transportado de novo para Arzila, onde seria embarcado para Portugal. Quando D. Fernando de Castro se dirige a Ceuta é atacado por piratas genoveses junto ao cabo de S. Vicente e é morto, tendo sempre ficado a suspeita de que Fernando de Noronha estaria por detrás do ataque.
Os acontecimentos seguintes mostram o clima de desconfiança que se instala e que inviabiliza a troca de Ceuta pela libertação de D. Fernando. Lazeraque recusa-se a libertar D. Fernando enquanto Ceuta não fosse entregue, os portugueses recusam-se a entregar Ceuta enquanto D. Fernando não fosse libertado. Do lado mouro, insistia-se que os portugueses ainda não tinham sequer cumprido a sua parte do acordo de rendição de Tânger, já que os soldados tinham sido resgatados em segurança, mas nunca libertaram o filho de Salah ben Salah…do lado português insistia-se que, da mesma forma, João Gomes de Avelar, Pedro de Ataíde e Aires da Cunha continuavam cativos em Arzila. O mouro Lazeraque ainda se dirigiu a Ceuta com um exército para tentar tomar posse da cidade, mas acabou por desistir e regressou a Fez.
No seguimento destes acontecimentos ficou claro para Lazeraque que os portugueses não tinham intenção de entregar Ceuta e as condições do cativeiro de D. Fernando pioraram substancialmente. O Infante esteve detido um total de 11 anos, 10 dos quais passados nas masmorras de Fez, a maior parte do tempo acorrentado e sujeito a humilhações, maus tratos e obrigado a trabalhos forçados.
Exterior da Makina de Fez
Segundo Georges-Michel, citando um artigo de Maurice Desmazières escrito na década de 30, Lazeraque foi acometido de grande fúria quando percebeu que D. Fernando não seria trocado por Ceuta e passou a trata-lo como um prisioneiro comum, negando-lhe inclusivamente um lugar junto dos seus companheiros nos calabouços da Daracana, actual Makina, esperando que esta situação pressionasse Portugal a negociar.
“Mandou construir de propósito, para o seu prisioneiro, uma estreita célula de tábuas mal juntas, no cimo das muralhas de Fez-Jedid, do lado onde a muralha da Nova Fez olha para a Fez Antiga, segundo a descrição de Diego de Torres, “rescatator” espanhol, ou alfaqueque, que pernoitou em Fez nos meados do século XVI (…) Este caixote muito estreito com apenas um metro quadrado não protegia o prisioneiro nem do calor, nem do frio, nem da chuva, e o infortunado cativo via-se privado do conforto e do consolo que a presença dos seus companheiros lhe teriam dado”. (GEORGES-MICHEL, 2015, página electrónica citada)
Mas Portugal não cedia e D. Fernando viu-se remetido à condição de escravo. Os escravos eram tratados de forma dura, trabalhando nos fornos de cal e nas fabricas de tijolo de Bab Guissa, cortando madeira ou fazendo trabalhos na forja, mal alimentados e ao som do chicote dos renegados europeus, dos andalusinos e granadinos. O Infante foi colocado nos estábulos reais como um dos tratadores dos 1.500 cavalos do Sultão.
O bairro de Bab Guissa em Fez
O Infante Santo viria a falecer no dia 5 de Junho de 1443 e Ceuta continuaria em mãos portuguesas. Após a sua morte, o corpo de D. Fernando é exposto nas muralhas de Fez, na Bab Es-Seba’, ou Porta do Leão, porta do Dar Al-Makhzen ou Palácio Real, também chamada Bab Dekaken e conhecida como Porta do Príncipe Português. Inicialmente o cadáver foi pendurado pelos pés nas ameias da muralha, após lhe terem retirado as entranhas, enchido o seu ventre com louro e sal e sido perfumado com âmbar e musco, já que havia a intenção de vender o corpo posteriormente. As entranhas foram guardadas secretamente pelos seus companheiros numa pequena caixa, como relíquias. Durante quatro dias esteve exposto aos insultos e risadas da populaça.
Nesses dias aconteceu um milagre que Diego Torres confirmou nos seus registos:
Um muçulmano cego pediu a um jovem que o levasse a Bab Es-Seba’ para ver o Ould Sultan Nazerani ou Filho do Rei Cristão, ao que o jovem o conduziu ao local. Quando aí chegou, “o cego levantou os olhos, e no mesmo instante (…) algumas gotas dos pés do infante lhe caíram nos olhos, e ao esfregá-las com as mãos recuperou a visão, tendo começado a louvar a Deus, e a dizer bem alto, que acreditava naquilo que aquele Cristão tinha acreditado, e que por isso morrera”. (TORRÉS, 1630, p. 342-343)
O homem foi então levado à presença de Lazeraque, que o condenou à morte. No caminho para a sua execução, o povo insultava-o, chamando-lhe Sidi Kafir, ou Santo Infiel. O seu corpo foi depositado “numa sepultura muito honrada (…) numa pequena ermida de telhas brancas e azuis”, junto a Fez Jedid, que tomou o nome de Morabito de Sidi Kafir. Conta-se que durante a noite o seu túmulo emanava luz divina. No século XVI, tanto cristãos como muçulmanos ainda faziam romarias ao Morabito do Senhor Infiel. (TORRÉS, 1630, p. 343)
A Bab Es Seba’ e a antiga prisão da Daracana
Ao fim de quatro dias o corpo de D. Fernando foi levado para o Mellah, a Judiaria de Fez, onde foi colocado num ataúde ou caixão, por sua vez pendurado de novo na muralha, e sobre o qual foi colocada a inscrição Ould Sultan Nazerani ou Filho do Rei Cristão.
Sobre a exposição do seu corpo escreveu Frei João:
“Quando meteram no ataúde o corpo deste virtuoso Senhor, que havia cinco dias que tinha finado, estavam seus membros em tanta desenvoltura como se estivesse vivo, nem saía dele algum cheiro mau. E assim lhe cruzaram os braços, e o lançaram sobre uma cama de louro verde, que lhe dentro no ataúde foi posto em seu lugar, foi coisa certa, e de maravilhar, que a maior parte das aves, que de toda aquela terra ao redor vinham ali dormir, porque as ameias, e todo o muro estava cheio de esterco delas logo se dali afastaram e nunca mais pousaram naquele lugar, nem fizeram alguma imundice na parte que respeitava ao ataúde, uma braça de uma parte, e da outra; no que todos atentavam, e se maravilhavam muito, parecendo-lhes que as aves tinham reverência àquele corpo santo. Os vigias e roldas da vila, cada semana em certos dias, viam ao redor daquele ataúde tanto lume e claridade que não podiam ter os olhos em direito daquele lugar, em tanto que não podiam divisar de que era aquele lume.” (ALVARES, 1730, p. 312-314)
As cinzas de D. Fernando seriam entregues a Portugal em Arzila, no reinado de D. Afonso V. Hoje encontram-se no Mosteiro da Batalha.
Desenho do ataúde de D. Fernando na Bab Es-Seba’ de Fez, retirado do livro de Goulven por Georges-Michel (nota: o desenho não corresponde à descrição de Frei João Álvares de que o ataúde teria sido suspenso na muralha através de duas vigas de madeira encastradas)
A descrição do cativeiro e morte de D. Fernando na Crónica do Infante Santo D. Fernando escrita por Frei João Alvares, seu secretário, que com ele esteve na prisão em Fez, encerra um grande dramatismo e simultaneamente tende a criar uma imagem de homem santo, envolto em milagres, por vezes com paralelismos com a própria vida de Cristo. Frei João Álvares seria resgatado em 1448, cinco anos depois da morte de D. Fernando e em 1450 voltou a Marrocos para buscar relíquias do príncipe, que começava a ser cultuado como o Infante Santo.
A crónica foi escrita por encomenda do infante D. Henrique, novo protector de Frei João Álvares após o seu resgate e é um documento que exalta as qualidades morais e as virtudes de D. Fernando, realçando as suas motivações religiosas, a sua piedade, a sua forma simples de vestir, a sua resignação em relação ao sofrimento.
“Ao transformar o cativeiro em martírio resgata-se a santidade dos primeiros heróis do cristianismo, chamados os santos mártires. Neste contexto, ao sacrificar-se pela nação e pela evangelização dos infiéis, a prisão do Infante D. Fernando e sua consequente morte em Marrocos assume um viés de sacralidade. (…) O culto ao Infante Santo será edificado no sentido de legitimação da expansão portuguesa, fazendo parte do projecto político da Casa de Avis.” (NASCIMENTO, 2011, p. 6)
A Bab Dekaken, vista do interior da muralha de Fès Jedid
A derrota de D. Pedro na batalha de Alfarrobeira e a subida ao poder do seu sobrinho D. Afonso V, com a conivência de D. Henrique, coloca na regência do reino a política expansionista e belicista em Africa e representa a vitória das “casas senhoriais habituadas à luta armada e interessadas na anexação de territórios como forma de enriquecimento”. (RUSSEL, 2000, obra citada)
“Este episódio “sangrento” da história pátria — ocorrido a 20 de Maio de 1449 — põe termo à luta fratricida que coloca frente a frente os exércitos do rei D. Afonso V, servidos por uma nobreza hostil ao duque de Coimbra, e as forças do infante D. Pedro. A sua morte, contrário à prepotência das casas senhoriais e precursor da modernidade em Portugal, deu lugar ao engrandecimento e poder da nobreza, só vencida algumas décadas mais tarde com a chegada ao poder de D. João II.” (RUSSEL, 2000, obra citada)
Os acontecimentos de Tânger e os que se lhe seguiram mancharam na época a reputação de D. Henrique, que utilizou a elevação de D. Fernando a mártir nacional e a sua beatificação para desviar as atenções, afastar as culpas que pairavam sobre si e voltar a ganhar o estatuto de defensor do interesse nacional.
Maria de Lurdes Rosa refere que “os “usos de santidade” no contexto da guerra norte-africana constituem um objecto de estudo de grande interesse (…) pelo que revelam de «projecto», pela forma como este se vai adequando às realidades – ajudando a transformar derrotas em vitórias, seguindo a linha sacrificial do Cristianismo”. (ROSA, 2006, p. 2)
A Bab Es-Seba’ na actualidade
“Na época, porém, Henrique não se saiu com essa facilidade. Nas Cortes de Leiria foi culpabilizado pelo desastre de Tânger e pelas esperanças que deu a D. Fernando em relação ao seu resgate. A oposição de Henrique ao cumprimento do tratado era também bem conhecida. O papel dúbio de Henrique na crise da regência de 1438 e na batalha de Alfarrobeira em 1439 fomentou na época em Portugal um sentimento popular significativo, segundo o qual Henrique era uma espécie de traidor da dinastia. Tinha atraiçoado os seus irmãos por interesses pessoais, sendo Tânger e os acontecimentos subsequentes exemplos disso. Os painéis de S. Vicente, pintados por Nuno Gonçalves nesta época, são referidos por alguns historiadores como representando esta visão política, uma homenagem funerária a Fernando O Santo, apontando um dedo acusador a Henrique O Navegador.” (RUSSEL, 2000, obra citada)
Alguem me sabe dizer qual é o valor simbolico/Simbologia de D.Fernando, Infante de Portugal?
Seria interessante relacionar a morte em cativeiro do Infante D. Fernando com a iconografia do Políptico de S. Vicente de Fora.
Cf. http://www.paineisnunogoncalves.org/
J. Goulven já o fazia em 1933.
Sem dúvida. No entanto, parece-me que um trabalho sobre a iconografia do Infante Santo não se reduz aos painéis de S. Vicente. Existem outras imagens que não podem deixar de ser referidas, como as “Actas Sanctorum” de 1695 ou o Tríptico do Infante Santo existente no Museu Nacional de Arte Antiga. Agradeço a sugestão, que poderá vir a enriquecer este artigo. É a vantagem dos trabalhos não impressos, que podem ser actualizados e melhorados. Mais uma vez obrigado
Caro Frederico Mendes Paula, permita-me alguns comentários:
Contra a identificação do Infante Santo nos Painéis tem sido argumentada a discordância entre o rosto seráfico da sua figura resplandecente naquela pintura e o rosto com barbas do homem agrilhoado que se tornou a norma iconográfica posterior para aquele príncipe de Avis.
É verosímil que o testemunho de Frei João Álvares possa ter contribuído para estabelecer uma iconografia do Infante Santo representado como um cativo agrilhoado e barbado. É conhecida a importância do antigo secretário, companheiro e cronista do cativeiro marroquino na tentativa de difundir o culto do infante D. Fernando durante a segunda metade do século XV.
Assim, numa imagem que consta no folio C do códice do Vaticano intitulado Martyrium et Gesta Infantis Domini Fernandi (Cod. Vat. Lat. 3634), códice datável do terceiro quartel do século XV, aquele príncipe é representado com longas barbas e grilhetas.
No tríptico que se pensa ter sido destinado à sua capela mortuária no Mosteiro da Batalha, a representação de D. Fernando é semelhante à do códice do Vaticano. Aquela pintura tem sido datada do terceiro quartel da centúria de Quatrocentos.
Se Nuno Gonçalves quis representar D. Fernando transfigurado e em glória, já o seu modesto colega de ofício preferiu acentuar na Batalha os padecimentos terrenos do cativo de Fez. Não teria sentido comparar duas pinturas de valor tão desigual, se não fosse para reconhecer que, de facto, a tradição iconográfica do tríptico da Batalha se impôs posteriormente.
Com efeito, também segue a iconografia daquele tríptico a figura do Infante Santo que está à esquerda no portal ocidental do Mosteiro dos Jerónimos. Altamente significativo é o facto de que a referida imagem faz contraponto a S. Vicente, este último representado em posição simétrica, à direita no mesmo portal, com o seu habitual atributo da nau.
Apesar de onze séculos separarem o martírio de S. Vicente, em Saragoça, da morte do infante D. Fernando, em Fez, a chegada das relíquias de cada um deles a Lisboa, após terem estado retidas em terra de mouros refira-se que o Algarve era uma província mourisca no tempo de D. Afonso Henriques constituíra o desígnio dos habitantes da Lisboa do século XII e XV, respetivamente. Assim, é natural que os portugueses de Quatrocentos e de Quinhentos estabelecessem um paralelo entre os cultos de S. Vicente e do Infante Santo.
Para além de tal poder justificar as duas figurações simétricas no portal poente dos Jerónimos, esse paralelismo poderia ter já levado Nuno Gonçalves a pintar o mártir S. Vicente no retábulo da Sé Catedral de Lisboa, circa 1470 [Martírios de S. Vicente, MNAA], com traços que inegavelmente recordam o rosto do infante D. Fernando figurado no políptico destinado à Câmara de Lisboa, em 1445 [Painéis de S. Vicente de Fora, MNAA]. Apesar do oval do rosto e das sobrancelhas da figura aureolada dos Painéis de S. Vicente de Fora não coincidirem com os de S. Vicente nos Martírios, a semelhança das fisionomias é visível. Na verdade, não constituiu caso único em pintura antiga representar figuras canonizadas com os traços de elementos de famílias reais europeias.
Já do século XVII, a gravura que representa a paixão do Infante Santo, constante do primeiro volume do Acta Sanctorum, publicado pelo jesuíta Papebroeck, segue ainda a iconografia do tríptico da Batalha.
O reconhecimento de que a iconografia do Infante Santo se afastou posteriormente da figura aureolada do Políptico de Nuno Gonçalves não constitui qualquer óbice à interpretação fernandina desta pintura. A melhor prova de que a iconografia de um príncipe de Avis poderia já não ser uniforme algumas décadas após a sua morte é dada pela estátua do portal sul do Mosteiro dos Jerónimos (circa 1520), que representa o infante D. Henrique com longas barbas – uma efígie bem distinta da do homem de chapeirão no Painel do Infante. Até à divulgação do Códice de Zurara pertencente à Biblioteca Nacional de Paris, cerca de 1840, era aquela a norma portuguesa e europeia para representar Henrique, o Navegador.
Regressando ao período imediato à morte de D. Fernando, considere-se o seguinte argumento, simultaneamente de ordem estética e emocional. Em todos os tempos e em todas as civilizações houve a preocupação de preparar condignamente o corpo para a sepultura, lavando-o, purificando-o, incensando-o e cobrindo-o com as melhores vestes. Certamente, o infante mártir não seria inumado como um andrajoso barbado. As seguintes linhas de Rui de Pina são elucidativas quanto à inaceitabilidade de tal prática:
[…] poucas óras ante de seu fallecimento [D. João I, em 1433], sendo jaa em podêr de Religiosos e outros Ministros de sua concientia, poendo por caso suas maaõs em sua barba Real, por que a achou alguu tanto crecida, a mandou logo fazer, dizendo, que nom convinha a Rey, que muitos aviam de vêr, ficar despois de morto espantoso e disforme.
Assim, não resulta surpreendente que D. Fernando seja representado nos Painéis de forma condigna, como convinha a um príncipe de Avis prestes a ser inumado pelos seus familiares.
Cordialmente,
Jorge Filipe de Almeida
Caro Jorge Filipe de Almeida
Lendo o seu interessantíssimo comentário vejo que pouco ou nada sei sobre este assunto e prometo que aproveitarei as referências que faz para aprender algo que, conforme lhe disse na minha primeira resposta, possa contribuir para enriquecer o meu artigo.
Mais uma vez obrigado e até sempre
Cumprimentos
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