Contrariamente ao que muita gente pensa, em Essaouira não existem vestígios da curta permanência portuguesa no local, que não ultrapassou os quatro anos. Poderão eventualmente restar algumas pedras do antigo Castelo Real de Mogador, reutilizadas na construção do Borj El Barmil, mas todos os elementos de arquitectura militar e civil existentes, tanto na cidade, como nas ilhas situadas ao seu redor, são originários do século XVIII, em obras promovidas pelo Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah e construídas na quase totalidade por renegados europeus.
Existem sim, vestígios de edifícios de ocupação portuguesa, cuja construção foi promovida ou custeada por portugueses durante o mesmo século XVIII, concretamente uma Igreja e um imóvel onde esteve instalado o Consulado de Portugal. Aparentemente, ambos os edifícios nada têm a ver com as características da arquitectura portuguesa, mas apresentam aspectos interessantes que vale a pena mencionar, e que um estudo mais aprofundado pode revelar aspectos até hoje desconhecidos.
Essaouira vista da Skala do Porto
No ano de 1748 é nomeado Califa de Marraquexe Sidi Mohamed Ben Abdellah e em 1757, por morte do seu pai, assume o cargo de Sultão de Marrocos. Sidi Mohamed ficaria na história como o monarca que implementou uma política de abertura ao exterior, desenvolvendo laços de amizade com as nações do Ocidente e Oriente. Esta política materializou-se também numa abertura económica, promovendo a fixação de comunidades de comerciantes estrangeiros em Marrocos e de criação de importantes infraestruturas portuárias que as suportassem. O facto de o terramoto de 1755 ter ocorrido 2 anos antes da sua tomada do poder deixou-lhe a tarefa de reconstrução das principais cidades costeiras, grandemente afectadas pelo tsunami que lhe esteve associado.
Mogador foi uma cidade especialmente intervencionada pelo Sultão, já que constituía o porto natural de Marraquexe, local de exportação das mercadorias que as caravanas traziam a essa cidade.
O plano de Théodore Cornut de 1767. Bibliothèque Nationale de France
Para a reconstrução de Mogador, Sidi Mohamed socorre-se de um renegado francês convertido ao Islão, de nome Théodore Cornut, um arquitecto militar anteriormente ao serviço do rei de França, que vivia em Gibraltar, que se inspira no modelo de Saint-Malo para projectar a então designada Essaouira, a bem concebida ou bem desenhada. O projecto de Cornut data de 1769 e não só constou da construção das muralhas da cidade, com destaque para a impressionante Skala da Casbah, que a defende do lado Norte, como da própria estruturação do tecido urbano, símbolo da modernidade da época, com o seu traçado ortogonal, racional e muito ao gosto do urbanismo europeu.
As fortificações do porto, não incluídas no projecto de Cornut, contaram com a colaboração de outros arquitectos militares, sobretudo genoveses, que trabalharam na Skala do Porto, com as suas duas torres e o já referido Borj El Barmil, e do renegado inglês Ahmed El Inglizi, autor da Bab El Marsa ou Porta do Porto e fortificações anexas.
Uma Skala é por definição um conjunto de plataformas concebidas para o uso da artilharia de defesa costeira.
A Skala da Casbah e ao fundo a Skala do Porto
As várias ilhas situadas defronte da cidade foram também fortificadas e todo o conjunto foi pensado por forma a cobrir com artilharia todas as aproximações inimigas por terra e mar. Para apetrechar estas fortificações, foram importados de uma fundição de Barcelona os canhões actualmente existentes no local.
Nas muralhas de Essaouira estão patentes dois conceitos e filosofias completamente distintos no que se refere à arquitectura militar:
Do lado de terra, onde o perigo não era previsível, apresentam um traço medieval, muito ao gosto marroquino, patente nos seus panos rebocados e pintados de tom ocre, decorados com merlões, constituindo mais um limite do tecido urbano do que propriamente uma barreira defensiva. São de grande qualidade estética, com a suavidade que lembra a cerca de Marraquexe, apenas interrompida pela modernidade do Borj Bab Marrakech, que aliás não consta do projecto de Cornut.
Do lado do mar, de onde viria o verdadeiro perigo para a cidade, exprimem toda a sua agressividade, com as suas estruturas à Vauban, fortemente guarnecidas de bocas de fogo, apresentando os panos em pedra aparelhada. Uma autêntica máquina de guerra com grande poder dissuasor para qualquer eventual agressor.
O Borj El Barmil, local do antigo Castelo Real de Mogador
Apesar de os elementos da arquitectura militar serem aparentemente os mais evidentes, foi no entanto, na estruturação do tecido urbano que Cornut colocou todo o seu génio ao serviço dos objectivos políticos de Sidi Mohamed Ben Abdellah. Foi criado o Bairro do Rei ou Casbah, onde se localizavam os principais edifícios do Makhzen, os consulados dos países europeus e os Toujar, ou negociantes do rei, geralmente Judeus; a Medina, habitada sobretudo por Berberes Haha e Árabes Chiadma, e o Mellah ou bairro Judeu.
Importantes contingentes militares encontravam-se estacionados na cidade, incluindo os famosos ’Abid Al-Bukhari, os escravos negros do Sultão, que estiveram na origem de três dos bairros residenciais da actual medina _ Ahl Agadir, Bani Antar e Bouakhir.
“O Sultão ordenou a todos os cônsules para se instalarem em Essaouira e de aí construírem uma casa. Como sublinha o Dinamarquês Géorges Host no seu jornal de 1765: depois de que Mohamed se instalou ele próprio em Souira e distribuiu os terrenos para construção, ordenou a todos os cônsules para irem para lá e aí construírem a suas expensas, cada qual uma casa importante e adequada; todos os embaixadores deviam ir para lá, todos os piratas deviam levar as mercadorias por si aprisionadas para a mesma Souira, e um estaleiro naval devia ser fundado.” (MANA, 2012, página electrónica citada)
Planta de Essaouira com a localização dos consulados. Al Akhawayn University Ifrane (Eric Ross, John Shoup, Driss Maghraoui e Abdelkrim Marzouk)
De acordo com um levantamento da Universidade de Al Akhawayn de Ifrane, existem referências a oito consulados em Essaouira, concretamente da Dinamarca, Grã-Bretanha, Holanda, França, Espanha, Itália, Portugal e Brasil.
A cidade foi também dotada com os necessários equipamentos à vida da população, como mercados, áreas para trabalho de artesãos, zonas residenciais e uma importante alfândega.
“Quando a cidade foi terminada, o Sultão chamou negociantes cristãos para fazerem o seu comércio e, para os atrair, dispensou-os das taxas alfandegárias. Os comerciantes afluíram logo de todos os lados e estabeleceram-se neste porto, que foi povoado num curto espaço de tempo”. (MANA, 2012, página electrónica citada)
Para atrair os comerciantes europeus foi determinante o peso da comunidade judia local, cujos contactos e relações comerciais que mantinham com a Europa facilitaram o seu estabelecimento. Estima-se que nos finais do século XVIII os Judeus representassem 40% da população local, o que levou inclusivamente à construção de um segundo Mellah.
Essaouira vista da Skala do Porto
Como refere Othman Mansouri, ainda durante o reinado de Mulay Ismail Portugal tentara estabelecer um acordo de paz com Marrocos, mas a presença dos portugueses em Mazagão inviabilizou qualquer entendimento.
“Em 1689 o sultão Mulay Ismail reclamou ao rei de Portugal a libertação de El Jadida. Em 1691 nova embaixada portuguesa, presidida por José Álvares, foi enviada a Meknés no intuito de chegar a um acordo relativo aos prisioneiros, mas Mulay Ismail levantou o problema de El Jadida e, a 1 de Setembro do mesmo ano, dirigiu ao rei de Portugal, D. Pedro II, uma carta a este respeito”. (MANSOURI, 2004, p. 96-97)
Mazagão viria a ser evacuada após um cerco de 75.000 soldados marroquinos, mas as destruições e mortes que os portugueses causaram com as explosões realizadas durante a entrada na cidadela das forças de Marrocos continuaram a ser um entrave a um entendimento entre os dois países.
Deste facto deu conhecimento ao rei de Portugal o emissário de Sidi Mohamed Ben Abdellah, Manoel de Pontes, que se deslocou a Lisboa em Junho de 1769. Por pressão da Assembleia de Portugal, o mesmo Manoel de Pontes foi encarregue por D. José de propor ao sultão um acordo final, enviando-lhe “numerosos presentes: pérolas preciosas, tecidos de grande qualidade como panos bordados, mousselines e outros”. (MANSOURI, 2004, p. 97)
Estas negociações abriram caminho ao processo diplomático que se seguiu.
A Bab El Marsa, construída pelo renegado inglês Ahmed El Inglizi
Nesse ano de 1769 foi acordada uma trégua entre os dois países, ao que se seguiu em 1772 uma manifestação do desejo do estabelecimento de relações diplomáticas. Em 1773 o oficial da Marinha portuguesa José Roleen Van-Deck é encarregue de liderar as negociações com vista à assinatura do tratado de paz.
O estabelecimento de uma missão diplomática em portuguesa em Marrocos esteve associada à assinatura do Tratado de Paz de 1774, apenas 5 anos após a evacuação da Cidadela de Mazagão. Com esse tratado de paz, que o Sultão Sidi Mohamed Ben Abdellah promoveu não só com Portugal, mas com as principais potências europeias, estabelecem-se relações diplomáticas e comerciais entre os dois países, com grande relevância para o fim da guerra do corso e do aprisionamento de cativos, e o início de uma política de trocas comerciais e da disponibilização dos portos de Marrocos para as embarcações portuguesas.
“Embora questionável, afigura-se que o fim do corso terá sido mais uma causa do que uma consequência da abertura de Marrocos ao comércio exterior. Perante a crescente inviabilidade de uma prática ilegal, mandava a lucidez e o pragmatismo de Sidi Mohamed encontrar alternativa, quiçá menos rendosa mas por certo mais segura.” (BRANDÃO, 2004, p. 30-31)
A Skala da Casbah
Da Embaixada enviada a Marrocos, num total de 117 elementos, faziam também parte “o cônsul-geral Bernardo Simões Pessoa, o 2ª secretário Manuel da Silva, o capitão João Marques de Carvalho, o cirurgião António José Coelho e o secretário-intérprete Frei João de Sousa.
Para a guarda pessoal de Van-Deck incorporaram-se quarenta soldados de Infantaria, comandados por um capitão e um tenente e mais seis músicos trombeteiros das Reais Cavalarias de Sua Majestade Fidelíssima.” (BRANDÃO, 2004, p. 35)
A comitiva desembarcou em Mogador cinco dias após a partida de Lisboa, onde “o embaixador de Portugal recebeu ordens para não abandonar o navio antes de ter recebido os presentes destinados ao rei de Portugal, a saber: seis cavalos árabes, seis camelos, três avestruzes” (MANSOURI, 2004, p. 98). Duas semanas depois puseram-se a caminho de Marraquexe, “acompanhados por 120 cavaleiros marroquinos e dois cozinheiros escolhidos entre os melhores do palácio” (MANSOURI, 2004, p. 98), mas o embaixador foi transportado numa liteira por se encontrar acometido “de um mal não definido”, vindo a falecer nessa cidade. O texto do acordo viria a ser concretizado pelo cônsul-geral, já na cidade de Safi, para onde foram transferidas as negociações, pelo facto de o sultão ter que se ausentar para Fedala.
Pouco tempo depois chegou a Lisboa uma missão diplomática marroquina, a quem foi entregue a ratificação do Tratado de Paz.
“Sem que haja notícia de iguais contactos ao longo do século XIX, nem por isso deixou de subsistir o amistoso quadro que o Tratado de 1774 fixara. A presença portuguesa perdurará em Marrocos pela acção dos seus representantes consulares, testemunho de uma harmonia que pôs termo às ancestrais rivalidades”. (BRANDÃO, 2004, p. 40)
Essaouira
O Tratado de Paz viria a mostrar-se de grande relevância tanto para Marrocos como para Portugal, como salienta Ahmed Boucharb, ao considerar “Marrocos o novo aliado de Portugal”.
Para Marrocos, Portugal era um país de grande importância estratégica, pela vastidão das suas águas territoriais, que podiam abrigar a nova frota marroquina em lugares tão longínquos como a Madeira ou os Açores.
“Sidi Mohamed Ben Abdellah ordenava aos seus capitães que se refugiassem sistematicamente em caso de necessidade em portos portugueses; aqueles que não o fizeram foram castigados. O sultão tinha o hábito de avisar o cônsul português do programa das saídas dos seus navios (…) os navios que dispunham de documentos oficiais eram bem acolhidos pelas autoridades portuguesas”. (BOUCHARB, 2004, p. 71)
Para além disso, Portugal por várias vezes forneceu armas ao sultão de Marrocos para o apoiar na luta contra os seus inimigos, sobretudo pólvora. Os navios marroquinos eram reparados nos estaleiros portugueses e Portugal dava formação aos militares de Marrocos e apoio na cunhagem da sua moeda.
Celebração da “Chabana” numa rua da Medina
Portugal tinha também grandes vantagens com o acordo, já que os navios que faziam a rota do Brasil navegavam em segurança, abrigavam-se nos portos de Marrocos em caso de tempestade e utilizavam esses portos como bases seguras contra o corso argelino e tunisino. Para além disso, Portugal importava de Marrocos trigo e gado, de que o país era deficitário, tendo sido decisivo o apoio marroquino a Portugal durante as invasões francesas com significativos abastecimentos desses produtos.
Em relação ao trigo refere Boucharb:
“Consciente da importância estratégica deste produto para Portugal, especialmente durante os períodos de escassez ou de dificuldades políticas, como por ocasião das invasões francesas e na sequência das devastações que estas provocaram, o sultão marroquino concedeu-lhe o estatuto de nação mais favorecida”. (BOUCHARB, 2004, p. 81)
Este clima de confiança e cooperação entre os dois países está patente numa carta do Mulay Sulaymane ao governador de Tânger e aos dos outros portos marroquinos, que diz:
“Ordenamos-te que veles pelos portugueses e que peças para que sejam bem tratados. Todos quantos vierem terão direito a um tratamento de favor, serão protegidos contra tudo quanto possa prejudicá-los. Se alguém ousar maltratá-los ou causar prejuízo aos seus interesses, deves castigá-lo consoante o grau do delito. Os seus navios de guerra serão autorizados a carregar tudo quanto lhes faltar em bovinos, ovinos, pão, bolacha e outros “refrescos” sem pagar o que quer que seja, como lhes foi outorgado no reinado de Nosso Senhor que a Paz esteja com ele”. (BOUCHARB, 2004, p. 81-82)
O Impasse Ibn Zohr
A Igreja e o Consulado Português situam-se no impasse Ibn Zohr, junto à entrada para a Skala da Casbah. São dois edifícios de três pisos com portas decoradas ao estilo muito próprio da cidade de Essaouira, com pilastras laterais e verga em arco, combinando a pedra de cantaria com esgrafitos de argamassa. A igreja em si não corresponde tipologicamente a um edifício de culto cristão, mas a um espaço multifuncional.
A porta da Igreja é de inspiração neo-clássica, com decoração executada em argamassa, definindo um pórtico com arco e arquitrave apoiados em pilastras. A fachada é de reduzida largura, com janela em ogiva sobre a porta. A porta do Consulado é guarnecida de elementos de cantaria, pilastras e arco, com decoração no arranque e fecho do arco, tendo neste último uma inscrição do ano de 1871, que não sabemos se é referente à construção do edifício ou à colocação da referida porta no mesmo. A porta é de verga recta, existindo no enchimento do arco uma placa com referência à existência do Consulado de Portugal durante o século XIX naquele local. Aliás as duas portas são características do século XIX.
A fachada da Igreja portuguesa e, à sua direita, a fachada do Consulado português
Não encontrámos documentos sobre a construção da Igreja e do Consulado, mas apenas referências a que a Igreja fora construída por comerciantes portugueses nos finais do século XVIII e que o Consulado se encontrava em actividade durante o século XIX, como comprova esta passagem da página 175 do Diário das Cortes referenciado na bibliografia, sobre a sessão de 19 de Agosto de 1822:
“Em cumprimento da ordem do soberano Congresso que V. Exc.ª me transmitiu em seu officio de 30 de Julho ultimo, acerca dos cônsules indispensáveis no império de Marrocos, seus ordenados, e despezas extraordinárias, que he de necessidade ali fazer, tenho a honra de levar por meio de V. Exc.ª ao conhecimento do mesmo soberano Congresso, que além do consulado geral com o Ordenado de 1.200 réis, parecem indispensáveis os consulados em Tanger com o ordenado de 500 reis, em Larache com o de 600 réis, e em Mogador com o ordenado de 700 réis, o que tudo perfaz a quantia de 3.000 réis.”
Esquema de implantação da Igreja e Consulado no respectivo quarteirão
A Igreja á um imóvel pertencente ao Estado Marroquino, com área e proporções razoáveis em termos de potencialidades para uma utilização colectiva, que a Région de Marrakech-Safi tem perspectivada, apesar de apresentar uma frente sobre o espaço público extremamente reduzida e de se encontrar encravada num aglomerado de construções. Tem um pátio central, para iluminação e ventilação dos pisos inferiores, mais dois pequenos pátios junto às extremas, situando-se a torre sineira no canto Noroeste, da qual partem dois corpos edificados em forma de L, ao nível do terraço. A torre sineira é na realidade uma torre de carácter militar, com semelhantes a muitas existentes em Portugal, encimada por um campanário de construção posterior.
As características estéticas e tipológicas do imóvel em nada se identificam com as das igrejas portuguesas da época, sendo claramente um exemplo de arquitectura de estilo importado, sem dúvida influenciada por quem a construiu. Mais, percebe-se que estamos em presença de um imóvel adaptado a Igreja, contendo elementos construtivos de épocas distintas _ a torre é claramente o elemento mais antigo, não só pelas suas características métricas, construtivas e estéticas, que podemos caracterizar como tardo-medieval; os dois corpos que lhe são adjacentes encontram-se adossados de forma pouco integrada e são notoriamente mais recentes; verifica-se a existência de elementos de betão armado, estes últimos do século XX.
O seu estado de degradação é avançado, diremos mesmo de pré-ruína.
Aspecto actual da Igreja Portuguesa de Essaouira, vista de um dos quintais adjacentes
Um aspecto interessante é o de que o imóvel que se encontra adjacente à Igreja, que na planta anterior se designa edifício das cantarias, de propriedade privada (e neste momento para venda), e que separa a Igreja da Rua Ibn Rochd, parece de alguma forma ter constituído um conjunto com a Igreja, ou mesmo terem sido um só edifício.
Assim sendo, a chamada Igreja Portuguesa seria originalmente um imóvel com outro desafogo, de frente generosa sobre a via pública, o que parece muito mais consentâneo com a sua importância no contexto político da época, e consequente relação em termos de presença urbana.
O referido edifício das cantarias tem nas suas janelas cantarias no mínimo intrigantes, semelhantes às de vários edifícios da cidade de Safi, com verga com arco conopial, e que apresentam semelhanças com a estética Manuelina, podendo ter inspiração nesse estilo português, ou inclusivamente serem dessa época e reaproveitadas posteriormente.
A fachada do “Edifício das Cantarias” sobre a Rua Ibn Rochd
Por outro lado, o edifício apresenta a escada de acesso aos pisos superiores na fachada, situação que indicia que não deveria ser um edifício autónomo, mas parte de um outro, já que a escada na fachada seria sempre colocada na fachada posterior ou traseiras. A situação é patente nas janelas dispostas em meio-piso, que corresponde aos patins intermédios. Essas janelas, pela sua largura e decoração, não são de modo algum janelas características de uma escada.
Também é evidente que as cantarias são reutilizadas de outro imóvel, ou de uma reconstrução no próprio local, já que a fachada é eclética, utilizando pedras de estilos diferentes, para além de na mesma janelas se observarem diferentes tipos de pedras. Para além disso a fachada não tem composição, sendo quase totalmente cega, pelo que não existe uma lógica entre a nobreza das cantarias e a falta de qualidade estética e de composição da fachada.
Seriam estas cantarias retiradas do antigo Castelo Real de Mogador?
Pormenor de janela do mesmo edifício
Contactei o meu amigo Manuel Castelo Ramos, Mestre em História de Arte, Mestrado com o título Vãos Arquitectónicos do Tardo-Gótico Algarvio, para um esclarecimento sobre estas cantarias, que me respondeu com o seguinte texto:
“É um arco conopial ou canopial que o manuelino muito usou, mas que não era seu exclusivo. É típico de todo o tardo-gótico. Os florões, angulares, algo desproporcionados, são raros, mas podem ser indicativos de alguma referência heráldica (lembram uma flor-de-lis).
Por outro lado, isto também pode ser um reaproveitamento de uma velha cachorrada. O que me leva a pensar isto, é a rudeza do trabalho e o facto de o assentamento nas ombreiras não ser de todo perfeito (um dos lados parece mesmo realizado noutra pedra). Enfim, uma só conclusão, para além de que se trata de trabalho do séc. XV, inícios do seguinte: é obra de europeus, mesmo que tenham sido alarifes mouros a fazê-la.
(A cantaria) será manuelina se for do reinado de D. Manuel. Estilisticamente não é defensável, uma vez que lhe falta todo o ‘barroquismo’ que se associa à decoração dos vãos ditos ‘manuelinos’.”
Esclarecimento _ a cachorrada referida coloca a possibilidade de a verga das janelas com arco conopial ser constituída por dois cachorros, ou apoios de vigas encastrados nas paredes, geralmente com essa forma.
Fachada posterior do edifício do antigo Consulado de Portugal sobre a Rue Khalid Ibn Oualid
Em relação ao edifício do antigo Consulado Português, de propriedade privada, aparenta ser um imóvel de configuração alongada e estreita, com frente para o Impasse ibn Zohr e traseira para a Rue Khalid Ibn Oualid, sem grande interesse arquitectónico.
Á semelhança da Igreja, encontra-se também devoluto e bastante degradado, mas contrariamente a esta, não aparenta grandes possibilidades de reutilização para uma utilização colectiva devido às características da sua configuração em planta.
Na Rue Khalid Ibn Oualid, o edifício tem utilização comercial no piso térreo.
A placa existente sobre a porta do Consulado
A Igreja Portuguesa de Essaouira é mais um exemplo de património luso-marroquino que deveria ser intervencionado urgentemente, perspectivando uma utilização pública que mantenha a memória de Portugal viva nesta cidade.
Para além disso, é necessário realizar-se uma caracterização do conjunto, métrica, construtiva, estética e das suas patologias, incluindo as necessárias análises parietais e sondagens arqueológicas, estudo que poderá trazer algumas surpresas sobre a verdadeira origem da Igreja Portuguesa de Essaouira, e uma eventual relação de alguns elementos construtivos que contém com o próprio Castelo real de Mogador.
Tenho que lá voltar e munido desta informação. Para que, em detalhe, percorrer estas ruas de Essaouira, e descobrir estes pormenores que nem reparamos quando vamos de passagem. Excelente Frederico!
A torre da Igreja só é visível a partir dos terraços vizinhos. O resto vê-se das ruas, é claro.