Após a conquista de Ceuta em 1415, Tânger torna-se uma obsessão para a coroa de Portugal. Em 1437 um grande e mal planeado ataque comandado pelo infante D. Henrique fracassa, constituindo um rude golpe para as aspirações portuguesas. A opção é então tomar Alcácer Ceguer, facto que ocorre em 1458, já no reinado de D. Afonso V. No ano de 1464 D. Afonso V faz uma nova tentativa para conquistar Tânger, seguida de outros ataques menores, todos sem sucesso. A tomada de Tânger revelava-se como difícil de concretizar.
“Em 1471 surgiu nova oportunidade: beneficiando de um clima de volubilidade política no reino de Fez, D. Afonso V depressa organizou uma expedição que, desta vez, visaria Arzila, uma cidade desprovida de um porto seguro mas dotada de uma fértil região agrícola. Subjugada Arzila tornar-se-ia muito mais fácil o cerco da cidade de Tânger pelo sul.” (DÁVILA, obra citada)
A Torre de Menagem de Arzila ou Borj El-Kamra
Conforme referem José Carlos Babiano Alvarez de los Corrales, Martina Lagos Mariñansky e Federico Garcia Martinez na sua Asilah, Evolución Urbana de la Ciudad, a maior parte dos autores identificam Arzila com a antiga Zilis romana, mas “a ausência de vestígios romanos importantes, levaram a negar-lhe esta origem. A cidade de Zilis estaria onde estão as ruínas de Had de Garbia, conhecidas como Ad Mercuri, com porto e entrada marítima pela ria de Tahadart”. (ALVAREZ DE LOS CORRALES, LAGOS MARIÑANSKY e GARCIA MARTINEZ, 2001, p. 9)
Esta teoria é corroborada pelos textos de Estrabão, Ptolomeu e Ibn Hawkal, este último que lhe chama Zalul e a descreve como uma cidade encantadora, a Leste de Arzila.
Al-Bakri ou El-Bekri, historiador e geógrafo andalusino do século XI (1040-1094) refere-se a Arzila na sua Descrição da África Setentrional, escrevendo ser a “primeira cidade do litoral africano, a partir do Ocidente” e “situada numa planície rodeada de pequenas colinas”. (EL-BEKRI, 1859, p. 218)
A descrição de El-Bekri fornece alguns dados interessantes sobre a cidade, como seja o facto de ser dotada de uma cintura de muralhas com cinco portas e o mar, quando está agitado, vir bater nas paredes da Mesquita, edifício de cinco naves. Refere também existirem dois poços dentro da cidade que lhe fornecem água salobra, mas que “o Bir (poço) Adel, o Bir es-Sania ‘poços da máquina hidráulica’, e vários outros poços no exterior, dão uma água de boa qualidade”. (EL-BEKRI, 1859, p. 218-219)
Dispõe de um porto que oferece um bom abrigo aos navios, já que é protegido por um molhe feito de pedra talhada. El-Bekri afirma que Arzila é uma cidade de construção moderna (descrição do século XI) e relaciona a sua fundação com a resistência local aos Majus (Vikings). Segundo Bekri, os Majus teriam permanecido no local por duas vezes, a primeira das quais nos anos de 843-844, para resgatar um tesouro por eles aí escondido. A segunda vez chegaram durante um temporal que afundou muitos dos seus navios à entrada do porto, num local chamado Bab Al-Madjus ou Porta dos Vikings. As tribos locais com o apoio de andalusinos fundaram então um Ribat, junto ao qual se desenvolveu um povoado, que esteve na origem da cidade de Arzila, cujo nome significa boa. (EL-BEKRI, 1859, p. 221)
A Rua e Porta da Kasbah, abertas no século passado
Al-Idrisi, geógrafo do século XII, na sua Primeira Geografia do Ocidente, pouca importância dá a Arzila, dizendo que “Azayla é uma muito pequena cidade da qual não resta actualmente quase nada”, acrescentando que é muralhada e existem mercados nas suas proximidades, o que faz supor que seria nesta altura uma cidade em declínio. (AL-IDRISI, [115-] 1999, p. 250)
Jean Léon L’Africain, na sua Descrição de Africa editada em 1530, refere que Arzila foi fundada pelos Romanos, depois subjugada pelos Godos e conquistada pelos Muçulmanos no ano 94 da Hégira (ano 712). Segundo o autor, duzentos anos passados, os Anglois (Normandos ou Vikings) “tomaram a cidade por força das armas, fizeram passar todos os habitantes pelo fio afiado das suas espadas, metendo tudo a fogo e sangue, de tal forma que não deixaram nenhuma criatura viva; assim ficou cerca de trinta anos desabitada”. (LÉON AFRICAN, [1530] 1897, p. 240)
Léon acrescenta que os Senhores de Cordoba reedificaram a cidade e os seus habitantes se tornaram em pouco tempo ricos e opulentos. Segundo Léon, os Portugalois ou Portugueses, tomaram a cidade no ano 182 da Hégira (1471) e “levaram para Portugal todos os que encontraram, entre os quais estava Mohammed, que é hoje Rei de Fez, o qual, sendo ainda criança, foi levado com uma sua irmã da mesma idade (…) foram detidos cativos pelo tempo de sete anos, e durante esse tempo aprenderam bem a língua do país. Finalmente, o pai, com uma grande soma de dinheiro, pagou o resgate do filho, o qual, chegando ao governo do Reino, foi chamado por esse facto, Mohammed Português, e assaltou de improviso a cidade de Arzila, cujas muralhas demoliu em parte, e entrou no interior, libertando todos os Mouros, que tinham sido escravizados”. (LÉON AFRICAN, [1530] 1897, p. 240-242)
Léon conclui a narrativa referindo que os cristãos se refugiaram no Castelo e foram salvos por uma armada que retomou a cidade, a qual foi reconstruída e fortificada, apesar dos cercos e o combate que os muçulmanos lhes deram.
“Isto passou-se no ano 914 até a 921 da Hégira (1508-1515)”. (LÉON AFRICAN, [1530] 1897, p. 242)
O Baluarte de Tambalalão
Luís del Mamol y Carvajal tem uma descrição em tudo semelhante à de Léon o Africano, na sua obra A Africa de Marmol, publicada em 1573. Marmol y Carvajal cita Ptolomeu, que, segundo ele, a “coloca a seis graus e trinta minutos de longitude, e a trinta e cinco graus e dez minutos de latitude, sob o nome de Zilie. Nas novas cartas, ela pertence ao número das que se encontram no interior do país, porque o Oceano faz um grande banco de areia nesse lugar”. (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 216)
Marmol refere que Arzila é bem situada e tem boas muralhas providas de torres, com um forte castelo. “Mas a sua principal força vem da dificuldade de entrada no porto, por causa de um banco de areia que aí existe, o que provocou o seu abandono pelos Portugueses, pela dificuldade que tinham em socorrê-la por mar”. (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 216-217)
Marmol apresenta uma descrição bastante completa da conquista de Arzila pelos portugueses em 1471. Descreve a armada portuguesa como tendo duzentos navios e vinte mil homens, muitos dos quais desembarcaram no dia seguinte ao da sua chegada ao local. Apesar de a armada ser comandada por D. Afonso V e pelo seu filho, o Príncipe D. João, o primeiro desembarque é comandado por D. Álvares de Castro, Conde de Monsanto, e D. João Coutinho, Conde de Marialva. A dificuldade de desembarque, devido às vagas e aos bancos de areia, provocou o afundamento de alguns navios e a morte de duzentos portugueses. O estado do mar atrasou o desembarque das peças de artilharia, tendo nos três primeiros dias sido apenas utilizados dois canhões para abrir brechas nas muralhas. Ao quarto dia é içada uma bandeira branca no castelo, pedindo a rendição, que o Rei de Portugal terá aceitado, poupando as vidas dos seus habitantes. “Mas durante estas negociações, alguns soldados e oficiais, zangados por perderem o fruto da sua conquista, subiram em multidão pela brecha, que estava desguarnecida pelas condições do tratado”. (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 218)
O combate generalizou-se então, não só pela brecha da muralha, como por intermédio de escadas que foram montadas para o assalto, sem que o Rei Afonso V tivesse o controlo da situação. A descrição de Marmol dá conta de um massacre generalizado da população, com bastantes mortos também do lado das tropas portuguesas. No final foram feitos prisioneiros 5.000 Mouros, entre os quais duas mulheres, um filho e uma filha de Mulai Cheikh Oataz. Só no Castelo e na Mesquita morreram mais de 2.000 mouros. (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 219-220)
A Couraça
Marmol refere-se ao tratado de paz por 20 anos estabelecido entre Afonso V e Mulai Cheikh, e ao cerco que o seu filho, Mohammed Al-Burtughali (o Português) fez a Arzila no ano de 1508, com um exército de 20.000 cavaleiros, 26.000 soldados de infantaria, entre os quais 12.000 arcabuzeiros, e muita artilharia. Os sitiadores colocaram tropas do lado da praia para inviabilizar o apoio por mar, e começaram a minar a base da muralha, afastando os defensores, que Marmol refere serem apenas 400 soldados, através de tiros de arcabuz. Um pano de muralha ruiu e as tropas de Mohammed Al-Burtughali entraram no interior da cidade. A população refugiou-se no Castelo, que resistiu até que, três dias depois, uma armada comandada por D. João de Meneses chegou, reforçada por uma outra, bastante mais forte, comandada pelo Almirante D. Pedro de Navarra, que contava com uma força de 3.500 soldados castelhanos, que obrigaram ao levantamento do cerco e ao abandono da cidade pelos Mouros. (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 224-226)
Marmol descreve de seguida vários outros cercos a Arzila, sem as consequências que tivera o de 1508. Dois anos depois o Rei de Fez volta a cercar Arzila, passando-se o mesmo em 1514 e em 1516. (MARMOL Y CARVAJAL, [1573] 1667, p. 226-227)
O pano Poente da muralha no acesso ao Baluarte de S. Francisco
Voltemos então ao início deste texto, e à constatação de que a estratégia para conquistar Tânger passaria inicialmente por tomar Arzila. Em 1471 prepara-se uma poderosa armada, a maior organizada até então. A conquista de Arzila era determinante, por vários motivos:
Em primeiro lugar porque o seu governador Mulai Ech-Cheikh, filho do regente Lazeraque, estava ausente, empenhado num cerco a Fez para tomar o lugar do sultão. Em segundo lugar, porque tomada Arzila, Tânger ficaria isolada do resto do território de Marrocos, tornando-se numa presa fácil para Portugal. Finalmente, porque Arzila era uma praça rica, que constituía um dos locais de chegada do ouro do Mali, perspectivando-se um saque compensador. Este facto leva inclusivamente a que Martim Leme, mercador flamengo, tenha contribuído para o financiamento da expedição em troca de fazer comércio livre na praça após a sua conquista.
Á semelhança das empresas anteriores, organizam-se três armadas, no Porto, em Lisboa e em Lagos, juntando-se as forças nesta última cidade. No dia 18 de Agosto de 1471 a armada parte rumo a Arzila. Segundo Ruy de Pina eram 477 navios e 30.000 homens de desembarque, segundo Damião de Góis eram 338 velas e 24.000 homens.
“Ia nela a melhor gente de Portugal: D. Afonso e seu filho herdeiro do trono, D. João, de 16 anos de idade, que combateu valorosamente, como seu pai; entre os fidalgos o conde de Valença, D. Henrique de Meneses, capitão de Alcácer Ceguer, o conde de Monsanto, D. Álvaro de Castro, o conde de Marialva, D. João Coutinho, ambos mortos no combate à vila, e muitos outros.” (LOPES, [1937] 1989, p. 25)
A armada chegou a Arzila no dia 20 e foi tomada a decisão de atacar logo na madrugada seguinte para não permitir que os defensores se organizassem. O desembarque inicia-se de forma atabalhoada, facto determinado pelo mau estado do mar e pelos recifes que existem frente a Arzila, perdendo-se logo alguns navios e respectivas tripulações, como refere o cronista Rui de Pina:
“E no outro dia em amanhecendo, depois d’El-Rei ter conselho sobre sua desembarcação e filhamento da terra, mandou apparelhar e armar os batéis e caravellas pequenas, e barcas de carreto para logo na melhor ordenança, e que mais fosse possível tomarem terra. E como quer que o porto era mui perigoso; porque o mar áquellas horas andava mui alevantado, e quebrava com muita braveza em um arrecife de pedra que tem, com entradas más de tomar, El-Rei todavia mandou com muito esforço e presteza remar e tomar a terra, onde elle por maior esforço de todos não quiz ser dos segundos, em que se perdeu uma galé com outras caravellas e bateis, em que no mar morreram até oito fidalgos, e da outra gente até duzentos, em que eram alguns bons cavalleiros e escudeiros.” (PINA, [15–] 1901, p. 59-60)
O Desembarque em Arzila, Tapeçarias de Pastrana. Oficina de Pasquier Grenier, Tounai, Bélgica, último quartel do século XV, Colegiada de Nossa Senhora da Assunção, Pastrana, Guadalajara
Paulo Alexandre Mesquita Dias, na sua dissertação de Mestrado “A conquista de Arzila pelos Portugueses – 1471”, dá uma ideia precisa da logística, composição da armada portuguesa e eventos ocorridos durante a conquista da cidade. Segundo o autor, “foi uma campanha meticulosamente planeada que incluiu a compra de toneladas de mantimentos e armas e o recrutamento da maior hoste até então levantada em Portugal”. (DIAS, 2015, Resumo)
D. Afonso V enviou previamente dois espiões à cidade para avaliar as condições do seu porto e as suas defesas. Foram eles Vicente Simões e Pero D’Alcáçova, que analisaram Arzila disfarçados de comerciantes, aliás procedimento idêntico ao que D. João I tinha utilizado previamente à conquista de Ceuta.
Segundo Dias, o exército utilizado era composto de 23.000 homens, transportados em 338 navios. Esses 23.000 homens organizavam-se em contingentes homogéneos e “esta homogeneidade caracterizava-se na existência de diferentes corpos armados que se juntavam para formar a hoste régia: os combatentes nobres, os seus servidores e mesnadas de homens recrutados nas suas terras; as milícias concelhias, como os aquantiados e os besteiros do conto e de cavalo; os contingentes das Ordens Militares de Santiago, Cristo, Hospital e Avis; as forças próprias do rei e do príncipe, incluindo os homens das respectivas Casas; e por fim as unidades de homiziados – criminosos que cumpriam serviço militar a troco de um perdão do rei – e as companhias de mercenários estrangeiros.” (DIAS, 2015, p. 13)
Dias esclarece que só homiziados, 1162 integravam a hoste portuguesa, na busca de perdão pelos seus crimes, mas que seria muito provável a existência de contingentes de mercenários e de aventureiros, como era habitual, e de veteranos das guerras de África, no caso concreto de cerca 400 homens da guarnição de Alcácer Ceguer. (DIAS, 2015, p. 54 e 59)
O custo da expedição terá sido entre 13.440.000 e 16.200.000 reais, que terão vindo do Tesouro Régio, cujo rendimento anual andaria pelos 52.000.000 de reais, para além de alguns empréstimos de pequena monta feitos a nobres e à comunidade judia. O produto dos despojos obtidos com a conquista da cidade terá sido de 9.600.000 reais. (DIAS, 2015, p. 60-63)
O Cerco a Arzila, Tapeçarias de Pastrana. Oficina de Pasquier Grenier, Tounai, Bélgica, último quartel do século XV, Colegiada de Nossa Senhora da Assunção, Pastrana, Guadalajara
O armamento utilizado combinava técnicas e armas medievais com as modernas armas de fogo, que Inês Filipa Meira Araújo retrata exemplarmente na sua Tese de Mestrado As Tapeçarias de Pastrana, uma Iconografia da Guerra.
De acordo com este estudo a grande maioria dos soldados usavam como protecção da cabeça os chapéus de armas (chapéus-de-ferro, morriões ou simplesmente capacetes), enquanto os nobres usavam as celadas, fossem celadas simples, também chamadas celadas italianas, fossem celadas com diversos elementos articulados por rebites e dobradiças, como por exemplo viseiras, inspiradas nos elmos clássicos. Alguns elementos, como os trombeteiros, utilizavam toucas, barretas ou gorras. Quanto à protecção do corpo, a esmagadora maioria das tropas utiliza as brigandines, protecções para o tronco constituídas por tecido ou couro reforçado por placas metálicas, associadas a um saiote e eventualmente a elementos metálicos para protecção do pescoço, peito, ombros, braços e pernas, aplicados através de arneses de couro. O Rei e os nobres utilizavam uma armadura de arnês completa, constituída por babeira, peitoral, ombreiras, braçais, cotoveleiras, com guardas de várias placas, avambraços, manoplas, escarcela ou panceira, coxotes, joelheiras e grevas.
As defesas exteriores eram feitas com escudos, fossem os escudos de inspiração normanda, de forma oval ou triangular, de madeira e metal, fossem as adargas, de inspiração muçulmana, de forma bi-oval, fabricadas em couro, ambos utilizados pela infantaria e cavalaria. Observam-se também paveses, escudos de grandes dimensões, canelados, utilizados sobretudo para protecção dos arqueiros e artilheiros, e manteletes ou mantas, utilizados com o mesmo fim e para proteger as tropas da aproximação às muralhas.
O Assalto a Arzila, Tapeçarias de Pastrana. Oficina de Pasquier Grenier, Tounai, Bélgica, último quartel do século XV, Colegiada de Nossa Senhora da Assunção, Pastrana, Guadalajara
O palanque ou castelo de madeira, era uma estrutura defensiva colectiva, móvel, que se revelara determinante na sobrevivência de muitos soldados durante a tentativa falhada de conquistar Tânger em 1437.
“O palanque era uma estrutura defensiva construída em madeira e que servia como uma fortificação de campanha (…) No Regimento de Guerra publicado nas Ordenações Afonsinas está explícito que esta paliçada era obrigatória nas operações de sítio, sendo instalada a toda a volta do arraial, de forma a protegê-lo de eventuais ataques pela retaguarda de um exército de reforço à cidade”. (ARAÚJO, 2012, p. 122)
Como armamento ofensivo refira-se as armas de mão, espadas e adagas, as armas de haste, como lanças, bisarmas (alabardas ou foices de guerra), as armas de propulsão muscular, como ascumas, zagaias, dardos e pedras e as armas de propulsão neurobalística, como bestas e virotes. Dentro desta última categoria, não existe representação nas tapeçarias de “engenhos de arremesso por torsão ou contrapeso” (ARAÚJO, 2012, p. 161), como catapultas ou trabucos, ainda em utilização na época, porque o rei terá querido mostrar apenas o que tinha de mais moderno, ou seja, as novas armas de propulsão pirobalística, como trons encarrados, bombardas, colubretas, canhões de mão e espingardas de mecha ou arcabuzes, importadas pelos portugueses da Flandres e de Barcelona.
Uma referência aos artilheiros ou bombardeiros, soldados que manuseavam as armas de fogo. Segundo Inês Araújo, “não eram considerados militares mas sim mesteirais ou artífices. Muitas vezes eram vistos como homens com ligações a forças diabólicas devido ao secretismo desta arte e ao som e explosão que provocavam. Para além disso, para uma chefia militar podia ser considerado desonroso optar pela utilização das armas de fogo numa determinada operação, já que ia contra os ideais de combate medievais que davam primazia à luta corpo-a-corpo. Dentro desta lógica, as armas de fogo matam de forma ‘cobarde’, através de um tiro à distância, e de consequências brutais, provocando muitas baixas.” (ARAÚJO, 2012, p. 161)
Gravura de Arzila no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
Esta perigosidade do acesso de navios ao porto de Arzila, constatação comum aos vários cronistas, está bem ilustrada na gravura da cidade de Braun e Hogenberg de 1572, que representa os tais recifes situados frente à cidade e os dois caminhos possíveis para as embarcações passarem por eles. O do lado esquerdo tem uma inscrição em latim que refere que se destina à entrada de navios de carga e o do lado direito tem outra que refere que se destina à entrada de navios de pequeno calado, e apenas na maré alta. O caminho do lado esquerdo é guiado pelo alinhamento de duas colunas de pedra, que marca o seu eixo, e que tem a seguinte inscrição em latim:
“Duas colunas de pedra estão colocadas para os marinheiros, pelo facto de a entrada no porto ser muito difícil, dirigindo a rota dos navios, ou então embatem nos rochedos.”
O caminho de acesso ao porto para navios de carga
O caminho de acesso ao porto para barcos de pequeno calado durante a maré alta
As colunas de pedra, cujo alinhamento guia os navios até ao porto
As dificuldades no desembarque reflectiram-se também nos equipamentos que não foram colocados em terra nesse primeiro dia, como por exemplo o palanque, estrutura defensiva circular de madeira destinada a proteger o exército, e a maioria das peças de artilharia pesada, das quais apenas duas ficaram operacionais.
O cerco a Arzila processou-se de mar a mar, tendo sido aberto um fosso seco do lado exterior ao posicionamento das tropas, para servir de defesa no caso de surgir algum exército muçulmano do lado de terra, e construídas torres de madeira em locais estratégicos para vigia dos terrenos circundantes. A logística incluía uma série de especialidades, desde os responsáveis pela alimentação das tropas, aos responsáveis pelo conserto de vestuário, os carpinteiros, barbeiros, médicos e os meirinhos, corpos de polícia que garantiam a disciplina na hoste. (DIAS, 2015, p. 88-89)
O ataque inicia-se assim no dia 21 com bombardeamentos de artilharia que danificam seriamente as muralhas. Os mouros resistem valentemente durante três dias e acabam por pedir a rendição, mas os portugueses não a aceitam. No final há pesadas baixas para ambos os lados e o massacre de muitos moradores inocentes.
“Ao contrário do que se passou na conquista de Alcácer Ceguer, D. Afonso V praticou uma verdadeira política de terror em Arzila, recusando-se a aceitar a rendição da cidade.” (DÁVILA, obra citada)
Ruy de Pina descreve assim os acontecimentos relativos ao pedido de rendição, nos quais se percebe que houve uma intenção inicial de aceitar a rendição por parte de D. Afonso V, mas que, o próprio monarca acabou por a recusar na prática, ao aceitar a continuidade da conquista pela força, mesmo que a ordem inicial não tenha sido dada por si:
“E aos XXIV dias do dito mez, que era dia de S. Bartolomeu, pela manhã, D. Alvaro de Castro, conde de Monsanto, a que a estancia e guarda do castello era encomendada, enviou dizer a El-Rei que estava em sua tenda, que o Alcaide da dita villa lhe queria falar sobre concerto, que era tal que o devia aceitar. E ante de El-Rei dar final resposta, tendo vontade de se concordar como aos mouros já escreveram e mandaram requerer, vieram logo vozes entoados por todos que a villa se entrava. O que a própria vista d’El-Rei que a isso com muita trigança sahiu, fez mui certo e verdadeiro; porque como o rumor correu que a villa era entrada assi concorreu logo a gente do arraial aos muros, a que com muitas escadas e engenhos que para isso eram ordenados, sem alguma certa ordem de combate, logo com muita ardileza subiram e entraram à dita villa por todalas partes”. (PINA, [15–] 1901, p. 61)
A actual Mesquita na Rua da Casbah
Fosse por um descontrole na disciplina dos soldados, fosse pelos compromissos assumidos com os mercenários que integravam a armada portuguesa e que recebiam parte do seu pagamento com o saque da cidade, a verdade é que o massacre aconteceu, como acontecera em Ceuta, mas que não se verificara na conquista de Alcácer Ceguer.
“Os defensores de Arzila fizeram pagar caro a vitória dos nossos, quer na povoação, quer na mesquita e no castelo da vila, onde se bateram valentemente. Na mesquita foi a peleja mais sangrenta. Os mouros, que se tinham refugiado aí, fecharam as portas e quiseram resistir nela. Foi em vão. Quebrada a porta, o conde de Marialva e um tropel de cavaleiros precipitaram-se sobre aquele mar de gente, a cavalo, de espada desembainhada, e bem se deixa ver a carnagem que fizeram naquela pobre gente.” (LOPES, [1937] 1989, p. 25)
No rescaldo da batalha, o saque de Arzila rendeu 80.000 dobras de ouro (9.600.000 reais) e muitos cativos, entre os quais duas mulheres e um filho de Mulai Ech-Cheikh. A mesquita principal foi transformada em igreja, dedicada a S. Bartolomeu, onde o príncipe herdeiro D. João foi armado cavaleiro. A capitania da cidade foi entregue a D. Henrique de Menezes, capitão de Alcácer Ceguer.
Mesquita Dias apresenta uma versão diferente dos acontecimentos, baseada no relato de Jean de Wavrin, escrito em 1471, que por não ser cronista oficial, era notoriamente mais objectivo.
Segundo Wavrin, D. Afonso V terá inicialmente proposto ao Alcaide de Arzila a rendição da cidade em troca das vidas dos seus habitantes, sem referir que condições lhe impôs, rendição que terá sido recusada. Após a recusa, se terá iniciado o bombardeamento da muralha em dois locais diferentes, para dispersar a concentração das tropas defensoras. Segundo Wavrin, apenas no dia 24 ruiu o primeiro troço de muralha, o que significa que o bombardeamento durou três dias até que tal sucedesse. Mas logo no dia 21, D. Afonso V terá ordenado um primeiro assalto, fracassado, mas que provocou muitas baixas de lado a lado. Nesse dia os Mouros pediram a rendição segundo determinadas condições, que D. Afonso V recusou, reiniciando-se os combates.
Vista do lado Poente do Alcácer de Arzila em 1940, vendo-se a Porta da Traição ou do Albacar e a Torre do Alcaide-Mor. Foto Adolfo Guevara
Nos dias 22 e 23 terão ocorrido pequenas escaramuças, mas no dia 24 ruiu um troço da muralha e uma torre. Nessa altura D. Afonso V deu ordem de ataque generalizado, o qual não partiu de uma acção espontânea de um grupo determinado de soldados.
“Parece-nos que a tese de um rumor ser o responsável pelo ataque decisivo que conquistou Arzila não é credível, sobretudo tendo em conta o relato bem diferente de Jean de Wavrin. Dado o autêntico banho de sangue em que resultaram os vários assaltos a Arzila, com milhares de mortes para ambos os lados, talvez Rui de Pina tenha sentido necessidade de não colocar nas mãos do rei todas essas vidas cristãs perdidas. Por isso, por forma a fazer do rei um matador de muçulmanos mas não o causador da morte de 1700 cristãos, o cronista desenvolveu a tese do rumor, colocando nas mãos de anónimos a culpa de tamanha mortandade. Também por isso Rui de Pina referiu que morreram ao todo 2000 muçulmanos, enquanto ocultou por completo o número de baixas portuguesas ocorridas durante os combates, referindo apenas os pouco mais de 200 homens que morreram afogados ainda durante o desembarque do primeiro dia. De resto, a parcialidade de Rui de Pina é fortemente criticada por um outro cronista, Duarte Nunes de Leão.” (DIAS, 2015, p. 99-100)
Os combates iniciaram-se um pouco por toda a cidade, tendo a determinada altura os Mouros procurado refúgio na Mesquita e na Alcáçova. Conquistada a Mesquita, por ser um alvo mais vulnerável, iniciou-se o ataque à Alcáçova, defendida por Mouros e por alguns Genoveses. Há notícia de um novo pedido de rendição, abortado pelo facto de os sitiados não terem suspendido o combate. A dificuldade da conquista da Alcáçova leva então D. Afonso V a tentar negociar a rendição, sem sucesso. O terceiro assalto teve sucesso, e os defensores foram passados a fio de espada.
“Com Arzila conquistada, começaram as pilhagens – se é que não tinham começado entretanto –, com o rei a declarar que cada combatente poderia ficar com tudo o que conseguisse saquear, num processo conhecido como escala franca, e que já então caía em desuso, dada a barbaridade com que o processo era conduzido, resultando, certamente, em mais mortes de moradores, bem como na violação de mulheres.” (DIAS, 2015, p. 105-106)
Postal antigo vendo-se a Alcáçova de Arzila
Quando ainda se encontrava em Arzila, D. Afonso V recebe a notícia que os habitantes de Tânger, temendo um massacre idêntico, tinham incendiado e abandonado a cidade passados quatro dias. Segundo David Lopes, a conquista de Arzila “encheu de pavor Marrocos, de norte a sul”. (LOPES, [1937] 1989, p. 26)
Após a conquista a cidade, Mulai Ech-Cheikh, que se encontrava em guerra aberta com o sultão de Fez, não querendo manter as hostilidades em duas frentes, celebra com D. Afonso V um acordo de paz válido por vinte anos, vindo posteriormente, já aclamado sultão, a renová-lo por mais dez com o Rei D. João II. Esse acordo incluía a troca das duas mulheres suas aprisionadas pelos portugueses, pelas ossadas do Infante Santo e o envio do seu filho para Lisboa, para aprender a língua e os costumes portugueses. Por esse motivo o filho de Mulai Ech-Cheikh ficou conhecido em Marrocos como L-Bartqiz, o Português, ou Mohammed Al-Burtughali. Como foi referido anteriormente, nas fontes Árabes o filho de Mulai Ech-Cheikh não vai para Lisboa no âmbito do Tratado de Paz de 1471, mas sim na qualidade de prisioneiro. Esta versão é confirmada por Damião de Góis na sua Crónica do Príncipe D. João:
“Cativou mais El-Rey D. Affonso hum seu filho por nome Mafamede, e huma filha, ambos de idade de sete annos, e os trouxe cativos a estes Reynos, onde Mafamede esteve sete annos, a quem os Mouros por saber muito bem a língua Portugueza chamavam Moley Mafamede o Portuguez, o qual sendo já Rey, veyo cercar duas, ou três vezes Arzilla com grande poder, e desejo de a tomar, como lugar de seu nascimento.” (GOIS, [1567] 1724, p. 102)
Fosse como fosse, a verdade é que, após ser aclamado Rei de Fez, revelou-se como o grande opositor à presença portuguesa no país, sendo o autor dos vários cercos impostos a Arzila a partir de 1508.
A passagem sob o antigo Mosteiro de S. Francisco
O acordo não só previa a posse de Arzila e das outras praças por Portugal (Ceuta, Alcácer Ceguer e Tânger), mas incluía também “os lugares e aldeias do campo ou termo dos mesmos”. Apesar da criação desta área de mouros de pazes no país Jebala, a verdade é que Arzila é constantemente atacada, porque o próprio tratado de paz assim o permitia _ “os lugares murados das duas partes, que eram da parte dos mouros de Alcácer Quibir, Tetuão e Xexuão, poderiam continuar a fazer-se guerra, sem quebra do tratado”. (LOPES, [1937] 1989, p. 26)
Esta cláusula do acordo, apesar de parecer absurda, justificava-se porque Mulai Ech-Cheikh não controlava os alcaides dessas cidades, mouriscos expulsos da Península, que faziam da guerra aos portugueses a sua principal actividade. É o caso de Sidi Ali El-Mandari, alcaide de Tetuan e Mulai Ali Berrechid, alcaide de Chefchauen, e do seu filho e filha, Mulai Ibrahim e As-Sayida Al-Hurra.
A cidade no tempo da conquista pelos portugueses era bastante maior do que é o actual recinto muralhado, estendendo-se para o interior do território, e teria cerca de 7.000 habitantes, de acordo com a crónica de Damião de Góis:
“O número de cativos passou de cinco mil (…) Dos Mouros, que se acharão assim na Villa, como na Mesquita, e Castello, morrerão mais de dous mil.” (GOIS, [1567] 1724, p. 112)
Para além da soberania sobre a cidade de Arzila, Portugal, através do dito Tratado de Paz, ficou senhor do Termo de Arzila, que era denominado Reino de Benagorfate, nome de uma serra localizada a Nascente. Bernardo Rodrigues, morador de Arzila, autor da obra Anais de Arzila, escrita durante os 53 anos em que viveu na cidade (1500-1553), dá uma ideia da extensão desse Termo:
“Tãobem este Benagorfate se aparta d’outra serra, que está no nosso campo, que há nome Benamares, que casi se ajuntão ambas, não ficando mais espaço que ua garganta, que nós chamamos a boca de Capanes, da qual já tenho feita menção no feito de Capanes, e ficão tão juntas que muito bem se ouvem e se entendem de ua parte à outra, requerendo ou pedindo o que uns querem aos outros. Pois esta ribeira, que corre polo pé desta serra e que a aparta das outras, vai até se meter na ribeira da Ponte, e decendo por ela, que é asaz grande, vai entrar no rio de Larache, donde foi a Graciosa; e tudo o que estas ribeiras deixão para o campo d’Arzila era sojeito a Benagorfate, em que dizem que avia novecentas aldeas, das quais eu e outros d’Arzila podíamos contar muita parte delas. Tãobem afirmão que neste campo, que são seis legoas derrador d’Arzila, avia passante de dous mil e quinhentos de cavalo.
Pois deste Benagorfate até Benabiziquer, por onde vai a ribeira da Ponte, até Larache e Arzila, indo ao longo do mar até ao rio de Tagadarte, por ele acima indo por o outeiro das Vinhas até dar na Ribeira Grande, que vem de Benarróz e Benahamede, todo o que fica pera o campo tudo fica e entra neste senhorio de Benagorfate.” (RODRIGUES, [156-] 1915, p. 96)
Adolfo Guevara, na sua obra Arcila durante la ocupación portuguesa (XVyXVI), afirma que as cabilas vassalas de Portugal neste território são as actuais tribos de Garbia, Sahel, Bedor, Mezora, Amar, Bedaua, Beni Gorfet, parte de Beri Arós e as a Norte de Jolot e Ahl-Serif. (GUEVARA, 1940, p. 13)
A Ponte sobre o Oued El Makhazen, antigo Rio da Ponte de Bernardo Rodrigues
A Arzila pré-portuguesa teria cerca de 60% de mais área que a actual Arzila muralhada, sendo também encerrada por muralha com torreões e cinco portas, conforme descreveu El-Bekri.
Vários elementos contribuem para a definição do seu perímetro e características gerais, como sejam as investigações no terreno de Adolfo Guevara, que identificaram vários tramos de muralha e torres, a análise da fotografia aérea actual e as próprias representações de Arzila nas Tapeçarias de Pastrana, nas quais se identificam 15 torres, todas hoje desaparecidas, segundo o texto de Asilah, Evolución Urbana de la Ciudad. (ALVAREZ DE LOS CORRALES, LAGOS MARIÑANSKY e GARCIA MARTINEZ, 2001, p. 13)
Das fontes consultadas, apenas duas obras apresentam a reconstituição da Arzila pré-portuguesa, ambas relativamente similares, tendo por base a implantação dos vestígios detectados na fotografia aérea actual e a consequente análise do traçado viário e cadastro. A proposta de José Carlos Babiano Alvarez de los Corrales, Martina Lagos Mariñansky e Federico Garcia Martinez publicada no ano de 2001 (ALVAREZ DE LOS CORRALES, LAGOS MARIÑANSKY e GARCIA MARTINEZ, 2001, p. 55-63) e a proposta de Jorge Correia, publicada em 2008 (CORREIA, 2008, p. 178-179).
A cidade pré-portuguesa teria cercado o dobro da área da Vila Portuguesa, mas aproximadamente quatro vezes a sua população, sendo, portanto, muito mais densamente povoada. O facto de a totalidade da população original ter sido expulsa e os novos habitantes serem muito menos, obrigaria a um processo de redução da sua área, conhecido por atalhamento, que adiante se esclarece. Para além disso, a Arzila pré-portuguesa apresentava uma estrutura urbana muito irregular, de configuração labiríntica, e como tal desadaptada à sua utilização pelos portugueses, integrando dois edifícios de carácter central, a Alcáçova ou Castelo e a Mesquita Maior.
Na fase inicial da ocupação portuguesa da cidade realizam-se obras de reparação dos danos causados durante a sua conquista e da criação das condições essenciais para a sua utilização, como seja a adaptação de vários edifícios civis e religiosos à sua nova função.
Representação da Arzila pré-portuguesa segundo José Carlos Babiano Alvarez de los Corrales, Martina Lagos Mariñansky e Federico Garcia Martinez
Representação da Arzila pré-portuguesa segundo Jorge Correia
Sobreposição da Muralha de Arzila na fotografia aérea da cidade
O tratado de Paz com Portugal é rompido ainda em vida de Mulai Ech-Cheikh, quando no ano de 1500 um seu emissário reúne com o Governador no Facho, principal atalaia exterior da cidade. Nessa altura os portugueses decidem iniciar a reconstrução das defesas de Arzila, prevendo uma futura guerra com o Rei de Fez, que instiga as tribos vizinhas a sublevarem-se e os Mouros de Pazes a deixarem de pagar os seus tributos. Após a morte do Sultão em 1504 e a aclamação do seu filho Mohammed Al-Burtughali, o clima de guerra aberta instala-se.
Os portugueses percebem que a dimensão da cidade era ingovernável, tendo em conta a necessidade de redução drástica da sua população, optando-se por diminuir a sua área para cerca de metade. No ano de 1505 começa a construção de um muro de “atalho”, ligando o Baluarte de Tambalalão ao Baluarte de Santa Cruz.
“Os portugueses optaram pela realização de um atalho que veio cortar a cidade praticamente em duas pates iguais, deixando de fora a metade mais afastada do mar e que se espraiava pela planície. Arzila portuguesa viu-se reduzida a 45% da área islâmica herdada, preservando a faixa litoral imprescindível à estratégia de manutenção da praça. Um novo muro, de pedra e argila, traçava uma secante pelos baluartes que hoje se denominam Tambalalão e Santa Cruz”. (CORREIA, 2008, p. 181)
Representação da Arzila portuguesa após a construção do Atalho, de acordo com os elementos de José Carlos Babiano Alvarez de los Corrales, Martina Lagos Mariñansky e Federico Garcia Martinez
Representação da Arzila portuguesa após a construção do Atalho, de acordo com os elementos de Jorge Correia
Ficavam assim constituídas a Vila Nova, onde se instalam os portugueses conquistadores, e a Vila Velha, onde são colocados os mouros que optam por continuar a viver na cidade, mas que aos poucos vai sendo demolida e os seus habitantes expulsos. Esta intervenção é acompanhada de obras no Castelo e Torre de Menagem, tendo sido intervenientes Álvaro Tristão e Vicente de Avelar, vedores das obras de Arzila, e Rodrigo Anes, mestre das obras dos lugares de Africa. A população da Vila Nova, entre moradores, fronteiros, degredados, comerciantes e escravos, rondaria à época os 500 habitantes.
Em Outubro de 1508, aproveitando a debilidade defensiva provocada pelas obras em curso, Mohammed Al-Burtughali cerca Arzila com o apoio dos alcaides de Tetuan e Chefchauen, Sidi Ali El-Mandari (Almandarim), e Mulai Ali Berrechid (Berraxe), e conquista a cidade, ficando apenas o Castelo nas mãos dos portugueses. O capitão da praça era na altura D. Vasco Coutinho, que é auxiliado pelo seu antecessor, D. João de Meneses, e por uma armada espanhola comandada por Pedro Navarro, conseguindo expulsar as tropas do Rei de Fez. Arzila sofre grandes destruições nas suas muralhas, no casario e na Igreja de S. Bartolomeu, que é incendiada.
O Muro de Atalho e o Fosso num postal antigo
Nesta altura já o muro de atalho estava construído e ainda se encontrava de pé a muralha pré-portuguesa, ou seja, coexistiam as duas muralhas, como atesta Bernardo Rodrigues ao descrever um dos ataques dos Mouros durante o cerco de 1508:
“E como a manhã de sesta feira veio, com grande grita remeterão ao muro com tanta braveza que, posto que logo cairão muitos mortos, porfiávão de chegar uns por cima dos outros, e isto porque o dia dantes avião deixado um baluarte, chamado o Tambalalão, muito furado, ao qual baluarte vinha entestar o muro velho, que, como a vila foi cortada polo meio, estava todo o muro em pé e vinha apegar neste baluarte do Tambalalão, e o muro novo era de pedra e barro, e diante avia ua barbacã; e por o muro velho carregou tanta gente que, como érão muitos os que picavão o muro e baluarte, antes das nove oras do dia derão com o baluarte em terra e com parte do muro, e logo começarão a entrar pela barbacã.” (RODRIGUES, [156-] 1915, p. 11-12)
No ano seguinte dá-se o segundo cerco a Arzila, abortado com a intervenção de uma armada enviada por D. Manuel.
Estes dois cercos vêm comprovar as debilidades das defesas de Arzila e a necessidade de uma intervenção de fundo no recinto muralhado, “levando D. Manuel a tomar a decisão de interromper as obras do Mosteiro dos Jerónimos para que o mestre responsável pelos respectivos trabalhos pudesse orientar as obras de defesa de Arzila (…) Diogo Boitaca é enviado em 1509 para Arzila, levando consigo uma avultada quantia em dinheiro e instruções para fortificar a cidade com muros de pedra e cal, em vez das habituais construções de pedra e barro.” (MATIAS, 2003, p. 68)
Diogo Boitaca permanece um ano na cidade, durante o qual elabora um “um plano global de intervenção assente em três vectores fundamentais para a sustentabilidade e afirmação da praça portuguesa: reforço da cerca, com particular relevo para a muralha do atalho; emergência simbólica do castelo; consolidação urbana da vila”. (CORREIA, 2008, p. 185)
O Baluarte da Couraça e vestígios do Fosso
A chamada Reforma Manuelina introduz nas estruturas defensivas medievais pré-portuguesas os novos conceitos da chamada “arquitectura da transição” (da neurobalística para a pirobalística), adaptando-as às necessidades que as armas de fogo obrigavam.
Neste período o modelo medieval coexiste com as inovações renascentistas, mas os conceitos medievais das construções militares vão sendo abandonados e as fortalezas começam a sofrer modificações para melhor resistirem aos ataques da artilharia. O conceito da defesa ao longo de todo o pano subsiste, mantendo-se adarve e merlões, surgindo as primeiras canhoneiras, situadas a vários níveis para garantir o disparo a longa e curta distância, combinadas com seteiras, troneiras e matacães. Os baluartes começam a esticar-se para o exterior do pano muralhado, procurando aumentar o ângulo de tiro e ganham formas arredondadas para facilitar o ressalto dos projecteis. Surgem os alambores para afastar o assaltante do pano da muralha e evitar as acções de minagem, e o traçado das cercas é quebrado em dentes, criando aberturas laterais para o chamado fogo rasante. A altura das muralhas é reduzida, a sua espessura aumentada e a superfície inclina-se para melhor resistir aos impactos e facilitar os ressaltos.
A Torre de Menagem ou Borj El-Kamra
Durante a sua estada em Arzila, Boitaca inicia pessoalmente algumas das obras, caso da Torre de Menagem (ou Borj El-Kamra), de um conjunto de habitações para moradores e a abertura do fosso, mas a execução das obras é entregue a Francisco Danzilho, que chega a Arzila em 1511. Danzilho, apoiado por uma equipa que incluía o alcaide Simão Correia, começa por reformular o Castelo, intervindo nas construções situadas no seu interior e nos baluartes da Praia e de Santa Cruz, nos quais são abertas canhoneiras. Posteriormente o Muro do Atalho é reformulado, introduzindo-se três quebras no seu traçado, para melhor se adaptar à utilização da artilharia, permitindo o tiro rasante, o Fosso é construído, envolvendo também o Castelo e o tramo sudoeste, e a Porta da Vila é também munida de canhoneiras e de uma ponte levadiça. A Porta da Vila, actual Bab Hauma, era uma porta secundária da cidade, sobretudo utilizada para saída e entrada de tropas para vigilância do campo exterior e para acesso às pequenas hortas existentes ao longo do Atalho, sendo a Porta do Mar ou da Ribeira a porta principal. É também aberta a Porta da Traição ou do Albacar (Al Baqar, ou As Vacas), por onde o gado saía para pastar no campo exterior.
A Porta da Vila
O controlo da Frente de Mar era decisivo para a própria sobrevivência da Praça, permitindo o seu abastecimento e eventual socorro a partir do exterior.
Um elemento fundamental das fortificações portuguesas eram as couraças, tramos de muralha perpendiculares à cintura principal, que se prolongavam até ao mar. As couraças seriam um elemento constante e marcante das fortificações portuguesas em Marrocos, garantindo não só que as manobras de abastecimento se realizassem em segurança, como assegurando o próprio controlo da praia enquanto território vital à sua sobrevivência. Eram assim postos avançados de artilharia sobre o mar e corredores fortificados para cargas e descargas.
“A palavra couraça significa, em termos gerais, uma muralha perpendicular ao muro de uma fortificação, realizada para proteger o abastecimento. Deriva do árabe qawraya, que sabemos se empregava pelo menos desde o século XIII (…) as couraças, como assinala Huici Miranda, protegiam um caminho até um poço ou, como nos diz Robert Ricard, a um rio ou inclusivamente ao mar.” (GOZALBES CRAVIOTO, 1980, p. 365)
Na frente de Mar de Arzila, ou seja, no pano Poente da Muralha, são construídos três baluartes que se projectam sobre a água, vocacionados para a garantia do controle da linha de costa pelos portugueses e para anular qualquer ataque feito a partir do mar. São eles o conjunto Couraça e Baluarte da Couraça, no extremo Sul, o Baluarte da Pata da Aranha, que flanqueia a Porta da Ribeira ou do Mar, no extremo Norte, principal porta de entrada na cidade e de ligação ao porto, e o Baluarte de S. Francisco, que garante uma presença da artilharia a meio do pano da muralha.
A Couraça e o Baluarte da Couraça
O Baluarte de S. Francisco
O Baluarte da Pata da Aranha
Boitaca volta a Arzila em 1514 para fazer a medição dos trabalhos por ele anteriormente preconizados, deparando-se com alguns problemas não previstos, provocados pelo impacto das ondas nas Muralhas, que o levaram a reforçar a base da Torre de Menagem, do Castelo, do Baluarte da Pata da Aranha e da Couraça Nova, esta última reforçada com mais 500 carradas de pedra do que estava previsto. (DIAS, [2000] 2002, p. 102)
O investimento feito em Arzila pelos portugueses foi de grande monta, justificado pela importância económica que a Praça adquire em meados do século XVI, em que a população atinge as duas mil pessoas e o porto adquire uma capacidade para acolher 50 navios. (ALVAREZ DE LOS CORRALES, LAGOS MARIÑANSKY e GARCIA MARTINEZ, 2001, p. 13)
Para além dos tributos pagos pelos Mouros de Pazes e do produto dos saques feitos pelos Almogávares, existia um comércio regular autorizado por ambas as partes, como dá nota Adolfo Guevara:
“Durante todo o tempo, excepto quando o sultão corria a zona, chegavam semanalmente a Arzila, comerciantes mouros e israelitas de Alcácer e cabilenhos de Jebel Habib e Beni Gorfet, trazendo gado, couro, anil, cera, mel, ovos, carvão, manteiga, tâmaras, sáveis, etc, estando autorizado este comércio pelos alcaides respectivos.” (GUEVARA, 1940, p. 55)
Planta das Muralhas de Arzila após a chamada “Reforma Manuelina”
Planta das Muralhas de Arzila de Adolfo Guevara, 1940
Mas a intervenção dos portugueses na cidade não se resumiu aos seus aspectos defensivos, nem se limitou a uma reconstrução do “miolo” intramuros com a manutenção das características pré-existentes. Foi realizada uma operação de reestruturação do tecido urbano, ou seja, uma reorganização do traçado viário e dos conjuntos edificados, racionalizando a transposição das funções para o território, à luz as necessidades funcionais dos seus novos habitantes.
Esta operação urbanística foi possível pelas destruições que o cerco de 1508 provocou no casario, abrindo caminho a uma intervenção de reestruturação da área Nascente intramuros, onde é hoje visível um traçado urbano racional, planeado, de cariz ortogonal, não só adaptado às características de um urbanismo europeu, mas sobretudo de um urbanismo colonial, onde a ordem e disciplina de uma vida militar se sobrepunha a aspectos mais orgânicos de uma vivência civil.
Nesta lógica, a ortogonalidade dos traçados urbanos como forma de estruturar uma praça militar, permitindo conexões rápidas entre os vários sectores do tecido edificado, era também fundamental para a instalação dos principais edifícios públicos. As operações urbanísticas como a que se realizou em Arzila deram um forte contributo para o próprio desenvolvimento dos conceitos do urbanismo moderno.
“O cuidado no tratamento do espaço público surge anotado no relatório de Boitaca, onde se percebe a presença de um chafariz na vila e de calçada no pavimento.” (CORREIA, 2008, p. 197)
A operação urbanística dirigida por Boitaca incluiu a construção de habitações, de umas estrabarias para mais de mil cavalos, a reabilitação da Igreja Matriz, anteriormente dedicada a N. Sra. da Assunção e na altura dedicada a S. Bartolomeu, a Misericórdia e o Convento de S. Francisco, no local onde posteriormente seria edificado o Palácio do Raissouni.
Rede viária e equipamentos
A Vila Nova estrutura-se assim em quarteirões de desenho mais regular, tendo como espinha dorsal a Rua Direita, que atravessa a cidade longitudinalmente em forma de cotovelo, já que o termo direita tem a sua origem em directa, sendo tradicionalmente o eixo fundamental de ligação entre o centro e as hortas, que no caso das Praças de Marrocos ligava invariavelmente a Porta do Mar à Porta da Vila.
A Rua Direita era geralmente um arruamento de traçado irregular, e “o topónimo ‘Direita’ refere-se ao conceito abstracto de direcção” encerrando três aspectos fundamentais, em termos de “qualidade do elemento urbano” – direcção, articulação e atravessamento. (AMADO, 2011, artigo citado)
A Rua Direita era constituída por dois troços perpendiculares, as actuais Rue Attijara e Rua Al Kadiria, de modo a estabelecer a ligação com a Porta da Vila. Este conceito é bastante interessante, já que corrobora a noção de que o termo direita tem o sentido de directa, em termos de ligação funcional.
Estrutura urbana fundamental de Arzila
Esta regularidade de traçado dos quarteirões intervencionados seria revertida, posteriormente ao abandono da cidade pelos portugueses, não no sentido da sua “deformação”, mas na introdução de impasses de acesso às habitações, impasses esses que constituem a verdadeira incompatibilidade entre a cidade europeia e a cidade árabe.
“O labirinto típico da cidade muçulmana mantém-se, mas em seguementos de recta (…) o traçado rectilíneo não é contrário ao ideal muçulmano de cidade. A hierarquização das vias de comunicação, que provoca maior acessibilidade às áreas de trabalho, bem como o recato dos espaços residenciais e a diferenciação das zonas da cidade, consoante as suas funções, constituem a sua verdadeira originalidade.” (GASPAR, 1968, p. 30-31)
Jorge Correia comenta desta forma a questão do impasse enquanto elemento original da cidade árabe:
“Se, numa compreensão mais lata, um sistema viário sinuoso e aparentemente labiríntico concorria para a protecção natural dos habitantes perante uma penetração inimiga, desorientada e surpreendida pela imprevisibilidade dos espaços construídos e vazios, por outro lado, o verdadeiro ‘inimigo’ residia no olhar indiscreto dos vizinhos ou outros moradores. Os valores da privacidade e da intimidade regem a distribuição do espaço não construído, encontrando-se subordinados, em última instância, a uma concepção familiar que se esconde e se desmultiplica em becos, suprimindo ou reduzindo as vistas sobre a via pública, interditando as do vizinho, fechando a casa da violação visual exterior.” (CORREIA, 2008, p. 374-375)
Foram também abertas novas portas na muralha, já em época mais recente.
Designação actual dos elementos da Muralha de Arzila
Arzila viria a ser abandonada no seguimento da conquista de Santa Cruz do Cabo Guer pelos Sádidas, que acontecera em 1541, e após a evacuação de Safim e Azamor no ano de 1542.
“Na verdade, em Agosto de 1549, Luiz de Loureiro fazia o despejo dos moradores de Arzila e em Agosto de 1550 o dos fronteiros e gente de armas.” (LOPES, [1937] 1989, p. 75)
Arzila ainda voltaria à posse portuguesa durante um curto período de 12 anos, entre 1577 e 1589, quando é oferecida a Portugal por Mohammed Al-Mutawakil como adiantamento pela ajuda de D. Sebastião para o reconduzir no trono de Marrocos, no âmbito da participação portuguesa na Batalha de Alcácer-Quibir.
Eu fico muito contente em ler um texto desses, com tantos detalhes, pois sou descendente de algumas pessoas que tiveram ativo envolvimento nesta tomada. Sou descendente do Navegador Antonio Leme, cujo pai, o importantíssimo Martin Lem (Um dos maiores comerciantes de Bruges e da liga hanseatica, teve 5 filhos com uma portuguesa e tinha casa na antiga rua nova dos mercadores) não só financiou Afonso V, como doou uma urca comandada por seu filho Antonio que lutou na tomada de Arzila. Meu ancestral. Tb Afonso V é ancestral por uma outra linhagem! Os leme foram de suma importancia pois financiaram a tomada de CEUTA, ARZILA e outras, ajudaram no povoamento da Ilha da Madeira e foram importantíssimos para a FOrmação do Brasil. Além disso Martin Lem foi braço direito de Maximiliano I e fundou museu de Potterie de Bruges, que existe até hj, assim como sua casa! Orgulho dessa descendencia, assim como da descendêcia da cámara dos lobos! Já fui a Marrocos, mas ainda conhecerei Arzila!
Muito interessante. Quanto a Arzila é digna de ser visitada. O património militar de origem portuguesa na cidade tem estado a ser recuperado
Muito interessante. Fotos deslumbrantes de uma Arzila onde estive várias vezes, nas minhas idas a Marrocos nos anos 1990 e 2000.
Obrigado. É de facto uma cidade muito bonita
Excelente lição de História!
Obrigado
Bom dia
Comigo sempre acho muito interessantes os seus textos. Então este. Gostaria de visitar Arzila de novo porque já faz tempo que a não vejo!
É importante associar a visita á leitura.
Outubro é uma boa altura para uma visita de estudo!
Tambem sou de Historia. Quer que organize? Já tem formas de organizar? Pergunto porque imagino que já o questionaram sobre isto
Obrigada
Vera Castelbranco
Vou responder-lhe por mail se não se importar. O seu e-mail ficou registado no comentário (apenas visível para mim)
Muito Obrigado Excelente e bem fundamentado artigo Com as melhores saudações Armando Rebelo
Eu é que agradeço. Cordiais saudações