O local da antiga Cidadela de Santa Cruz do Cabo de Guer, o Morabito de Sidi Bouknadel e o Pico
A partir do ano de 1505, Portugal inicia a implantação de uma série de fortalezas na costa atlântica de Marrocos, através de um processo de construção expedito e racional, com base na instalação prévia de um castelo de madeira e posterior edificação de uma estrutura de pedra e cal, com recurso a projectos-tipo e materiais pré-fabricados.
A pesar de isoladas fisicamente das praças-fortes, encontravam-se na sua dependência administrativa e contavam com o seu apoio logístico, facto que não evitou que o seu tempo de vida fosse extremamente curto, entre 5 e 10 anos, o que não justificou a sua construção.
Das cinco fortalezas construídas, Santa Cruz do Cabo Guer, Ben Mirao, Castelo Real de Mogador, Castelo de Aguz e Castelo de S. Jorge de Mazagão, houve, no entanto, duas que se mantiveram em mãos portuguesas por um período mais longo, concretamente a Fortaleza de Santa Cruz e o Castelo de S. Jorge, já que evoluíram para cidadelas, adquirindo infraestruturas, meios humanos e logísticos que assim o permitiram.
O Morabito de Sidi Bouknadel e o porto de Agadir
Santa Cruz do Cabo Guer foi a primeira fortaleza a ser construída, no local onde hoje se localiza o porto da cidade de Agadir, correspondendo ao início da ocupação de uma zona cobiçada pelos espanhóis e extremamente importante em termos estratégicos e comerciais.
A Crónica anónima intitulada Este he o origem e começo e cabo da Villa de Santa Cruz do Cabo de Gue d’Agoa de Narba, traduzida e anotada por Pierre Cenival, é o documento que aporta as principais informações sobre esta praça portuguesa no Sul de Marrocos.
Nela é descrito o processo como um nobre de nome João Lopes Sequeira, com o acordo da Coroa Portuguesa, implanta um castelo de madeira, que transporta pré-fabricado desde Portugal, ao redor do qual é construída uma fortaleza de pedra e cal, num local próximo do mar, onde existia uma fonte que lhe assegurava a necessária água:
“Ali assentou e armou ali um castelo de pau que levava já ordenado e feito; pôs-lhe artilharia e fez logo ao redor do castelo outro muito forte de pedra e cal, em que se meteu a fonte dentro, e com artilharia defendia aos mouros que lhe não impedissem a obra.” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, p. 216)
O processo de construção de fortalezas em Marrocos pelos portugueses
Segundo David Lopes, João Lopes Sequeira terá construído o castelo “com o dote de sua mulher” (LOPES, [1937] 1989, p. 28), mas segundo o Acto de venda em 25 de janeiro de 1513, gaveta 15, maço 5, n° 18, in Chronique de Santa-Cruz du Cap de Gué, p. 22, “os arsenais do reino forneceram-lhe um castelo pré-fabricado em madeira, assim como as armas e a artilharia necessária, por um valor de 347.251 reis.”
A referida fonte está na origem do topónimo do local, e de várias formas. Desde logo porque no século XVI a fortaleza é chamada de “Guadanabar” ou “Água de Narba” porque aí existia “uma grande fonte de muito boa água (…) donde vinham a beber muitos gados (…), que pertenciam a um Mouro grão senhor (…) o qual se chamava Ahames Narba, pela qual causa chamavam à fonte d’agua de Narba”(SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, p. 214). Também devido a esta fonte o local passou a denominar-se Founti, onde existiu um bairro destruído pelo terramoto de 1960, e onde actualmente fica o porto da cidade de Agadir. Esta origem do nome founti no português fonte não é consensual, já que a tribo berbere que habitava o local chamava-se Ait Founti, podendo o topónimo ter precisamente essa origem. Aite Funti seria também o nome da mouraria, o bairro indígena que ficaria fora de portas após a construção da vila, e onde os portugueses comerciavam.
O nome dado à fortaleza foi, segundo Damião de Góis, Santa Cruz, segundo o anónimo português que escreveu a Crónica, Santa Cruz do Cabo Gué d’Agoa de Narba, nos documentos franceses, Sainte-Croix du Cap de Gué e Maison des Chrétiens, em Tamazight Tiguemmi n’Irumin ou Aldeia dos Cristãos e em árabe Dar n’Sara ou Dar Roumiya, que significa também Casa dos Cristãos. (DARTOIS, TERRIER e ROUSSAFI, página electrónica citada)
O bairro de Founti em 1905
A Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer foi assim construída junto ao mar, como seria de esperar, para assegurar a sua logística e socorro, e à sombra de uma montanha que os portugueses chamavam Pico, situação que se revelaria desastrosa, já que esse facto foi determinante para a sua queda em 1541.
João Martinho dos Santos refere a propósito da sua implantação que “obedeceu às normas gerais estabelecidas pelos estrategas portugueses, a saber: acesso fácil à praia (para receber apoio externo), abastecimento de água potável, interesse económico do território a ocupar (no caso, rico em cereais e gado, sobretudo), proximidade de uma via fluvial para possível interiorização dos contactos.” (SANTOS, 2007, p. 68)
João Lopes Sequeira não tinha possibilidades de manter o castelo na sua posse e acabou por pedir ajuda ao estado “e este, por fim, comprou-lho por 5.000 cruzados e mais uma tença de 100.000 reais” (LOPES, [1937] 1989, p. 29). Corria o ano de 1513. Entre a sua construção e a venda à coroa portuguesa, Santa Cruz conheceu dois cercos, em 1506 e 1511, levados a cabo pela tribo Haha com o apoio do Xerife Muhammad Al-Qaim, sem consequências de maior para os portugueses, o que revela que a fortificação tinha alguma solidez e bom armamento, apesar de Mohammed Nadir referir que “o governo de João Lopes Sequeira não foi nada fácil. Aliás desde o início houve uma forte resistência. A carta dos habitantes de Massa a D. Manuel, datada de 6 de Julho de 1510, relata esses acontecimentos.” (NADIR, 2007, p. 108)
Gravura de Santa Cruz da Berbéria de 1740, de Martinus Lambrechts, capitão do Zele
Legenda:
1. A nova cidade de Santa Cruz, ocupada pelos mouros, foi chamada Agadir
2. Mesmo por baixo da cidade, a antiga Santa Cruz dos Portugueses permaneceu
3. O Castelo, chamado Founti, onde a cidade vai buscar a sua água
4. O Castelo ocupado por Mulay Anjiet (Xerxês) durante o cerco dos portugueses
5. Enterramento num local vazio, de um árabe chamado Salat, e denominação da mesma casa
6. Três locais de enterramento com o nome de Morabito
7. Túmulos ditos dos cristãos, hoje mantidos por cristãos de cabelos louros
8. O navio de guerra comandado por Martinus Lambrechts
9. Rota dos mercadores
10. Antigo navio mourisco
Gravura de Agadir de 1779, de Peter Haas, incluída na obra “Efterretninger om Marokos og Fes” de Georg Horst, vice-cônsul dinamarquês em Mogador
Quando João Lopes Sequeira vendeu a fortaleza à coroa portuguesa ainda existia o castelo de madeira pré-fabricado, já que fazia parte do rol dos bens vendidos, e também já se encontrava construída a fortificação de pedra e cal que o rodeava.
O primeiro capitão da praça foi D. Francisco de Castro, que a governou entre 1513 e 1521, homem que tinha uma visão muito economicista da sua capitania, o que levou a um grande impulso comercial e das actividades de razia e saque das tribos vizinhas. Durante este período fixaram-se em torno da cidadela tribos, como os Cacimas, com quem os portugueses estabeleceram alianças. Entre 1521 e 1525 governou António Leitão Gambôa, cuja capitania ficou marcada por um relacionamento de paz com Mohammed Ech-Cheik.
O bairro de Founti, provável local da antiga “mouraria” de Santa Cruz
A decadência de Santa Cruz começa com a capitania de Luís Sacoto (1525-1528), que imprudentemente sofreu um revés militar onde perdeu 51 homens, sendo substituído pelo anterior António Leitão Gambôa, que governou dois anos, e que foi assassinado por um mouro a quem roubara uma escrava.
A partir de 1530 começa a equacionar-se o abandono da praça, decadente comercialmente, ameaçada constantemente pelos xerifes e com custos de funcionamento extremamente elevados. Sucederam-se na sua capitania Simão Gonçalves da Costa, Simão Gonçalves da Câmara, Rui Dias de Aguiar, D. Gutierre de Monroy, Luís de Loureiro e finalmente de novo D. Gutierre de Monroy, que a governava à data da sua queda em 1541.
Mas voltemos à caracterização da fortificação em si no tempo em que João Lopes Sequeira a vende à Coroa Portuguesa. Mohammed Nadir descreve-a da seguinte forma:
“Consistia no castelo, cerca, torres, o cubelinho da Igreja e outro cubelo sobre o mar, ligado ao castelo através de um muro baixo, ainda por terminar naquele ano. Havia também alguns aposentos, alcaçarias e portas, ‘Entradas e Saídas’ e ainda uma vila de madeira.” (NADIR, 2007, p. 120)
Vemos assim que Santa Cruz do Cabo Guer nunca foi uma simples fortaleza, mas uma “vila acastelada”, que logo em 1513, quando é vendida à Coroa Portuguesa tinha uma guarnição de “120 cavaleiros (bons) e cerca de 600 peões, em que entravam espingardeiros e besteiros”. (SANTOS, 2007, p. 68)
Imagem do provável local da Cidadela de Santa Cruz, numa foto de 1914
Jorge Correia descreve assim o conjunto do qual a Coroa tomou posse:
“Existia um castelo defendido por uma cerca baixa pontuada por torrelas do lado de terra, visto a frente de mar carecer de uma protecção contra as vagas. Ainda assim, do castelo saía um cubelo sobre a água, em jeito de couraça e unido por muro baixo. Em torno da cerca, um esboço de cava, ainda não revestida, reforçava o perímetro amuralhado. No interior, quer as casas adossadas à cerca, quer a igreja não possuíam cobertura.” (CORREIA, 2008, p. 325)
O feitor Afonso Rodrigues, numa carta enviada a D. Manuel, dava nota da necessidade urgente de realizar obras para a fortalecer e dotar de infraestruturas capazes de acondicionar os mantimentos. Concretamente, Afonso Rodrigues falava em reforçar a muralha do lado do mar, “chapar e contrachapar” a cava, aumentar a altura das muralhas do lado de terra e construir o telhado da capela. (NADIR, 2007, p. 120)
Mohammed Nadir refere que tanto a Crónica como um texto da autoria de Diego de Torres são claros em afirmar que a nomeação de D. Francisco de Castro era “para fazer no castelo uma boa vila, como fez”. (NADIR, 2007, p. 124)
O Morabito de Sidi Bouknadel
O objectivo era que Santa Cruz desempenhasse com eficácia a sua função militar e económica. Uma das obras realizada, foi a transformação da mouraria, extramuros, de bairro de barracas em bairro de construção de alvenaria, para acolher os mouros de pazes, e a construção de uma ponte ligando esse bairro ao castelo, reforçando-se a muralha desse lado, que era o lado Nascente. A capela foi ampliada verticalmente e munida de ameias para colocação de artilharia “fazendo com a torre de menagem um conjunto defensivo do lado da serra.” (NADIR, 2007, p. 128)
A cidadela era de pequena dimensão, sendo dominada pelo castelo “em cujos muros batia o mar” e pela torre de menagem. Tinha cava funda e larga, e várias portas, a maioria das quais do lado do mar. A Crónica refere que num dos muros existiam as Portas do Mar e do Castelo, quase sempre entaipadas “dado o perigo constante”, e que existia também a Porta da Traição, “que era na cava e dava acesso à praia e ao campo”. (NADIR, 2007, p. 130)
Planta de Agadir em 1885 por Jules Erckmann
A fortificação depois de pronta em 1516 tinha 7 cubelos ou torreões:
“O de Tameráque ao norte, que era o mais próximo do castelo, o do facho, o baluarte de S. Simão, o cubelo de baixo dos fornos de cal, o cubelo da banda da mouraria fortemente batido pelo mar, o cubelo do castelo, que caiu em 1533 com uma parte do muro, e o cubelinho sobre a igreja do castelo. Temos ainda referência à Torre do Sino.” (NADIR, 2007, p. 133-134)
Quando D. Manuel I nomeia D. Francisco de Castro capitão da fortaleza, encarrega-o de “fazer uma vila junto ao castelo” (CORREIA, 2008, p. 325), construindo trinta casas para moradores e executando alguns melhoramentos na fortificação, como a torre de menagem e baluartes na muralha. Sobre a vila refere Jorge Correia que “no castelo concentravam-se os principais equipamentos religiosos: a igreja paroquial de S. Salvador, o mosteiro franciscano de S. Sebastião e o hospital da Misericórdia. A sua enumeração parece exagerada para tão exíguo espaço.” (CORREIA, 2008, p. 326)
Em 1534 é nomeado capitão da praça Luís de Loureiro, que empreende importantes melhoramentos na estrutura defensiva, como “a edificação de um forte baluarte, cheio de terra e munido de artilharia grossa, para além da disposição de outras baterias”. (CORREIA, 2008, p. 326)
Planta de Santa Cruz do Cabo Guer
Com base nos elementos da Crónica e dos autores consultados, apresenta-se aquilo que poderia ser a Cidadela de Santa Cruz do Cabo de Guer na década de 30 do século XVI. Esta simulação é apenas uma conjectura, diríamos mesmo especulativa, não tomando em consideração a escala e características do perímetro da Cidadela, mas apenas a sua localização e os elementos da arquitectura militar que a constituíam. A sua implantação no local apontado, resulta do facto de existir documentação que localiza com precisão a fonte, que a Crónica afirma ter sido colocada no interior da primitiva fortaleza construída por João Lopes Sequeira.
Esses elementos são fotos do início do período do Protectorado Francês de Marrocos, tomadas por militares que prestaram serviço na cidade. Em algumas dessas fotos, concretamente nas que de seguida apresentamos, é localizada a fonte no contexto do Bairro de Founti, permitindo determinar onde seria o coração da Cidadela.
Imagens da fonte e instalação na mesma de uma bomba de água
Identificação numa foto do “blockhaus” no interior do qual se localizava a fonte
O exterior do “blockhaus” visto do lado do mar
Imagem na qual é possível distinguir o “blockhaus” do lado esquerdo (as imagens anteriores foram retiradas da página electrónica “Agadir avant le séisme” referenciada na bibliografia)
A falta de informação disponível que resulte de intervenções arqueológicas no local não permite identificar os inúmeros vestígios existentes com as várias épocas de construção, e, no caso concreto, com elementos originais da Cidadela de Santa Cruz do Cabo Guer. Percorrendo a via que se encontra a Sul do local, onde na altura se situava a linha de costa, é possível verificar a existência de elementos de alvenaria de pedra, alguns com características que levam a crer tratar-se de restos de construções de apreciável solidez.
Exemplos de estruturas edificadas existentes no local
Voltemos à História.
Em 1540 começa a construção da Casbah no Pico, prenúncio da decisão Sádida de expulsar os portugueses do local.
No ano seguinte o Xerife Mohammed Ech-Cheikh cerca durante seis meses Santa Cruz do Cabo Guer, que acaba por se render. As forças do Xerife posicionam-se nas encostas do Pico, de onde massacram as posições portuguesas com artilharia. São mortos 1.000 portugueses e feitos 600 prisioneiros, entre os quais o governador, D. Guterre de Monroy e os seus filhos. A sua filha Dona Mecia, cujo marido tinha sido morto durante a o cerco, acaba por se casar com Mohammed Ech-Cheikh, morrendo após dar à luz um filho do Xerife, supostamente envenenada pelas suas outras mulheres. A Crónica relata assim o facto:
“D. Mécia fez-se moura, ’emprenhou e pariu uma filha’, que morreu oito dias depois e a mãe faleceu oito dias depois da filha. Constou que morrera de feitiços que as outras mulheres do xarife lhe fizeram, ‘pelo muito que el Rei lhe queria, e se esquecia delas.” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, pp. 302-304)
O local da Cidadela visto do Pico
Sobre a queda de Santa Cruz refere Mohammed Nadir, com base na Crónica:
“Outro grande exemplo da tolerância religiosa no tempo de guerra é aquando da queda da praça de Santa Cruz do Cabo de Guer nas mãos do xarife Muhammad el-Cheikh e o cativeiro do capitão D. Gutierre de Monroy. O xarife mandou logo libertar o governador, sugerindo-lhe torná-lo um dos seus conselheiros e ajudá-lo a governar os seus reinos e senhorios. O xarife prometeu ainda ao capitão dar-lhe todo o poder para isso, além de metade das suas rendas. Propôs ainda como sinal de grande tolerância islâmica dar-lhe o poder de construir uma igreja e mandar buscar clérigos e frades à metrópole, mas deixando-lhe toda a liberdade de escolha de ficar ou voltar para Portugal. Como o capitão decidiu regressar, o xarife Mohammed el-Cheikh deu-lhe toda a protecção e recusou ficar com o dinheiro do seu resgate enviado por Lisboa.” (NADIR, 2007, p. 146)
O autor da Crónica comenta este facto da seguinte forma:
“Esta fineza fez este rei mouro, a qual ainda não ouvi que rei mouro outro tal fizesse em algum tempo, nem acontecesse outro tal como esta que foi grande liberalidade para rei mouro a um cristão.” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, pp. 312-314)
Gravura do Bairro de Founti. in Bulletin de la Chambre de Commerce et d’Exportation, de Março de 1922
E conclui o autor da crónica:
“Enquanto ela estava por cristãos esteve a praça em pé como chave d’Africa que ela era, e como acabou, acabou-se Africa, como se vê, e tudo se perdeu com a perdição dela; e testemunha disto, do dia da sua perdição a cinco meses, largaram Safim e Azamor e Alcácer Ceguer, e daí a cinco anos largaram Arzila, e não ficou naquela mais que Mazagão à parte de Marrocos, e na de Fez, Ceuta e Tânger. Por esta razão se vê a verdade da vila de Santa Cruz do Cabo de Gué d’Agoa de Narba ser a chave d’Africa e poste dela.” (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007, pp. 314-316)