A Habs Qara ou Prisão Qara de Meknés
“Ser escravizado era uma possibilidade muito real para qualquer pessoa que viajasse no Mediterrâneo, ou que vivesse na costa de lugares como Itália, França, Espanha e Portugal, e até tão a Norte como a Inglaterra e a Islândia”. (DAVIS, 2003, obra citada)
Segundo Robert Davis, só entre os anos de 1530 e 1750 foram feitos cativos pelos corsários turcos e norte-africanos entre 1 milhão e 1,25 milhões de europeus. Apesar de este número ser incomparável aos cerca de 12 milhões de africanos escravizados pelos europeus, a verdade é que os efeitos do corso na costa Sul da Europa foram devastadores, pela insegurança, instabilidade, despovoamento e consequências negativas na actividade económica que causou.
Apenas a título de exemplo, refira-se que em Portugal, para fazer face a esta situação, “el-rei D. Pedro concedeu aos moradores de Lagos o direito de andarem armados (…) a concessão régia deste privilégio dá bem ideia do ambiente de guerra latente que se vivia.” (LOUREIRO, 2008, p. 23)
Corsários de Salé numa foto de 1945
Desde o declínio do Império Romano que os piratas Norte Africanos, conhecidos como piratas da Berbéria, atacavam navios mercantes e povoações costeiras mal defendidas, de forma indiferenciada, buscando apenas o saque que daí obtinham. A partir do século XII a sua actividade ganha outros contornos, já que passa a integrar-se no contexto da guerra entre muçulmanos e cristãos, com o início dos ataques aos navios que transportam os cruzados para a Palestina e ataques às próprias povoações costeiras que lhes davam apoio.
Esta alteração legitima a sua actividade perante as autoridades do Norte de Africa e os piratas passam a ser considerados corsários. As conquistas cristãs no século XIII no Al-Andalus e os êxodos de populações que se lhes seguiram, concretamente nos séculos XV e XVII, com a conquista do Reino de Granada, o estabelecimento da inquisição e a expulsão dos mouriscos, são a principal fonte de recrutamento para a actividade corsária ou corso.
De facto, a guerra aos cristãos levada a cabo pelos Andalusinos acaba por se transferir para o mar, estabelecendo-se muitos dos expulsos em núcleos costeiros de Marrocos, que se tornam autênticos “ninhos” de corsários que atacam permanentemente os navios e as costas da Ibéria. Ficaram célebres os corsários de Salé, Tetuan, Larache, Mamora, Anafé e Oualidia. De entre eles destacaram-se nomes como os de Aicha As-Sayda Al-Hurra, a Senhora Livre, Murad Rais, o Grande Almirante, Khair Ad-Din Barbarossa e o seu irmão Bábá Arouj.
Aicha As-Sayda Al-Hurra, a Senhora Livre, Murad Rais, o Grande Almirante e Khair Ad-Din Barbarossa
As razias dos corsários de Salé às costas portuguesas eram uma constante e as suas rotas de eleição eram “o Cabo da Roca, as Berlengas e o Cabo de S. Vicente” (MAZIANE, 2009, p. 369), onde faziam ataques nas aldeias para o rapto de populações. Frequentemente, nas suas entradas em terra, contavam com a colaboração de mouriscos locais, onde semeavam o terror com a sua habitual indumentária de calças vermelhas e capa branca e o seu grito característico “Cães, rendam-se aos de Salé!” (MAZIANE, 2009, p. 369). A vantagem desta ligação estreita entre o corso e os mouriscos, fossem residentes na Península, fossem integrados nas próprias tripulações corsárias, fica bem patente nesta afirmação de Leila Maziane: “É evidente que o conhecimento prático da costa Ibérica pelos mouriscos tornava tão temíveis os corsários de Salé e Tetuan”. (MAZIANE, 2009, p. 371)
No que se refere ao rapto de populações, o objectivo dos corsários era primordialmente o de conseguir a sua troca por somas de dinheiro, procurando vender os prisioneiros no próprio local de captura, evitando assim o transporte da mercadoria, com todos os custos e riscos que comportava. Para isso mantinham-se nos locais de aprisionamento durante alguns dias, promovendo o pagamento dos resgates por familiares.
Aliás essa preocupação de minimizar danos, não só nos cativos, mas sobretudo nas tripulações dos navios corsários, reflectia-se na própria forma de abordagem e método de captura dos seus ocupantes. Os corsários utilizavam a violência nas suas abordagens de forma inteligente, preferindo sempre a rendição das suas presas a um confronto directo, que podia provocar feridos desnecessários e colocava em risco o valor da própria mercadoria a apresar. Uma táctica muito utilizada era hastear pavilhões de nações amigas da sua presa e conseguir assim uma aproximação segura.
“À gloriosa incerteza do combate, preferiam vítimas desarmadas e pacíficas”. (CASTRIES, 1920, obra citada)
A Casbah Oudaia em Rabat, capital dos Salé Rovers
O negócio dos cativos ultrapassava assim o simples conceito de escravatura, já que envolvia em grande medida a troca de pessoas por quantias avultadas de dinheiro ou por contrapartidas políticas e económicas, contribuindo inclusivamente para a dinamização de algumas economias locais do Norte de Africa, como refere Mhammad Benaboud referindo-se ao papel que teve na cidade de Tetuan, ao afirmar que “das actividades bélicas e comerciais dos primeiros habitantes de Tetuan do século XVI nasceu um importante mercado de escravos. Neste contexto, as masmorras deram origem a um serviço público necessário que formou parte do sistema económico da cidade.” (BENABOUD, 2010, obra citada)
A guerra do corso envolvia montantes astronómicos. Estima-se que só o corso de Salé empregasse nas tripulações da sua armada cerca de 4.000 homens, ou seja, 20% do total da população da cidade, e que o volume de bens apresados e número de cativos fosse enorme. Só entre 1618 e 1624 terão feito 6.000 cativos, atacado mais de 1.000 navios e pilhado 15 milhões de libras de mercadorias num total equivalente a cerca de três mil milhões de euros em moeda actual. (DUMPER, 2007, p. 306)
É claro que no caso português a questão dos cativos não se podia resumir à guerra do corso, já que Portugal travava diariamente em Marrocos uma guerra em torno das Praças-fortes e empreendia acções militares que originavam a captura de prisioneiros, cujo exemplo mais significativo foi a Batalha de Alcácer Quibir, na qual foram feitos cativos 16.000 portugueses.
Marché d’esclaves. pintura de Jean-Léon Gérome, 1866
Os cativos tinham sorte diferente, conforme a sua condição social e o sexo. Os mais ricos eram preferencialmente trocados por avultadas somas de dinheiro, por meio da actividade dos chamados alfaqueques, profissionais do resgate de prisioneiros. As mulheres jovens eram rapidamente vendidas para os haréns. Quanto aos mais pobres, acabavam invariavelmente nas masmorras, sujeitos aos maus tratos e aos trabalhos forçados, ou enviados para as galés como remadores, onde o tempo de sobrevivência era muito reduzido.
Existiam em Marrocos diversas prisões de cativos europeus, com diferente importância ao longo do tempo. As mais conhecidas eram as Masmorras de Tetuan, a Daracana de Fez e a Habs Qara de Meknés, mas também existiam outras com importância significativa em Salé/Rabat, Marraquexe, Anafé, Mamora, Larache ou Oualidia.
As Masmorras de Tetuan. vídeo de Scott Hussey Pailos
As Masmorras de Tetuan eram o destino da grande maioria dos cativos da guerra do corso e da guerra feita em redor das praças do Norte de Marrocos. Foram criadas num complexo subterrâneo formado por um conjunto de grutas naturais situado por baixo do Monte Dersa, onde assenta a Medina e o Ensanche da cidade. Conhecidas pelo nome de Mtamar, termo Árabe que significa lugar de enterramento, as Masmorras são de tal forma extensas e labirínticas que não se conhece a direcção e extensão das suas galerias (BENABOUD, 2010, obra citada). Os acessos ao seu interior encontram-se actualmente encerrados. A origem das Masmorras de Tetuan remonta aos finais do séc. XV e inícios do séc. XVI, quando Sidi Ali Al-Mandari e os refugiados de Granada se instalaram na cidade, assumindo um papel importante como principal lugar de concentração e venda dos cativos ibéricos nos séc. XVI e XVII.
De acordo com Mhammad Benaboud, “as masmorras existiam antes da chegada de Ali Al Mandari como uma rede de grutas subterrâneas naturais. Foram criadas provavelmente porque existem fontes de água subterrâneas em diferentes partes da cidade de Tetuan (…) estas grutas tomaram outro significado a partir da reconstrução de Tetuan pelo seu fundador (…) no início do século XVI, as masmorras foram utilizadas para outros fins como por exemplo, armazéns de trigo, mas sobretudo, pelo menos uma parte da rede foi utilizada como prisão subterrânea”. (CORRALES, 2015, página electrónica citada)
Segundo um relatório escrito por Manuel Gómez Moreno em 1922, que inspecionou nesse ano as masmorras “primitivamente seriam simples escavações arredondadas, feitas na rocha e com buraco de entrada por cima, como era costume em Granada, servindo ora para armazéns, ora para prisão de cativos durante a noite. Consolidado este último destino, eram postas em comunicação umas com as outras por baixo, como hoje se faz, e foram reforçadas e ampliadas com arcos semi-circulares de ladrilho, formando grandes nichos laterais que conferem um aspecto quadrangular a cada escavação.” (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 251)
Planta das Masmorras de Tetuan de Carlos Ovilo e Castelló, 1923
O arqueólogo Mehdi Zouak, citado por Mounir Setu, que escavou o local e encontrou o pavimento original das masmorras, datado através de Carbono 14, como originário do século XVI, “confirma que foram descobertos azulejos dos séculos XV-XVI, ossos de animais, cerâmica e cachimbos dos cativos com selos de Espanha e Portugal”. (SETU, 2015, página electrónica citada)
Leão o Africano refere que numa visita que fez à cidade ter visto “três mil escravos cristãos, todos vestidos com blusas de lã, que dormiam durante a noite acorrentados no fundo de fossos subterrâneos”. E numa outra passagem refere que “Al Mandari tinha três mil cativos cristãos trabalhando todo o dia na fábrica das muralhas e à noite aprisionava-os em fundas masmorras com grossas correntes e algemas nas mãos”. (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 247)
O número de cativos nas masmorras de Tetuan não é consensual nas várias fontes, já que segundo o Padre Contreras, que se deslocou à cidade em 1545 para redenção de cativos fala de 5.000 encarcerados, enquanto uma missão jesuíta portuguesa que em 1548 esteve na cidade para resgate e consolo de cativos refere apenas trezentos. (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 248)
Estas discrepâncias podem ter como explicação o facto de os prisioneiros passarem parte do tempo a realizar trabalhos forçados noutros locais, ou até o facto de os padres não conhecerem a verdadeira extensão das masmorras.
As Masmorras de Tetuan. foto Mhammad Benaboud
Um dos jesuítas portugueses era o Padre Luís Gonçalves da Câmara, que escreveu que “logo naquela noite começámos a dormir nas masmorras (…) depois que se apagaram as candeias, estive eu considerando na minha masmorra quão semelhante aquilo era do inferno, debaixo muito da terra, assim a escuras, uns em cima dos outros; quando bolem consigo, fazem os ferros um ruído e miserável som que reina por aquelas concavidades”. (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 250)
João Nunes Barreto outro dos três jesuítas portugueses assegurou “visitar todos os dias as masmorras, que são seis, visitando os enfermos, confessando e levando-lhes de comer pelas grades”. (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 250)
Cesar Luís Montalbán afirma que, numa inspecção que realizou em 1921, detectou um elemento que indicia a existência de uma capela no seu interior, complementando os vários altares encontrados, construídos já no século XVII. Montalbán afirma ainda que “as suas paredes, caiadas sucessivamente muitas vezes, dão impressão que foram locais habitados assiduamente.” (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 252)
A introdução do culto cristão nas masmorras terá muito provavelmente sido iniciado no seguimento do restabelecimento das missões franciscanas em Marrocos, em 1630, negociadas pelo governo espanhol e o sultão Mulai Abdel Malique. Em 1795 o sultão Mulai Sulaiman “liberta os cativos, supondo-se que, desde então, as masmorras ficaram sem uso permanente e entaipados os altares e nichos.” (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 263)
“A extensão das masmorras actuais não é mais que uma mínima parte da que tinham no seu traçado primitivo. Provavelmente iam sendo fechados compartimentos ou habitáculos à medida que diminuía o número de escravos, ficando apenas, dos últimos séculos, os que se conhecem hoje, reforçados para evitar derrocadas, uma vez que se foi construindo na superfície.” (GOZALBES BUSTO, 1984, p. 258)
A Daracana de Fez ao lado da Bab Es-Seba’ ou Porta do Leão, também conhecida por Porta de Príncipe Português, local onde o corpo do Infante Santo esteve exposto após a sua morte
A Daracana de Fez era o destino mais comum para os prisioneiros militares, local para onde foram muitos dos cativos de Alcácer Quibir.
O Infante Santo também aí esteve encarcerado, mas a Crónica de frei João Álvares, seu tutor e companheiro de cativeiro, libertado dois anos após a sua morte, não dá grandes pistas sobre a verdadeira vida nesta prisão, já que foi escrita por encomenda do infante D. Henrique com objectivos políticos precisos, promovendo a santificação do irmão, apresentando o seu cativeiro como uma decisão divina, tentando desculpabilizá-lo pela traição que lhe fez, ao abandoná-lo na praia de Tânger. Mesmo assim vale a pena transcrever algumas passagens da crónica:
“A prisão sua era esta; quando andavam com o exército no campo, jaziam em troncos pelas pernas e cadeas nas gargantas e algemas nas mãos; o seu ordenado mantimento era uma oitava de farinha, que comessem como quisessem; às vezes lhe davam daquela vianda, a que chamam cuscuz”. (ALVARES, 1730, p. 249)
Frei João refere também que os prisioneiros quando se deslocavam para os locais de trabalho exterior eram normalmente apedrejados e insultados pela população e descreve as condições deploráveis em que eram mantidos, sem verem a luz do sol, vivendo no meio dos dejectos e sofrendo castigos e vexames.
“Seu trabalho ali não era outro senão rezar, e depois buscar-se de piolhos, e pulgas”. (ALVARES, 1730, p. 255)
Vista da Daracana ou Makina junto ao Oued Fès
Num artigo escrito por Maurice Desmazières na década de 30 do século passado e publicado por Georges-Michel, são apresentados dados mais concretos sobre esta prisão, para onde o infante é levado após passar 8 meses à guarda de Salah Ben Salah em Arzila, sendo entregue em Fez ao regente Abu Zakaria, que os portugueses conheciam como Lazeraque.
Segundo Desmazières, Lazeraque foi acometido de grande fúria quando percebeu que D. Fernando não seria trocado por Ceuta e passou a tratá-lo como um prisioneiro comum, negando-lhe inclusivamente um lugar junto dos seus companheiros nos calabouços da Daracana, actual Makina, esperando que esta situação pressionasse Portugal a negociar. (GEORGES-MICHEL, 2015, página electrónica citada)
“Mandou construir de propósito, para o seu prisioneiro, uma estreita célula de tábuas mal juntas, no cimo das muralhas de Fez-Jedid, do lado onde a muralha da Nova Fez olha para a Fez Antiga, segundo a descrição de Diego de Torres, “rescatator” espanhol, ou alfaqueque, que pernoitou em Fez nos meados do século XVI (…) Este caixote muito estreito com apenas um metro quadrado não protegia o prisioneiro nem do calor, nem do frio, nem da chuva, e o infortunado captivo via-se privado do conforto e do consolo que a presença dos seus companheiros lhe teriam dado”. (GEORGES-MICHEL, 2015, página electrónica citada)
Mas Portugal não cedia e D. Fernando acabou por se juntar aos restantes cativos na Daracana. Os escravos eram tratados de forma dura, trabalhando nos fornos de cal e nas fábricas de tijolo de Bab Guissa, cortando madeira ou fazendo trabalhos na forja, mal alimentados e ao som do chicote dos renegados andaluses e granadinos. O Infante trabalhou nos campos e no período final do seu cativeiro foi colocado nos estábulos reais como um dos tratadores dos 1.500 cavalos do Sultão.
Imagem actual da Daracana de Fez. foto Aceras
A Daracana era de facto um complexo que combinava a função de prisão com a de fábrica de serralharia e forja, onde os prisioneiros trabalhavam. Nicolas Perrot refere-se à Daracana no século XVII:
“Existe na nova Fez (Fès Jedid) um grande albergue (Daracana) onde os escravos Cristãos costumam realizar trabalhos em ferro e outras coisas, sob o comando de renegados de Granada, da Andalusia e de outros locais, e fabricam armas e munições.” (PERROT, 1667, p. 171)
No século XVIII, Henri Yule e A. Burnell retomam o texto de Perrot:
“Nesta cidade (Fez) existe um grande edifício a que chamam Daracana, onde os cativos cristãos costumavam fazer trabalhos de ferreiro e outras artes sob a supervisão de renegados…faziam canhões e pólvora, e forjavam espadas, bestas, e arcabuzes”. (YULE e BURNELL, 1886. p. 37)
A actual designação Makina vem do termo máquina, já que o imóvel acabou transformado numa fábrica de tecelagem, carpintaria e fabrica de sabão, cujas máquinas eram movidas pela força motriz das águas do Oued Fès. Em 1938 um incêndio com origem nas caldeiras de fabrico de sabão destruiu parcialmente o edifício, que foi então abandonado. Hoje está num estado deplorável e é utilizado como armazém de apoio ao Festival de Musiques Sacrées de Fès, que se realiza mesmo ao seu lado. (GEORGES-MICHEL, 2015, página electrónica citada)
A Habs Qara de Meknés
Talvez a mais conhecida prisão de Marrocos seja a Habs Qara de Meknés. Segundo consta, foi projectada por um arquitecto português cativo de Mulai Ismail, de nome Cara, e era de tal modo extensa que podia acolher 50.000 cativos simultaneamente. A Habs Qara é um imenso labirinto que se desenvolve num raio de cerca de 7 km e se estende por debaixo de toda a cidade de Moulai Ismail. Com o terramoto de 1755 grande parte arruinou-se. O acesso ao seu interior faz-se actualmente apenas a uma zona muito restrita, por razões de segurança e controlo, já que é um espaço demasiado extenso.
Segundo consta, o arquitecto Cara aceitou fazer o projecto a troco da sua libertação. Afinal a libertação nunca aconteceu e Cara fez o projecto “à borla”, acabando por morrer na prisão que desenhou. Não existem fontes credíveis que falem deste arquitecto Cara, a não ser referências isoladas e que vão passando de boca em boca sem uma base concreta. Constitui assim um verdadeiro mito.
No século XVII era a principal prisão de cativos europeus, que viviam em condições deploráveis, acomodando-se no espaço como podiam, trabalhando durante o dia nos fornos de cal da cidade ou nas ruínas da antiga cidade romana de Volubilis, de onde retiravam mármore para os palácios do sultão Mulai Ismail.
Mulai Ismail parte para a guerra
O final do século XVII é marcado por inúmeras tentativas de fuga da Habs Qara, a maioria das quais falhadas, como relata Ahmed Farouk, com base nos testemunhos do Padre Dominique Busnot, já que essas fugas eram extremamente raras e difíceis de concretizar, sendo a grande maioria dos fugitivos capturados antes de conseguirem um transporte por barco para a Europa. A solução mais viável era conseguir chegar às Praças-fortes nas mãos de portugueses ou espanhóis. Basicamente haviam duas alternativas, ou seja, tentar chegar a Mazagão fazendo o trajecto Meknés-Rabat e depois seguir por caminhos secundários ao longo da costa, ou tentar chegar a Melilla ou Al Hoceima atravessando as montanhas do Rif. Ceuta e Tânger não eram alternativas viáveis, pelo facto de os trajectos serem demasiado perigosos.
As fugas davam-se sobretudo nas meias estações, fugindo ao frio, mas sobretudo ao calor e à necessidade de água que provocava. Aliás era junto aos locais onde a água existia que os perigos eram maiores, não só pelas pessoas que aí afluíam, como pelos muitos leões que nessa altura se encontravam nos campos de Marrocos. Para além disso, “os fugitivos deviam redobrar a atenção porque os informadores estavam de vigia em todos os caminhos que ligavam Meknés às regiões costeiras”. (FAROUK, 2013, p. 4-5)
As fugas faziam-se de forma individual ou em pequenos grupos, com ou sem utilização de guias. Os guias, conhecidos pelo nome de métadores, tinham a grande vantagem de conhecerem o terreno e subornarem guardas e vigias. Mas tinham também a desvantagem de poderem fazer jogo duplo ou denunciarem os fugitivos ao menor sinal de perigo. O sultão punia de forma exemplar os métadores, como forma de desencorajar a sua actividade.
“Este termo é uma deformação do espanhol “metedor”, que significa “contrabandista” (no sentido de aquele que “metia” ou “introduzia” alguma coisa); a “metedoria” era a introdução de mercadorias de contrabando. No caso concreto, o que se “introduzia” em Espanha, era mercadoria humana”. (FAROUK, 2013, p. 7)
A Prisão Portuguesa de Anafé
Leila Maziane, na sua obra “Les captifs européens en terre marocaine aux XVIIe et XVIIIe siècles, fornece importantes dados sobre as características desta população encarcerada durante este período. Segundo a autora, as fontes são contraditórias em relação ao número real de cativos, mas houve sem dúvida períodos em que aumentou consideravelmente, fruto do próprio relacionamento institucional de Marrocos com os vários países europeus e de outros factores, como por exemplo, em 1690, o aumento dos prisioneiros no seguimento da rendição dos presídios espanhóis de Arzila e Larache.
Só na cidade de Salé eram encarceradas anualmente 800 pessoas, mantendo-se um número médio de cativos em cerca de 1.500, correspondentes a 10% da população da cidade, número que atingiu um pico de 3.000 escravos em 1690. Nesse mesmo ano o número de prisioneiros em Meknés aumenta de 1.200 para 2.900. (MAZIANE, 2002, p. 2)
A taxa de mortalidade nas prisões era bastante elevada, sobretudo devido à sub-alimentação, maus tratos e epidemias, mas era consideravelmente atenuada por dois factores _ o resgate e troca de cativos, e a venda de muitos deles para trabalho escravo doméstico. Estes dois factores mantinham o número de cativos encarcerados em situação estável, o que pressupões que, por exemplo, para o caso de Salé, seriam todos os anos resgatados ou morriam cerca de 800 cativos.
O próprio tempo de cativeiro, ditado sobretudo pela capacidade negocial dos alfaqueques, salvou muitas vidas, conforme mostram também as estatísticas referentes ao século XVII _ 70% dos cativos eram libertados em menos de 5 anos, 20% entre 6 e 10 anos, 5% entre 11 e 25 anos e 5% mais de 25 anos. (MAZIANE, 2002, p. 6)
Vista aérea de Meknés vendo-se, do lado direito, a entrada na Habs Qara
Os cativos em Marrocos eram maioritariamente espanhóis, portugueses e franceses, sendo que a média dos portugueses se situava nos 25% do total (MAZIANE, 2002, p. 3). É evidente que este número não se aplica ao período pós Batalha de Alcácer-Quibir, na qual terão sido capturados cerca de 16.000 portugueses, facto que aumentou consideravelmente a sua quantidade.
As condições do cativeiro eram duríssimas até aos finais do século XVII, sendo os prisioneiros atirados para as masmorras e aí deixados à sua sorte, situação que se alterou após a publicação do decreto de 1682 por Mulai Ismail, segundo o qual todos os prisioneiros em Marrocos passaram a ser propriedade do Makhzen (Estado), “não sendo mais vendidos nos mercados como escravos e não sendo mais assim designados; passam a chamar-se cativos e prisioneiros de guerra ou El-Ansara e não escravos”. (MAZIANE, 2002, p. 5)
A publicação deste decreto teve também como consequência que o resgate dos cativos se começou a processar através de negociações Estado a Estado, incluindo trocas de prisioneiros, pagamentos e indeminizações por mercadorias aprisionadas, as ordens religiosas cristãs passaram a ser autorizadas a prestar apoio aos prisioneiros nas prisões e cada nação passou a ter o seu espaço definido, que geria à sua maneira.
O bairro da Mesquita Az-Zaytouna em Meknés
A partir de 1692 os cativos de Meknés são transferidos dos subterrâneos da Habs Qara para o chamado Canut. Leila Maziane descreve assim esta situação:
“Os cativos foram então instalados num bairro em redor da actual mesquita Az-Zaytuna, chamado vulgarmente Canut ou Canot e que designa pequenas cabanas, casinhotos de cativos. Aí o espírito nacionalista readquire os seus direitos, já que cada nação é encarcerada no seu próprio bairro: Espanha, França, Inglaterra, Portugal. Cada comunidade era regida pelas suas próprias leis e tinha o seu chefe ou “majordome” ou “qaid” próprio, responsável pelos seus compatriotas. Um cozinheiro é dispensado do trabalho a fim de poder fazer os trabalhos domésticos. Estavam igualmente dispensados os homens casados que aparentavam ter vivido em família na cidade, os capitães que podiam no entanto ser colocados a trabalhar a partir do momento que era preciso aumentar a pressão diplomática e por fim os religiosos capturados que ficavam livres de exercer o seu ministério e de levar ajuda espiritual aos seus correligionários. Cada nação, excepto a Inglaterra, tinha o seu oratório. Mas a igreja paroquial estava no bairro espanhol. Da mesma forma, cada comunidade tinha o seu próprio hospital apetrechado por colectas feitas entre os cativos ou pelas doações que os soberanos enviavam aos seus súbditos em cativeiro”. (MAZIANE, 2002, p. 5)
Carta Régia de D. Henrique, Cardeal-Rei (1512-1580) sobre o resgate dos cativos da Batalha de Alcácer-Quibir
O resgate de cativos podia seguir diversos procedimentos, dependendo sobretudo dos bens de que dispunham. Os mais ricos compravam a sua libertação mediante um resgate pago, geralmente através dos canais diplomáticos.
Havia também uma situação frequente, que era a do resgate colectivo, fosse por troca de prisioneiros, fosse por pagamento de contrapartidas, em dinheiro, meios navais ou armas. “Em 1693, Portugal efectua o resgate dos seus 130 cativos em Meknés por troca contra 60 prisioneiros marroquinos”. (MAZIANE, 2002, p. 8)
Depois havia a situação da grande maioria dos cativos, sem meios para pagar o resgate, que podiam obter a sua libertação através do trabalho ou beneficiar de um perdão.
Estes processos de resgate eram realizados em missões de redenção, geralmente da responsabilidade de ordens religiosas, os chamados redentoristas, com a intervenção de intermediários, quase sempre judeus, que cobravam somas astronómicas como comissões, que podiam atingir os 40% do valor do resgate. (MAZIANE, 2002, p. 8)
“A troca dos cativos portugueses por cativos marroquinos realizada no ano de 1696 realiza-se pelo adiantamento duma soma de 60.000 piastras por um judeu residente em Amesterdão escolhido pelo tesoureiro do Sultão”. (MAZIANE, 2002, p. 8)
Trabalho na Makina de Fez
A entidade religiosa que em Portugal promovia o resgate de cativos era a Ordem da Santíssima Trindade, que beneficiava para tal de importantes doações régias, tendo sido criados o cargo de Provedor de Cativos e a Arca da Rendição de Cativos, responsáveis por arrecadar as rendas necessárias para os resgates. (ALBERTO, 2010, pp. 66-67 e 75)
A população resgatada pela Ordem da Santíssima Trindade era maioritariamente composta por homens (90%) com média de idade nos 30 anos, um tempo médio de cativeiro de 5 anos, muitos com profissão de marinheiros, e originários sobretudo dos Açores e da região de Lisboa. (ALBERTO, 2010, pp. 321-327)
A guerra do corso foi um chamariz para muitos aventureiros, renegados, marinheiros e comerciantes europeus em busca de fortuna, não só para integrarem as tripulações dos xavecos, navios de eleição dos corsários, como para comercializarem as mercadorias apresadas. Para eles, a adesão ao corso significava um enriquecimento rápido e uma grande ascensão social (MAZIANE, 2009, obra citada). O papel dos renegados europeus, os chamados elches, na guerra do corso e na realização de obras de fortificação era de grande importância, sobretudo pelos seus conhecimentos de construção naval, técnicas de navegação e técnicas de construção militar. Eram sobretudo holandeses e ingleses, mas também muitos espanhóis, portugueses e franceses, como o famoso corsário holandês Murad Rais, o inglês Ahmed El-Inglizi, também conhecido por Ahmed Laalej, o renegado, responsável por importantes obras de fortificação em Rabat e em Essaouira, ou o francês Théodore Cornut, construtor das muralhas de Essaouira. (MAZIANE, 2012, obra citada)
Essaouira, a “bem desenhada”
Otmane Mansouri refere a este propósito:
“Numerosos soldados portugueses foram feitos prisioneiros durante as batalhas contra os exércitos reais portugueses. Tendo em conta o seu número, os portugueses apenas resgatavam os cativos mais nobres. Os que ficavam tornavam-se escravos. Entre esses soldados, havia homens que obtiveram responsabilidades graças às suas competências, que se converteram ao Islão. Um deles, Jaoudar Pacha, célebre oficial do exército Sádida, foi inclusivamente enviado para conquistar o império Songhai do Mali para explorar o ouro do Níger.” (MANSOURI, 2011, p. 33)
A decisão de conversão ao Islão tinha como causa principal a incapacidade de os cativos comprarem a sua liberdade, mas muitos dos renegados eram fugitivos europeus condenados por crimes nos seus países de origem, que em Marrocos tinham a possibilidade de refazer as suas vidas. Para Marc-André Nolet, “os renegados tinham em comum dois elementos chave: eram todos europeus de origem, e cristãos. A sua conversão ao Islão podia contudo ser voluntária ou não, mas em todos os casos acabavam por trabalhar para as autoridades marroquinas. O desenraizamento social destes novos convertidos criava aliás uma nova individualidade”. (NOLET, 2008, p. 19)
Representação da batalha de Alcácer-Quibir publicada por Miguel Leitão de Andrade na obra Miscelânea em 1629
Nolet atribui uma importância capital aos renegados portugueses convertidos após a Batalha de Alcácer Quibir, afirmando que foram utilizados pelo Sultão Ahmed El Mansour na construção do Estado marroquino moderno e na própria garantia da independência de Marrocos face aos turcos e espanhóis:
“Ele utilizou renegados como funcionários, militares, governadores, enfim, como homens para todo o serviço no Estado. Os fundos de que dispôs graças à Batalha dos Três Reis, combinados ao grande número de cativos que resultaram dessa batalha e aos aprisionamentos feitos no mar pelos corsários, deram-lhe uma base sólida para atingir os seus fins. O Estado teve aliás algum sucesso e Marrocos resistiu, do século XV ao século XIX, tanto ao imenso Império Espanhol, como ao imenso Império Otomano. Nenhum dos dois titans conseguiu pôr a mão no país que estava contudo situado entre os dois rivais”. (NOLET, 2008, p. 109)
Entre este conjunto extremamente dispare de pessoas, sobretudo daquelas que se encontravam em trânsito, se assim lhes podemos chamar, fossem corsários, fossem cativos das galés ou das masmorras, fossem ainda comerciantes, desenvolve-se uma linguagem mestiça, chamada Língua Franca, que Jocelyne Dakhlia refere na sua obra Lingua franca. Histoire d’une langue métisse en Méditerranée. Esta língua teria a sua origem nos tempos da presença dos cruzados na Palestina e teria sido transportada para o Mediterrâneo quando as potências europeias desistiram da conquista da Terra Santa.
Mercado de escravas brancas. pintura de Domenico Ross, 1884
A Língua Franca era composta maioritariamente por termos italianos, castelhanos, portugueses e franceses, cerca de 80%, termos árabes e turcos, cerca de 15% e alguns termos de outras línguas como por exemplo o grego, numa percentagem de 5%. Morfologicamente era uma língua sem regras gramaticais, utilizando apenas os pronomes na primeira pessoa do singular e os verbos no infinito. Exemplos (não se apresentam termos do português actual, pela sua evidência) _ No paura, não tenham medo (expressão utilizada nas abordagens para evitar o pânico a bordo); manjar, comer; afaire, negócio; bagatela, ninharia; barbero, medico; besef, muito; combatimento, batalha; cusinar, cozinhar; donar, dar; fame, fome; fantasia, ofensa; fugidor, fugitivo; lavorar, trabalhar; maria, mulher; muchachu, rapaz; mumucho, muito; ordinar, ordenar; papaz, padre; piaga, ferida; querir, desejar; ramar, remar; ratun, rato; secareza, secura; vestimento, roupa. (CORRÉ, 2005, página electrónica citada)
A autora refere que esta linguagem não só permitia um entendimento entre comunidades tão diversas, sendo inclusivamente falada pelos corsários ingleses e holandeses, mas sobretudo constituía uma forma de expressão em momentos de grande conflito e sofrimento, conferindo ao relacionamento entre os seus intervenientes uma extrema frieza e distância. Esta “no man’s langue”, como lhe chama, tinha também como origem o facto de os muçulmanos não aceitarem que os cativos falassem as línguas europeias normais, que não compreendiam, mas também não aceitavam que falassem a língua árabe, a sua língua sagrada.
De acordo com Dakhlia, a Língua Franca é “um modelo de uma mestiçagem como resposta do vencido, de adaptação do colonizado, sem marca identitária própria, sem objectivo de territorialidade, sem soberania no seu uso”. (DAKHLIA, 2008, obra citada)
A língua franca era assim uma língua transitória, que ninguém a considerava como sua, já que se o cativo readquirisse a sua liberdade voltaria a falar a sua verdadeira língua materna, mas se fosse convertido ao Islão passaria a falar a língua árabe.
Alguém se esqueceu de referir que enquanto os maometanos ocuparam parte significativa do sul da Europa (e a totalidade da Península Ibérica) levaram para a África do Norte e Médio Oriente cerca de 3 milhões de escravos europeus. Talvez parte dos escravos feitos no norte de África não fosse mais que resgate de escravos às mãos dos mouros… Mas, parece que só se fala da escravatura feita por europeus, quando em grande parte dos países muçulmanos, a escravatura ainda hoje é uma realidade, se não mesmo uma atividade legal.
Descobrindo por este site, dou-me conta do realismo que a História pouco divulga. Não me interrogo se o pouco que vi (vi pouquíssimo) é verdade, real… Algo em mim gritou que sim, nem me interrogo, e sei que ainda não vi nada. Sou um “jovem” de 70 e muitos… lendo senti-me envelhecer. Vou continuar, mais logo, amanhã, depois… enquanto respirar. Quero ler tudo! Colher reforços para mais abrir os olhos, numa altura da vida em que poderia fechá-los. Dizem que vale mais tarde que nunca. Talvez. A si, desconhecido/a, que lendo viu, e escrevendo divulga, deixo aqui o meu agradecimento. Hoje senti-me outro. Parabéns. Muito obrigado!
Um comentário que não tenho o prazer de receber todos os dias. Muito obrigado.
O blog não é anónimo, tem um autor, e só um, que assina todos os artigos.
Quanto à “verdade”, a história está cheia de manipulações, de textos subjectivos e é frequentemente utilizada para dar uma só visão dos factos, servindo determinados interesses.
Como diz e muito bem, “que lendo viu, e escrevendo divulga”, a busca da tal “verdade” resulta da consulta de todas as fontes possíveis, de ambos os lados dos acontecimentos, sobretudo das crónicas, e da tentativa de as descodificar de modo a transmitir factos pouco divulgados de forma acessível ao cidadão comum.
A História é um Mundo sem fim e fascinante.
só lembrando os europeus, não entravam na África para capturar escravos, eles os compravam de outros africanos
O período inicial da escravatura portuguesa foi em Marrocos com milhares de pessoas escravizadas nos campos marroquinos pelos portugueses e vendidas em Portugal como escravos. Nessa altura não se utilizava sequer a palavra “escravo”, mas “mouro”. Nas primeiras viagens saídas de Lagos a Arguim para capturar escravos eram também os portugueses que raptavam as populações locais. Com o passar dos tempos criou-se de facto um enorme negócio de tráfico de escravos, que eram comercializados nas feitorias com a intervenção de nativos intermediários que vendiam os escravos aos portugueses.
https://historiasdeportugalemarrocos.com/2014/12/28/mouros-negros-e-mouros-pretos/