Músicos de rua em Essaouira
A Darija Marroquina é o dialecto Árabe Magrebino falado correntemente em Marrocos. Apesar de apresentar algumas diferenças regionais, fruto da grande diversidade cultural e geográfica do país, a crescente normalização do modo de vida e a progressiva influência dos média tendem a contribuir para a sua uniformização.
A Darija Marroquina é um dos muitos dialectos falados no Mundo Árabe, com as suas especificidades, resultantes de factores históricos e geográficos. O relacionamento entre as populações dos actuais territórios de Portugal e Marrocos deixou inevitavelmente a sua marca no dialecto Árabe falado em Marrocos, mas a sua percepção não é clara nem se encontra devidamente esclarecida, fruto da falta de um estudo científico e rigoroso sobre o assunto.
Distribuição espacial dos dialectos Árabes. autor Rafy
O nome Darija significa em Árabe linguagem de uso diário, vulgar, dialectal, popular, língua falada (MOSCOSO GARCIA, 2010, pág. 296), considerando-se um dialecto porque tem o seu próprio sistema léxico (vocabulário), sintático (de organização das palavras na frase) e fonético (pronúncia), dentro de uma forma restrita da própria língua árabe.
É um dialecto falado, porque apenas o Árabe Clássico (Al-Arabia Al-Fus’ha) pode ser escrito com o alfabeto Árabe ou alifato, o que significa que a Darija apenas pode ser transcrita com a ajuda do alfabeto latino. Apesar deste facto assiste-se ultimamente em Marrocos à generalização da escrita da Darija com o alfabeto árabe, uma espécie de aljamiação da Darija, facto que merece a maior contestação por parte dos sectores mais eruditos da sociedade, que a consideram um abastardamento da Língua Árabe e uma descida do nível do seu ensino, já que ocorre inclusivamente nas escolas.
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Sendo a Darija escrita com o alfabeto latino, a desadequação das consoantes latinas à fonética árabe é solucionada através de artifícios para exprimir fonemas inexistentes no Latim, como sejam a utilização de algarismos, de duplas consoantes ou de símbolos associados, como acentos ou pontos.
Ao nível da pronúncia das palavras árabes, a Darija introduz alterações tipificadas, sobretudo baseadas na simplificação, como sejam a anulação das vogais fechadas, a troca da posição das vogais com as consoantes, quando estas são consoantes enfáticas, ou a introdução das consoantes E e O, nos casos em que as consoantes A e U são fechadas.
Dança mourisca. Desenho de Christoph Weiditz, 1529
Para a generalidade dos autores consultados, a formação da Darija resulta de influências introduzidas em quatro situações históricas principais:
A primeira, com alterações na sua pronúncia e em alguns aspectos gramaticais, através da influência das várias línguas Tamazight, situação que se vem processando desde a conquista do Magrebe no século VII pelos Árabes.
A segunda resulta da influência do Árabe Andalusino e em menor escala do Hebreu, operada no período da expulsão dos Mouriscos e Judeus Sefarditas da Península.
A terceira resulta da adopção de vocábulos do Francês e Espanhol, durante a primeira metade do século XX, com o estabelecimento dos protectorados, referindo-se sobretudo a termos do dia-a-dia.
A quarta resulta da importação de termos científicos ou técnicos, principalmente ingleses.
Esta posição não considera o papel importante que tiveram as migrações de expulsos pela inquisição na introdução de termos do português e do espanhol em Marrocos, nem sobretudo da influência que os 354 anos de presença portuguesa no país teve.
Placa toponímica portuguesa na Cidadela de Mazagão
Mas para Selma El Maadani “a Darija, como inúmeras línguas no mundo, transporta as marcas memoriais de toda a História do país, entre outros, os contactos entre as variantes do amazigh, a importante base árabe do Oriente (…) bem como o da Andalusia muçulmana, o hebreu, as línguas da península Ibérica e o francês”. (EL MAADANI, 2012, pág. 33)
Segundo esta autora, a base da Darija tem inequivocamente um substracto árabe e berbere, mas ao qual “se acrescentam as múltiplas marcas do francês, espanhol, português e mesmo inglês”. (EL MAADANI, 2012, pág. 35)
A base árabe tem origem na língua falada nas antigas capitais, Damasco e Bagdade, trazida durante a islamização de Marrocos no século VII durante a conquista de Oqba Ibn Nafi, mas também nos dialectos beduínos trazidos pelos nómadas Banu Hilal e Banu Maaqil que chegaram a Marrocos vindos do Yemen no seculo XI.
As influências ibéricas (e hebraicas) viriam do período da expulsão dos mouriscos e judeus da península, e o francês sobretudo do período colonial. A influência francesa é maioritariamente urbana e referente a termos relacionados com inovações técnicas.
Placa indicativa da Catedral portuguesa de Safim
É inegável que a Darija Marroquina tem também influência portuguesa, que data do período do estabelecimento da praças-fortes de Portugal na costa de Marrocos a partir do século XV, período esse que coincidiu com a expulsão dos mouriscos de Portugal. Ou seja, entre os séculos XV e XVIII, a língua portuguesa chega a Marrocos por via dos portugueses muçulmanos e judeus expulsos e por via dos fronteiros e habitantes portugueses das praças-fortes estabelecidas por Portugal na costa marroquina.
Othmane Mansouri refere que “quando os portugueses abandonaram as suas fronteiras, levaram tudo com eles. No entanto existem nas línguas portuguesa e marroquina influências cruzadas. Mesmo havendo ainda estudos desenvolvidos, podemos constatar que existem numerosas palavras, como ‘fechta’ (festa) que são idênticas nas duas línguas”. (CHAUDIER, 2011, página electrónica citada)
Mansouri é um dos poucos autores consultados que associa a influência do português na Darija ao período da ocupação portuguesa da costa de Marrocos.
Os campos da Duquela
Se bem que durante a maior parte do tempo as praças portuguesas em Marrocos vivessem sob um clima de guerra, houve sempre contactos com os habitantes das áreas circundantes, sobretudo com os chamados mouros de pazes, com quem vigoraram acordos e se estabeleceram relações de vassalagem com a coroa portuguesa durante longos períodos.
É sabido que muitos mouros de pazes da Duquela falavam português fluentemente, como atestam as cartas enviadas pelo alcaide Yahya Bentafuft a D. Manuel I escritas em português aljamiado, já que os mouros falavam o português mas não o sabiam escrever, utilizando o alfabeto árabe.
Há inclusivamente relatos de uma convivência de boa vizinhança entre os governantes de algumas das praças, caso de Arzila, e as autoridades das cidades vizinhas, mesmo em alturas de conflito, conforme atestam os escritos de Bernardo Rodrigues. (RODRIGUES, [156-] 1915, obra citada)
A muralha de Arzila
A descrição de Bernardo Rodrigues da visita de cavaleiros mouros à muralha de Arzila é esclarecedora da presença de portugueses (mouriscos) entre as suas fileiras:
“Os primeiros que tomaram o caminho da praia não vinham muito afoutos, parecendo-lhes mais um sonho que verdade. Era, todavia, bem verdade, e, seguros que nenhuns perigos corriam, vieram em muito grande número, talvez mais de 4.000 de cavalo, e rodearam toda a vila a examinar o muro e a cava. Até alguns mouros mais atrevidos, que falavam português ou castelhano, vendo a janela dos aposentos da condessa e do Miradouro repletas de mulheres, que os observavam, puseram-se a gracejar com elas, modo muito peninsular de galanteio que o tempo não conseguiu fazer esquecer ainda.” (RODRIGUES, [156-] 1915, p. 464-470) (LOPES, 1925, p. 272-279)
Será difícil em muitos casos determinar a origem portuguesa ou espanhola de alguns termos, nomeadamente os que provêm das migrações dos mouriscos, mas sobretudo os que chegaram à Darija via Língua Franca, pelo seu carácter de língua híbrida e mesclada.
Não há também uma referência clara a uma influência da Língua Franca na Darija, mas parece pouco lógico que não exista, e o facto de muitos termos portugueses, espanhóis e mesmo italianos serem tão similares poderá originar uma diluição dos termos por meio da sua uniformização.
O Mar das Éguas ou Golfo dos Algarves visto de satélite
A Língua Franca foi uma fala utilizada por um conjunto extremamente dispare de pessoas, sobretudo daquelas que se encontravam em trânsito entre as duas margens do Mediterrâneo e do Mar dos Algarves entre os séculos XV e XVIII, fossem corsários, fossem cativos das galés ou das masmorras, fossem ainda comerciantes. Era uma linguagem mestiça, composta maioritariamente por termos italianos, castelhanos, portugueses e franceses, em cerca de 80%, termos árabes e turcos, em cerca de 15% e alguns termos de outras línguas como por exemplo o grego, numa percentagem de 5%. Morfologicamente era uma língua sem regras gramaticais, utilizando apenas os pronomes na primeira pessoa do singular e os verbos no infinito.
Jocelyne Dakhlia refere que esta linguagem não só permitia um entendimento entre comunidades tão diversas, sendo inclusivamente falada pelos corsários ingleses e holandeses, mas sobretudo constituía uma forma de expressão em momentos de grande conflito e sofrimento, conferindo ao relacionamento entre os seus intervenientes uma extrema frieza e distância. Esta “no man’s langue”, como lhe chama, tinha também como origem o facto de os muçulmanos não aceitarem que os cativos falassem as línguas europeias normais, que não compreendiam, mas também não aceitavam que falassem a língua árabe, a sua língua sagrada.
De acordo com Dakhlia, a Língua Franca é “um modelo de uma mestiçagem como resposta do vencido, de adaptação do colonizado, sem marca identitária própria, sem objectivo de territorialidade, sem soberania no seu uso”. (DAKHLIA, 2008, obra citada)
No seu Glossário de Língua franca, Alain Corré apresenta inúmeros termos portugueses utilizados por esta língua mestiça.
Placas toponímicas da Cidadela de Mazagão
Infelizmente não existe um levantamento aprofundado sobre os termos portugueses que integram a Darija Marroquina, sendo bastante comum atribuir muitos deles à influência espanhola. No entanto, nas zonas onde a permanência portuguesa foi mais longa e enraizada, como na região de Tânger e Arzila e na chamada Duquela, concretamente na costa Atlântica entre Azamor e Safim, incluindo Mazagão e Oualidia, a influência do português é mais evidente, subsistindo alguns vocábulos, sobretudo entre os habitantes mais antigos e de origem rural.
Alguns dos que apresentamos como exemplo referem-se a palavras cuja similaridade com o português é por demais evidente, apesar de terem um caracter essencialmente especulativo, no sentido de que não encontrámos nenhum trabalho credível de estudo da influência do português na Darija marroquina, trabalho esse seria bastante interessante realizar. Existem outros termos que deverão ser associados ao português, não só pela similaridade, como por se referirem a especificidades da vida portuguesa em Marrocos, como a alimentação à base de biscoito ou a pesca com recurso a pesqueiras:
Bagado (advogado), Barato (barato), Barco (barco), Berraka (barraca), Billacho (palhaço), Bisketo (biscoito), Borro (alho-porro), Borro (burro), Buskeda ou Bouskida (pesqueira, sistema de pesca utilizado em Mazagão, baseado na construção de muros de pedra que permitem a entrada de peixe na maré alta e os retém no interior na maré baixa), Brassa (praça), Capa (capa), Capicho (capucho), Capote (capote), Chatamata (mulher chata, de “chata de matar”), Chkama (escama), Chkouadra (esquerda), Cochta (costa), Cuzina (cozinha), Diel, Diela (dele, dela), Dutur (doutor), Fabor (favor, borla), Fargata (fragata), Fechta (festa), Gamila (gamela, tacho), Garro (cigarro), Manta (manta), Mario (armário), Miziria (miséria), Qabeta (gaveta), Qamija (camisa), Carro (carro), Carrossa (carrossa), Randa (renda), Ranjo (gancho, no sentido de pessoa retorcida), Ricibou (recibo), Rolo (rolo), Ruina (ruína), Sabate (sapato), Saia (saia), Scouila (escola), Simana (semana) ou Varanda (varanda).
Como conclusão diremos que a influência do português na Darija marroquina se encontra bastante desvalorizada, não figurando na maioria dos trabalhos consultados sequer uma referência aos 354 anos de presença portuguesa em Marrocos. Por outro lado, a generalidade dos autores considera que a influência peninsular mourisca em Marrocos é espanhola, situação no mínimo estranha, tendo em conta o reconhecido mérito das suas investigações.
Gosto da temática do seu blog. Estou a lê-lo aos poucos. Hoje resolvi deixar “marca”.
Como sempre os académicos das universidades portuguesas não parecem se interessar… Cabe-nos a nós valorizar o que deixámos pelo mundo.
Parabéns e obrigado pelo blog.
João Ferreira
Caro João
O meio universitário português é extremamente competitivo, elitista e direi mesmo, num sentido figurado, “racista”, desprezando muito do trabalho que pessoas que não estão nesse meio desenvolvem. A imagem que passa para muita gente é o contrário daquela que deveria ser, enquanto fonte de saber, investigação e da sua divulgação. Para além disso, e sem deixar de reconhecer que o conhecimento vem sobretudo da investigação feita nas universidades, esse conhecimento não contribui directamente para a cultura do cidadão comum, simplesmente porque não chega ao cidadão comum, nem é realizado de modo a que o cidadão comum o entenda.
Cumprimentos
Tem razão no que diz. Vivo em Inglaterra há 20 anos e aqui é possível encontrar obras para o publico feitas por brilhantes universitários. Pena qu assim não se proceda em Portugal.
Força e continue com o blog porque é de facto de muito interesse.
Abraços
Seria injusto da minha parte dizer que em Portugal não existem obras de grande qualidade da autoria de universitários acessíveis ao cidadão comum. O que digo é que o meio universitário cá na terra é muito mesquinho, fechado e demasiado provinciano.
‘Cmis’,também anda pela India.