O morabito de Sidi Chachkal junto ao Cabo Beddouza
As Praças-fortes portuguesas em Marrocos encontravam-se isoladas, rodeadas de inimigos, dependendo da metrópole ao nível dos abastecimentos. Portugal fazia esforços para celebrar acordos com os mouros que habitavam as áreas circundantes, garantindo-lhes protecção. Em troca, assegurava um clima de paz e cobrava tributos em espécie, principalmente em cereais e gado. No Norte de Marrocos, o poder centralizado no sultão de Fez permitiu o estabelecimento de alguns acordos duradouros, mas no Sul, a autonomia política das tribos originou um clima de guerra quase permanente.
As tribos que aceitavam a vassalagem à coroa portuguesa eram chamadas de “Mouros de Pazes”. E apesar do facto de no Sul de Marrocos a “conversão” dos mouros de pazes ser mais difícil, vigorou durante seis anos um acordo com as tribos da chamada região da Duquela, que trouxe para o lado de Portugal um imenso território com alguns milhares de quilómetros quadrados, só possível pela ousadia do capitão da Praça de Safim Nuno Fernandes de Ataíde, a quem os mouros chamavam “o nunca está quedo”, e da sua aliança com o alcaide mouro Yahya Bentafuft.
Os campos da Duquela
A posse das duas principais cidades da região pelos portugueses, Safim e Azamor, inicia-se com o estabelecimento de uma relação de vassalagem à coroa portuguesa, no seguimento de um pedido formulado pelas autoridades locais, ao que se seguiu a ocupação efectiva, aproveitando desavenças no seio da população. Safim era vassala de Portugal desde a tomada de Arzila, sendo ocupada em 1508 por Diogo de Azambuja, e Azamor torna-se vassala em 1486, sendo conquistada em 1513 por D. Jaime Duque de Bragança.
Em 1510 é nomeado capitão de Safim Nuno Fernandes de Ataíde, conhecido pelos mouros como “o nunca está quedo”. A sua governação da cidade durou seis anos, durante os quais a sua ousadia e determinação permitiram estabelecer acordos de paz com grande parte das tribos das regiões das actuais Doukkala-Abda-Suss, trazendo para a esfera de Portugal um território de vários milhares de quilómetros quadrados, que constituiu um verdadeiro protectorado.
O Protectorado da Duquela
“A sua capitania é a página mais assombrosa da história luso-marroquina; foram seis anos de vida trepidante de cavalgadas e combates; (…) ele e os seus companheiros foram que fizeram do nome português sinónimo de bravura e lhe criaram essa auréola que ainda tem naquele país.” (LOPES, 1989, pág. 31)
Nesta enorme zona de mouros de pazes, criada não só pelas grandes vitórias militares de Ataíde, como pela sua aliança com o alcaide mouro Bentafuft, os portugueses tributavam os seus habitantes em cereais e gado e incentivavam o comércio, garantindo uma viabilidade económica das praças da região.
Gravura de Safim no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
Nuno Fernandes de Ataíde, senhor de Penacova, foi Alcaide-mor de Alvor, camareiro do príncipe D. João e capitão de Safim. Em Alvor tinha salinas concedidas por D. Manuel, segundo escritura lavrada pelo escrivão do almoxarifado de Lagos.
Ao aceitar o cargo de capitão de Safim em 1510, nomeia Lopo Barriga seu “adail” ou comandante das tropas da praça, com quem partilhará as inúmeras aventuras que irá viver. Lopo Barriga torna-se famoso pelos feitos heróicos que lhe são atribuídos, fama que aumentaria ainda mais após ser feito prisioneiro. “O adail de Safim tinha tal fama de bravura que havia mouros que faziam viagens de propósito para o ver enquanto este esteve cativo, e quando se lançava alguma maldição a alguém sublinhava-se com a frase “lançadas de Lopo Barriga te colham!” (JORNAL PANORAMA, 1840, pág. 63)
Muitos são os feitos atribuídos a Ataíde, como uma correria que fez até às portas da cidade de Almedina, no regresso da qual é atacado por duas vezes por mouros em número muito superior, que vence.
As muralhas de Safim
Um ano após a tomada de Azamor, o sultão de Fez marcha sobre a cidade com uma força de 7.000 homens, 4.000 dos quais a cavalo. Os portugueses organizam um exército para os defrontar, composto por tropas de D. João de Meneses, capitão de Azamor, num total de 1.800 homens a cavalo e a pé, 50 cavaleiros de Martim Afonso de Melo Coutinho, capitão de Mazagão e 400 lanças de Nuno Fernandes de Ataíde, aos quais se juntaram outros homens comandados por Fernão Caldeira, “adail” de Arzila e 2.000 mouros de pazes comandados por Yahya Bentafuft. Trava-se a batalha de Boulaouane ou “Dos Alcaides”, na qual as forças do sultão de Fez são aniquiladas.
Mas a mais fantástica proeza de Ataíde foi uma correria à cidade de Marraquexe, para a qual reuniu 3.000 cavaleiros, na sua maioria mouros de pazes. A decisão de Ataíde foi em grande parte motivada por uma incursão semelhante realizada nesse mesmo ano de 1514 por Diogo Lopes, “almocadém”, ou comandante militar de Safim, que “com cerca de 500 mouros de pazes de cavalo e alguns portugueses, teve a ideia de ir raziar o campo da cidade, como foi, de facto, e alguns mouros mais atrevidos chegaram a aproximar-se das portas dela e deram com os contos das suas lanças nela, bradando: “Viva el-rei D. Manuel, nosso senhor!” (LOPES, 1989, pág. 32)
O jardim da Menara em Marraquexe
Ataíde não quis ficar atrás. Os homens de Ataíde partiram de Azamor e Safim a 21 de Abril e chegaram às margens do Rio Tensift dois dias depois. Nesse dia 23 de Abril envolveram-se em escaramuças com os defensores da cidade junto às portas de Bab El Khemis e Bab Debagh, situadas no lado Nordeste das Muralhas. As escaramuças provocaram mortos e feridos de ambos os lados e duraram quatro horas, após o que os portugueses retiraram para não se deixarem cercar. O caminho de volta durou outros dois dias, “não sem perigo, porque a sua retaguarda foi perseguida durante muito tempo.” (LOPES, 1989, pág. 32)
O Dar As-Sultan ou Castelo de Terra de Safim
Nuno Fernandes de Ataíde morreu em 1516. Segundo alguns, em combate, segundo outros, no seguimento de uma ferida provocada por uma zagaia.
Segundo Frei João de Sousa, Ataíde foi morto quando acudiu aos mouros da tribo Benamita, mouros de pazes, quando estes foram atacados pelos Uleidamarán _ “Depois de ter vencido os da cabila de Uleidamarán, vinha Nuno Fernandes na retaguarda do despojo, que era imenso, além de muitos escravos, entre os quais vinha uma Moura muito formosa, desposada de poucos dias com Rahu ben Xamut. Este não podendo sofrer tal injuria, seguiu a Nuno Fernandes com tanto esforço, que o matou, e livrou a sua esposa.” (SOUSA, 1790, pág. 135)
Escudo português na fachada do Castelo do Alto de Safim
Após a morte de Ataíde, Yahya Bentafuft ocupa o cargo de “alcaide da Duquela”, apesar da desconfiança que tanto cristãos como mouros sentiam por ele. “O seu ressentimento aparece em muitas das suas cartas; em muitas, também, o seu desânimo, por se ver vítima inocente. Numa delas diz: “Os mouros dizem que sou cristão e os cristãos dizem que sou mouro…” (LOPES, 1989, pág. 34)
O grande obstáculo à manutenção e alargamento das zonas de mouros de pazes estava nos próprios portugueses, a quem a paz não trazia proveitos, já que inviabilizava os saques, como refere Bentafuft numa outra carta em escrita “aljamiada” enviada ao rei D. Manuel:
“…o capitão e os cavaleiros que cá estão não querem paz, senão guerra, e isto fazem por não terem nenhum proveito da paz, nem do serviço que eu faço, por não terem que tomar, nem que repartir; e por este respeito todos me querem fazer mais mal do que podem.” (LOPES, 1989, pág. 34)
O Castelo de Terra de Safim
A morte de Ataíde em 1516 e o assassinato de Bentafuft dois anos depois têm consequências decisivas na unidade dos mouros de pazes da Duquela e o protectorado começa a desmoronar-se. Paralelamente, o crescente poder dos Xerifes começa também a ameaçar directamente as praças do Sul e a cativar para o seu lado muitas das tribos dos mouros de pazes.
A vigilância passa a fazer-se cada vez de forma mais rigorosa, ficando os cavalos selados toda a noite para qualquer eventualidade. A vigilância dos terrenos circundantes fazia-se através de operações diárias, como relata um viajante francês que esteve em Mazagão:
“…Todos os dias de manhã saem de Mazagão cerca de 40 de cavalo que vão descobrir o campo e nele ficam até o meio-dia; e depois desta hora saem outros 40 que só voltam à tardinha. Seis deles, chamados atalaias, tomam lugar em postos afastados e ficam de vigia; e, se eles descobrem qualquer coisa de suspeito, recuam rapidamente e, visto este movimento da vigia da povoação, dá logo duas ou três badaladas, ao mesmo tempo que os outros de cavalo correm na direcção da atalaia em perigo. Para dar sinal à Praça há em todos os lugares, onde as atalaias se postam, um grande pau de madeira de mastro, ao alto do qual içam com uma corda uma espécie de bandeira, que é o aviso para os moradores se armarem.” (LOPES, 1989, pág. 42)
A Duquela na zona do Cabo Beddouza
O rapto e cobrança de resgates dos cativos é uma actividade comum e lucrativa nos terrenos de cultivo circundantes e simples actividades como a apanha de lenha tornam-se num perigo diário. “Este é o contínuo exercício dos habitantes de Mazagão, de que são tantas as batalhas como os dias; porque apenas haverá um em que não haja um choque, uma escaramuça, uma emboscada, um assalto, uma batalha…” (LOPES, 1989, pág. 43)
O estado de guerra permanente estava instalado e só terminaria com o abandono das praças pelos portugueses.
Bibliografia:
FARINHA, António Dias. “Os Portugueses em Marrocos”. Instituto Camões. 1999
LOPES, David. “A Expansão em Marrocos”. Editorial Teorema, Lisboa, 1989 (Publicação original BAIÃO, António, CIDADE, Hernâni e MURIAS, Manuel . “História da Expansão Portuguesa no Mundo, 3 vols. Editorial Ática. Lisboa, 1937)
PANORAMA, Jornal Literário e Instructivo da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis. “O Famoso Adaíl Lopo Barriga”. Tomo IV, vol. 3. Fevereiro, 1840
SANTOS, João Marinho dos, “Portugal e Marrocos – Da Confrontação à Cooperação”, in SANTOS, João Marinho dos, SILVA, José Manuel Azevedo e, NADIR, Mohammed. “Santa Cruz do Cabo de Gue D’Agoa de Narba”. Estudo e Crónica, Viseu, Palimage Editores e Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2007
SOUSA, Frei João de. “Documentos Arabicos”. Academia Real das Sciências de Lisboa, 1790
Assunto muitissimo interessante .
A história de Ataíde é surpreendente. Como em tão pouco tempo se fez tão grande façanha!