Dois dos torreões do muro de atalho Poente da Muralha de Tânger
A Muralha foi o elemento fundamental do processo de apropriação das cidades de Marrocos por Portugal e sua transformação em Praças-fortes. Foi através da Muralha que as cidades foram redimensionadas, estruturadas e defendidas, garantindo a sobrevivência do poder da Coroa Portuguesa nessas ilhas implantadas num mar tempestuoso e a segurança das suas guarnições e habitantes.
A Muralha, entendida como um conjunto de estruturas defensivas em permanente evolução, num período da história da arquitectura militar em que as armas de arremesso mecânico foram substituídas pelas armas de fogo, alterando profundamente as técnicas de defesa e de ataque, ultrapassou nas Praças de Marrocos o simples conceito de limite entre dois territórios, tornando-se num instrumento de gestão da vida no seu interior e da forma como se relacionava com os territórios envolventes, fosse a Terra, fosse o Mar.
A Baía de Tânger
Quando os portugueses entraram em Tânger no ano de 1471, encontraram uma cidade deserta, abandonada pelos seus habitantes, receosos de sofrer um massacre semelhante ao cometido pelas tropas lusas em Arzila, pouco tempo antes.
Como escreveu David Lopes, “a tomada de Arzila encheu de pavor Marrocos, de norte a sul”. (LOPES, [1937] 1989, p. 26)
Tânger era uma cidade de grande dimensão, situação que os portugueses confirmaram durante a tentativa falhada de a tomar em 1437, na qual não a conseguiram cercar devido ao seu extenso perímetro. Teria, de acordo com os elementos apresentados por Jorge Correia (CORREIA, 2008, obra citada), cerca de 80 hectares de área e era densamente povoada.
“Em 1437, a tentativa de tomada por parte de D. Duarte confirmaria as classificações de grandeza e densidade populacional da cidade, reconhecendo-se a assimetria em recursos humanos e a consequente impossibilidade de cercar completamente a cidade e combater as forças inimigas, quer as residentes, quer as que pudessem acorrer em socorro da praça.” (CORREIA, 2008, p. 209)
Esquema de apropriação de Tânger pelos portugueses. Fonte Jorge Correia
A viabilidade da sua gestão dependia fundamentalmente de dois factores _ reduzir a sua área e abri-la para o lado do Mar, voltando costas ao lado da Terra. Deste modo seria viável defender Tânger dos ataques marroquinos e assegurar os indispensáveis abastecimentos por via marítima.
O processo de apropriação da cidade pelos portugueses realiza-se em três etapas fundamentais, nas quais a reformulação das estruturas defensivas tem um papel determinante. Curiosamente, pelo facto de se processarem em distintos períodos, encerram também conceitos defensivos distintos.
Ainda no reinado de D. Afonso V é decidido atalhar a cidade, reduzindo a sua área para cerca de 20 hectares, através de dois novos panos de muralha dos lados Poente e Sul. A esta redução de 75% da área correspondeu também uma redução de 75% da população anteriormente existente:
“Parecendo-lhe depois, que a cidade era grande, e necessitava de igual presídio para sua defesa, a mandou cortar, e reduzir a mil vizinhos, tendo antes mais de quatro mil, que isto fazem as mudanças do tempo, e dos impérios.” (MENESES, 1732, p. 34)
Com a construção dos atalhos ficam constituídas a Vila Nova, a futura Tânger portuguesa, e a Vila Velha, que vai posteriormente sendo demolida, dando lugar ao chamado campo exterior, onde se desenvolveriam actividades agrícolas e pecuárias diurnas, fundamentais para garantir alguns bens de subsistência como frescos, forragem e lenha.
A Entrada em Tânger. Tapeçaria de Pastrana, século XV, Museo Parroquial de Tapices de Pastrana
Esta teoria do atalhamento da cidade, defendida por Jorge Correia, é recusada por Pedro Dias (obras citadas na bibliografia), e a contradição entre a posição dos dois autores está patente na obra de Martin Malcolm Elbl (ELBL, 2013, obra citada), que constantemente interroga aquilo a que chama a questão dos modelos da Little Tangier de Dias e da Big Tangier de Correia.
Pedro Dias refere a propósito das muralhas que os portugueses encontraram em 1471:
“Sabemos que as muralhas de Tânger, quando as tropas portuguesas tomaram conta da cidade em 1471, eram fortíssimas e estavam em boas condições, pois haviam resistido por diversas vezes às nossas investidas. Nada mais natural pois do que conservá-las e melhorá-las aqui e ali, quando isso se tornava necessário.” (DIAS, 2002, p. 76)
As Muralhas Portuguesas de Tânger. Fonte Martin Malcolm Elbl
Elbl socorre-se frequentemente da Entrada em Tânger das Tapeçarias de Pastrana, para além de outras fontes e de evidências do próprio terreno, para colocar em causa se a redução da cidade em cerca de 75% se baseou apenas na diminuição da população, e consequente desdensificação do tecido urbano, ou se de facto correspondeu a uma redução da sua área muralhada.
Convém referir também que a topografia do terreno no local do actual pano Poente da Muralha ajuda a corroborar a teoria de que esse pano seria de origem pré-portuguesa, como defende Pedro Dias. Da mesma forma, parece claro na análise da Entrada em Tânger, que a geometria do perímetro muralhado era em 1437 semelhante ao actual. Para além disso, as couraças já existiam antes da chegada dos portugueses, tendo em conta que se encontram representadas na Entrada e a couraça situada junto ao Albacar é referida na evacuação das tropas portuguesas durante a tentativa fracassada de conquista da cidade em 1437. Refira-se ainda que a Tânger portuguesa tinha um vazio de dimensões consideráveis do seu lado Norte, entre o Castelo Velho e o Castelo Novo, situação que a Entrada não representa, apresentando uma cidade muito mais compacta. Elbl refere ainda não existir nenhum documento da época que comprove que de facto a cidade foi atalhada. (ELBL, 2013, p. 138)
De qualquer forma, e colocada esta questão sem uma defesa pela posição de qualquer dos dois autores, apresenta-se neste texto a teoria do modelo da Big Tangier de Jorge Correia, levando à letra a afirmação do Conde da Ericeira de que o Rei de Portugal, “a mandou cortar, e reduzir a mil vizinhos”. Nesta optica, a designação atalho deve ser entendida com as devidas reservas, assim como as datas referidas como datas de construção de determinadas estruturas defensivas poderão referir-se a momentos em que as mesmas terão sido reconstruídas ou recuperadas.
Intervenções nas defesas de Tânger durante o século XV
A primeira fase de intervenções nas estruturas defensivas de Tânger tem um carácter tardo-medieval, patente em cortinas de muralha rectas, ponteadas por torreões pouco espaçados e de reduzido diâmetro e na construção de duas fortalezas, o Castelo de Cima e o Castelo Novo.
Durante o reinado de D. Afonso V são construídos os dois muros de atalho, que impõem à cidade uma nova geometria, mais regular e racional. O muro Poente, de altura reduzida, tira partido da topografia do terreno ao implantar-se a uma cota superior à dos terrenos que ficam no exterior do perímetro muralhado, coincidindo com uma linha paralela a cerca de 35 metros a Nascente das actuais Rue d’Italie / Rue de la Kasbah / Rue de la Plage. O muro Sul, coincidente com a actual Rue du Portugal, posiciona-se de forma perpendicular ao primeiro, implantando-se na ligação entre os dois o designado Cubelo do Bispo.
No muro Poente é construída a Porta do Campo, fortemente defendida, que constitui a principal saída da cidade para o campo exterior, e de ligação interna à Porta do Mar, através da Rua Direita ou da Misericórdia.
Tangier from the S.W. Gravura de Wenceslas Hollar, 1669-1671. University of Toronto (Gravura ilustrando a totalidade do atalho Poente vendo-se, da esquerda para a direita, a Torre dos Biscaínhos, seguida da Torre do Sino, que se destaca pela sua altura, o Cubelo de Vicente Fernandes, o Baluarte dos Fidalgos, a Porta do Campo e terminando no Cubelo do Bispo).
Prospect of the lower Part of Tangier. Gravura de Wenceslas Hollar, 1669-1671. University of Toronto (Gravura na qual é visível o Cubelo de Vicente Fernandes, a imponência do Baluarte dos Fidalgos, com o seu generoso diâmetro, e as fortes defesas da Porta do Campo. Nota: as gravuras de Wenceslas Hollar foram realizadas após a entrega de Tânger aos ingleses, pelo que ilustram as defesas da cidade na segunda metade do século XVII).
O muro Poente é reforçado e pontuado por uma trintena de torreões, a maior parte dos quais circulares. Ambos os muros de atalho são protegidos por um fosso seco com contraescarpa.
Ainda no reinado de D. Afonso V é construído um Castelo na Alcáçova, que obrigou à demolição de parte da mesma, e que foi designado Castelo de Cima.
Mas o Castelo de Cima encontrava-se demasiado afastado da Ribeira e no reinado de D. João II é construída uma segunda fortaleza, no ângulo Nordeste da Muralha, chamada Castelo Novo.
As obras descritas são atribuídas a Rodrigo Anes, Mestre das Obras dos Lugares de África à data da sua realização.
Prospect of York Castle. Gravura de Wenceslas Hollar, 1969-1673. University of Toronto (O Castelo Novo visto do lado Norte, implantado sobre a Falésia de Bouknadel, e os vestígios das chamadas couracetas)
The Lower Inner part of Tangier. Gravura de Wenceslas Hollar, 1673. University of Toronto (Nesta vista do Castelo Novo a partir do lado Sul é visível o Terreiro da cidade, o chamado Chouriço, espaço onde decorriam as principais cerimónias públicas, e, do lado exterior, os Degraus da Ribeira e a Couraça Principal)
O Castelo Novo assume-se como uma estrutura defensiva principal na Frente Ribeirinha de Tânger. É uma construção que mantém uma traça tardo-medieval, patente na sua Torre de Menagem, semelhante à do Castelo de Arzila, coroada por quatro guaritas nos cunhais, merlões e mata-cães, elementos de defesa para um ataque inimigo já dentro de portas. A sua cobertura é um telhado de quatro águas, que não permite a utilização de artilharia no seu topo. Nas gravuras de Hollar o telhado não existe, fazendo crer que a velha torre teria sido adaptada para a colocação de armas de fogo no terraço então criado.
Gravura de Tânger no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572. O “vazio” que existia entre o Castelo de Cima e o Castelo Novo, do lado Norte, é evidente
A construção do Castelo Novo de Tânger constitui um processo que se repetiria em Safim com a construção do Castelo do Mar, e que duplicava a pré-existência de uma fortaleza original quando esta se implantava na Frente de Terra, posicionando outra na Frente de Mar, para assegurar a necessária logística em caso de cerco através do contacto directo com as embarcações de abastecimento.
Na gravura de Braun e Hogenberg esta dualidade da existência de dois castelos é evidente, bem como a manutenção de uma área livre entre os dois, que concentrou a zona militar da cidade do lado Norte, na cota mais elevada, contrastando com a zona densamente povoada por habitações do lados Sul, nas cotas mais baixas.
Intervenções nas defesas de Tânger no início do século XVI
A segunda fase de intervenções nas estruturas defensivas de Tânger é conotada com a chamada arquitectura militar da transição, patente na introdução de elementos de adaptação das fortificações ao uso da pirobalística. Os panos de muralha começam a quebrar-se em dentes para permitir o tiro rasante e conferir maior resistência aos impactos, são abertas canhoneiras envolvidas em materiais que evitam a lascagem da pedra e os ressaltos dos projecteis, os panos inclinam-se para esse mesmo fim, surgem os alambores ou escarpas que evitam a minagem das fundações.
No reinado de D. Manuel I, Francisco Danzilho é enviado para Tânger para modernizar as suas estruturas defensivas. Os projectos de Danzilho são medidos posteriormente por Diogo Boitaca e Bastião Luís, e concentram-se no muro de atalho Sul e na frente Ribeirinha.
Imagem do muro de atalho Sul, quebrado e com alambor no seu embasamento
A geometria do muro de atalho Sul é alterada, introduzindo-se duas quebras, uma Torre Poligonal, para tiro rasante, e outra circular, chamada Torre do Diabo, que marcava o arranque da Couraça do lado do Mar. A referida Torre Poligonal dispunha de um postigo de entrada e comunicava com a então Rua Maria Moura, actual Zankat El-Ferran ou Rua do Forno.
Pedro Dias é da opinião que a Muralha Sul foi construída por Danzilho mais a Sul do que a Muralha árabe original, ampliando o recinto fortificado (DIAS, 2002, p. 81), o que teria implicado a demolição da primitiva couraça (a tal descrita durante a evacuação das tropas na tentativa falhada de 1437) e a construção da referida Couraça do lado do Mar, de muralha dupla, com adarve ou caminho de ronda e merlões. O pano Sul seria apenas provido de merlões entre a Torre do Diabo e o extremo da Couraça, sendo provido de troneiras entre esta torre e o Cubelo do Bispo.
Esta opinião de Pedro Dias faz com que os dois modelos da Little Tangier e da Big Tangier atribuam a autoria deste tramo de muralha aos portugueses. (ELBL, 2013, p. 378)
O Cubelo de Vicente Fernandes
O muro de atalho Poente é reforçado com uma torre poligonal, o Cubelo de Vicente Fernandes, para colocação de artilharia pesada, e a abertura de troneiras e frestas para artilharia ligeira, reforçando o poder de fogo sobre o vale do Oued Aherdane.
No ângulo entre a muro de atalho Poente e o pano Norte, sobre a Falésia de Bouknadel, implanta-se a Torre dos Biscaínhos ou Torre Principal, inicialmente de configuração circular, no cimo da qual é colocado o Facho, ponto de vigia e de controlo dos sinais enviados pelas atalaias situadas no exterior da Praça.
West front of Tangier castle. Gravura de Wenceslas Hollar, 1669. University of Toronto (Gravura que representa o ângulo Noroeste da Muralha. Da esquerda para a direita, a Couraça, o Baluarte da Avestruz ou do Caranguejo, a Torre dos Biscaínhos, a Torre do Sino e o Baluarte da Alcáçova)
Da Torre dos Biscainhos ou Torre Principal parte uma Couraça descendo a falésia, cortando o acesso ao pano Norte. Entre a Couraça e a Torre é aberta uma porta, denominada Porta da Couraça, que dava acesso à Alcáçova através da Porta da Traição.
Do seu lado Sul é construída a Torre do Sino, de altura fora do comum. Não é claro se o papel de facho se distribui pelas duas torres, já que a Torre do Sino é também designada como faroleiro.
Estrutura urbana
A Frente Ribeirinha é totalmente reformulada, introduzindo-se várias couraças, tramos de muralha que se prolongam mar adentro, como corredores fortificados para proteger a chegada de navios, baluartes, quebras nos panos de muralha e uma barbacã como ante-paro.
Esta intervenção assegura a abertura da cidade ao Mar e o controlo efectivo da Ribeira, fundamental para a sua própria sobrevivência. A estrutura urbana de Tânger fica definida com os mesmos princípios da generalidade das Praças-fortes de Marrocos, com uma separação entre a zona militarizada da zona habitacional e com um vector fundamental estruturante, de ligação entre o Campo e a Ribeira, a Rua Direita.
Uma nova cortina quebrada em três dentes é construída para formar o Albacar, o que retira à Couraça a sua função de corredor que entra mar adentro, ficando no plano da cortina defensiva, o leva Elbl a referir que “já não era uma couraça em termos funcionais”. (ELBL, 2013, p. 392)
A reformulação da Frente de Mar inclui a construção de um verdadeiro Porto, com um molhe ou quebra-mar. O acesso à Porta do Mar faz-se por uma rampa protegida pelo Baluarte da Ribeira e o desnível entre a praia e a muralha e respectiva barbacã faz-se através dos Degraus da Ribeira, que a gravura de Braun e Hogenberg bem documenta.
Um dos baluartes circulares do Castelo Novo
A fortificação do Porto é sobretudo baseada na construção das defesas complementares do Castelo Novo, duas couraças e duas couracetas que são construídas a partir dos baluartes circulares situados nos cunhais do edifício _ a Couraça Principal, que parte do cunhal Sueste e se desenvolve no sentido Sul, terminando num forte torreão circular, o Espigão, que parte do cunhal Nordeste, e duas couracetas que partem dos cunhais Norte e têm continuidade nessa mesma direcção.
Contrariamente ao que se verificava em Alcácer Ceguer, as Couraças de Tânger não eram corredores fortificados para receber abastecimentos, mas defesas avançadas que defendiam o Porto, este sim dispondo do referido molhe onde se realizavam as operações de carga e descarga.
As três couraças e as duas couracetas que defendiam a Frente de Mar devem assim ser entendidas como um conjunto lógico de estruturas defensivas que asseguravam a permanência dos navios em segurança no porto e evitavam a aproximação inimiga do lado do mar.
Part of Tangier from above, without the water gate. Gravura de Wenceslas Hollar, 1670. University of Toronto (Gravura que representa, a partir do lado esquerdo, a Couraça do lado do Mar, o Albacar com a sua muralha quebrada em três tramos, o Baluarte da Ribeira, a Porta do Mar e os Degraus da Ribeira, vendo-se em primeiro plano um dos cubelos circulares).
O início do século XVI marca também o processo de reestruturação da malha urbana da cidade, organizando-se uma série de arruamentos em função do eixo principal, a Rua Direita e criando-se alguns equipamentos fundamentais, como o Mercado, e a Misericórdia.
A Rua Direita ou da Misericórdia segue o padrão característico do das cidades de Portugal, contendo alargamentos que constituíam pequenos largos onde se situavam os principais equipamentos, no caso concreto de Tânger, dominado pelo Largo do Mercado, actual Socco Chico.
Tânger foi Sede de Bispado, dispondo de uma Catedral dedicada a N. Sra. da Conceição. Os outros edifícios religiosos eram o Convento de S. Domingos e as igrejas de S. João, Santa Bárbara, Vera Cruz, S. Roque, Espírito Santo e S. Sebastião.
O Convento de S. Domingos foi inicialmente entregue à Ordem da Santíssima Trindade, que tinha por missão o resgate de cativos, mas a sua transferência para Ceuta, devido à maior proximidade a Tetuan, abriu caminho à instalação no edifício da Ordem de S. Domingos.
Desenho urbano e equipamentos
A terceira fase de intervenções nas estruturas defensivas de Tânger é conotada com a chamada arquitectura militar do Renascimento, na qual a modernidade dos novos processos de defesa e ataque, com base nas armas de fogo, define as próprias características geométricas e formais das fortificações. Tudo funciona em função dos ângulos de tiro e da capacidade de resistir aos impactos dos projecteis. Neste período é determinante a questão do tiro rasante como forma de resolver o problema do tiro de proximidade.
Intervenções nas defesas de Tânger nos meados do século XVI
Planta das muralhas de Tânger, anónima, século XVI, desenhada por Miguel de Arruda (?), Arquivo Militar de Estocolmo
No reinado de D. João III, André Rodrigues, sob a supervisão de Miguel de Arruda, reformula a área da antiga Alcáçova, criando uma Cidadela abaluartada dispondo de quatro Baluartes em cunha, denominados S. João, Conceição, Espírito Santo e Caranguejo, e construindo um outro Baluarte assente num impressionante alambor, chamado da Alcáçova, de protecção à porta com o mesmo nome. A obra implica grandes trabalhos de terrapleno para regularização do terreno. Os baluartes são típicos do período pré-Vauban, menos altos do que a muralha, de pano inclinado e extremamente espesso.
Planta das muralhas portuguesas de Tânger de 1655 (1699?), de Leonardo de Ferrari, desenhada a partir da planta anterior, Arquivo Militar de Estocolmo
A construção do Baluarte do Caranguejo implica o fecho da antiga Porta da Couraça, situação resolvida com a abertura da referida Porta da Alcáçova.
Após terem sido terminadas estas obras, já no reinado de D. Sebastião, o Rei terá dito, em tom de gracejo que “vós deveis achar que tenho muito medo dos mouros, pois fizésteis este castelo tão forte!” (CORREIA, 2008, p. 241, citando Chantal de la Véronne)
Prospect of the inner part of Tangier, with the upper castle. Gravura de Wenceslas Hollar, 1669-1673. University of Toronto (Vista da Cidadela a partir de Sul, com os Baluartes do Espírito Santo, da Conceição e de S. João, a Torre do Sino e o Castelo Velho ou Castelo de Cima).
As obras realizadas neste período também intervencionaram o muro de atalho Poente, como refere Martin Malcolm Elbl:
“A muralha a Noroeste e a Sueste do Baluarte dos Fidalgos era em muitos aspectos imperfeita como aponta a ‘Relação’ de 1621. Tinha sido construída para uma época militar anterior, não para os anos 1550-1560. A campanha de construções da década de 1540 melhorou-a bastante, mas não o suficiente. Em tempos de rápidas mudanças tecnológicas, equipamento e defesas podem envelhecer mais rapidamente que os soldados que eram ordenados para os utilizarem.” (ELBL, 2013, p. 272)
Seriam desta época, entre outros trabalhos, a construção dos contrafortes e da nova contraescarpa para alargamento do fosso. Segundo Elbl, os cubelos circulares pré-existentes eram um “incómodo e um estorvo, mas foram obviamente preservados por razões estruturais” (ELBL, 2013, p. 278), no sentido em que perturbavam o tiro rasante ao longo do pano da muralha, pelo que os Baluartes da Alcáçova e dos Fidalgos e o Cubelo do Bispo são puxados para o exterior, para garantir a resolução do problema do tiro de proximidade através do tiro rasante. O Cubelo do Bispo teve um projecto não implementado para construção de um Baluarte de Orelhões semelhante aos das muralhas de Lagos, também da autoria de Miguel de Arruda.
Detalhe da planta do século XVI com o projecto do baluarte de orelhões em substituição do Cubelo do Bispo, obra nunca realizada
Neste período são construídos dois revelins do lado Nascente do Castelo Novo, duas plataformas para tiro frontal para defesa do Porto.
Plan de Tanger sur le détroit de Gibraltar au royaume de Tanger, [17..], Bibliothèque nationale de France
Durante o período dos Felipes, Tânger mantém uma governação portuguesa e conhece um período de obras no interior do núcleo urbano.
“Grandes quantidades de madeira entraram na cidade para reparar casas dos moradores, assim como para reconstruir a Torre do Sino e alguns panos de muralha, para refazer os esgotos ou cavar novos fossos, o que releva para a actividade de manutenção deste núcleo urbano”. (CORREIA, 2008, p. 253)
Após a restauração da independência de 1640, a cidade apenas volta para as mãos da Coroa Portuguesa no ano de 1643, mas por pouco tempo.
Em 1661 Tânger foi oferecida aos ingleses como dote do casamento de D. Catarina com Carlos II, que apenas a mantiveram na sua posse até 1684, quando Mulai Ismail integra a cidade de novo no Reino de Marrocos.
As alterações feitas tanto por ingleses como por marroquinos nas muralhas foram de pequena monta, subsistindo no essencial as fortificações portuguesas até aos nossos dias.
O Cubelo de Vicente Fernandes
A Muralha de Tânger é um exemplo de apropriação do imóvel pelas construções implantadas junto a si, já que, pelo facto de as mesmas se encontrarem adossadas, foram ao longo dos tempo, através de um processo de minagem, transformando o pano da Muralha na sua própria parede exterior.
A Muralha encontra-se pejada de janelas, portas e varandas, e é visível em muitos tramos a redução drástica da sua espessura, ao ponto de nalguns locais ser apenas um revestimento exterior. Em muitos casos os próprios baluartes são apropriados pelas habitações confinantes, tornando-se os seus terraços ou construindo-se no seu topo varandas e mesmo extensões verticais dessas habitações.
Estas situações acontecem sobretudo nos panos Poente, Nascente e Sul, e colocam a questão de se saber até que ponto podemos falar da existência de uma Muralha na verdadeira acessão da palavra, enquanto imóvel com a sua identidade construtiva, estrutural e cadastral, ou de vestígios dela, integrados em edifícios relativamente recentes.
Varandas no Muro de Atalho Sul, sobre a Rue du Portugal
Apropriação da Muralha num troço do pano Poente
Varandas e vãos abertos no pano Nascente, sobre os Degraus da Ribeira
Nos últimos quatro anos a totalidade da Muralha foi recuperada pela entidade gestora do Porto de Tânger, com recurso a empresas de projectos e de construção privadas, não sendo estranha a essa intervenção global e rápida, o facto de, na maior parte dos troços se tratar de uma intervenção cosmética, no sentido de apenas intervencionar a sua face exterior, através de trabalhos de encasque com argamassas, o que não retira mérito nenhum à intervenção, tendo em conta a situação encontrada.
Trabalhos de recuperação junto à Porta da Alcáçova, no local do antigo Baluarte do Espírito Santo
Na frente Nascente, antiga Ribeira, a intervenção teve um carácter mais profundo, já que foi parcialmente reconstruída a Couraça Principal, parte do Castelo Novo e alguns tramos da Muralha e da Barbacã.
A Couraça Principal
O Baluarte da Couraça Principal
Muralha e Barbacã/acesso à Porta do Mar com uma situação interessante da intervenção, que deixou parte do pano original sem revestimento por forma a permitir a sua leitura
Castelo Novo
Mas a intervenção mais significativa foi a realizada na Alcáçova, onde o antigo palácio do Governador/Baluarte de S. João, anteriormente em risco de colapso eminente, foi totalmente reconstruído e o talude da falésia de Bouknadel consolidado.
É uma intervenção que teve mérito de solucionar a situação mais gravosa da Muralha de Tânger, sendo no entanto muito discutível a solução de acabamento adoptada, sem reboco, que desvirtua a imagem original do imóvel.
Duas imagens antes da intervenção
Duas imagens após a intervenção
Ainda na zona da Alcáçova foi recuperado o Baluarte da Alcáçova (assim designado por Malcolm Elbl, mas identificado por Jorge Correia como o Baluarte dos Fidalgos) e reconstruído o Borj Naam (Baluarte da Avestruz, que Malcolm Elbl identifica como Baluarte do Caranguejo). Aqui os paramentos foram parcialmente acabados com reboco, como aliás seriam originalmente.
Viva, só hoje descobri este seu excelente site, já com um passado histórico considerável (perdoe-me a laracha — palavra que por sua vez remete a Larache?… enfim, já não digo nada), ao ponto de «parecer mal» ter a lata de só hoje vir a dar-lhe os parabéns pelo excelente trabalho de investigação histórica que tem vindo a desenvolver — «apenas como amador», como salienta tantas vezes ao longo do site. Amador ou profissional, passei hoje uma parte do dia a ler (de forma mais ou menos aleatória) uma série de artigos seus, embora motivado por o que me parecia ser algo de mais simples: tentar descobrir a origem do nome da cidade de Odivelas…
Graças a estas explicações suas, fiquei a perceber que aquilo que já conhecia da presença portuguesa na Índia — essencialmente, um complexo sistema diplomático, jogando umas facções contra as outras, e a utilização de engenharia militar muito sofisticada aliada a um apoio naval que, na altura, possuía tecnologia muito superior à das restantes nações — teve um «ensaio geral» em Marrocos, quase um século antes. Não admira, pois, que Afonso de Albuquerque tivesse à sua disposição um longo conhecimento de como estabelecer bases mesmo no centro de uma civilização cultural e tecnologicamente bastante superior à nossa: o «truque» era apostar em 2 ou 3 vantagens tecnológicas e de resto usar muita, muita diplomacia. Foi um copy & paste da «estratégia vencedora» em Marrocos… apesar da distância muito mais vasta dificultar certas dificuldades logísticas, claro está. Mas houve muito tempo para aperfeiçoar esta logística…
Quando se lê na historiografia mainstream que um punhado de portugueses colocava os pés em África (ou depois, mais tarde, na Índia) e conquistava vastas cidades, parecia-me sempre um enorme exagero (típico dos vencedores, que escrevem a história). A versão histórica do aperfeiçoamento tecnológico (neste artigo, o das fortalezas constantemente em upgrade para lidarem com alterações no armamento utilizado pelo inimigo…) e o recurso incansável à complexa diplomacia dá uma explicação muito mais satisfatória de uma realidade que assim parece bastante mais plausível…
Continue o excelente trabalho!
Caro Luís Miguel Sequeira
“Amador” foi um termo que utilizei muito nos meus primeiros escritos e basicamente tinha a ver com o facto de não ter um diploma em História, situação que me parece hoje irrelevante, tendo em conta a investigação que fiz e os trabalhos que publiquei (online, editorial e em conferências/formações).
Concordo que para “conquistar meio mundo” é necessário ter uma estratégia muito bem definida e sobretudo inteligente. Baseada, como diz, numa diplomacia forte, numa arquitectura militar muito eficiente e numa capacidade de solucionar os problemas logísticos não só pela via diplomática, como pelo “engenho”.
No entanto, em Marrocos, o sucesso Português dependeu em muito do momento de falta de unidade política que o país atravessava. Foi notória a inviabilidade da política expansionista quando os Sádidas unificaram Marrocos e se apetrecharam com meios militares de última geração forneccidos pelos Turcos.
Aliás, vários dos autores portugueses, sobretudo David Lopes, traduzem bem na sua obra o facto de que um Reino Português em Marrocos era um sonho irrealizável, como o tempo se encarregaria de mostrar rapidamente. Algumas frases de David Lopes: “Um reino português em Marrocos era sonho irrealizável com os nossos parcos recursos em gente e dinheiro” (…) “Não vemos assim D. Henrique fechar os olhos às realidades e querer conquistar um país que Portugal, de pouca população e pobre, não podia abarcar. Um realista que ele sempre se revelou não podia ter tão estulta pretensão; e se algum dia teve esse sonho, filho da inexperiência primeira, deve ter acordado dele quando o mar imenso se começou a abrir diante das suas caravelas. Os perigos eram aí, afinal, menores e as vantagens maiores” (…) “O infante enganou-se nesta ideia de fazer de Marrocos um Portugal dalém mar. Portugal não tinha forças nem recursos para tamanha empresa” (…) “Criar um outro Portugal em Marrocos era um pensamento irrealizável, que espírito prático, realista, como o seu, não podia ter. A população do reino do tempo da ida a Ceuta não devia passar de um milhão, segundo nos parece. Por outro lado, Marrocos era país bastante densamente povoado, (…) muito extenso, de população aguerrida, e de religião estimuladora de heroísmo. Sendo assim, como podia o espírito perspicaz do infante enganar-se tão grosseiramente e nutrir um propósito tão incongruente? É certo que se quis realizar em 1578, mas D. Sebastião era criança e desatinado”.
Obrigado e cumprimentos
Pingback: Tânger portuguesa | Histórias de Portugal em Marrocos
Mendes Paula. Mais um Trabalho de Pesquisa de grande Nivel.. Os Portuguese ainda têm que aprender muito da historia de Portugal
É verdade que sim, há muita história verdadeira de Portugal, e não só, não ensinada sequer nos manuais escolares e muitos professores de história et alii que a desconhecem igualmente . Fica para quem aqui chega o gosto da descoberta tão interessante da aventura e garra de um povo que foi valente, embora os erros de outra ordem cometidos.
…e Marrocos e sua história e sua cultura sempre presente neste site em tantas facetas, encantos e fascínio que nos faz percorrer e esquecer o tempo e outros que-fazeres.
Pela excelência do seu saber e forma de divulgação, o felicito ainda e sempre, Arquitecto Frederico Mendes Paula.
Agradeço as suas palavras, Isabel Falcão. Parece impensável nos tempos que correm verificar que os manuais escolares continuam a ser um veículo de transmissão de uma História que teima em não contar a verdade e em alimentar falsos ideais, em vez de contribuir para uma outra forma de aceitar as diferenças e de encarar o passado com as suas boas e más coisas. Em relação a Marrocos, país nosso vizinho e com o qual partilhamos um passado e factores identitários muitíssimo significativos, a ignorância da generalidade das pessoas é confrangedora, incluindo, como diz, de muitos dos responsáveis pelo ensino.
Obrigado, Boaventura Nogueira. De facto existe uma grande parte do nosso passado que continua obscuro para a maior parte das pessoas