O posto de fronteira do Pont du Loukkos
Apesar de terem tido uma duração relativamente curta, entre 1912 e 1956, os protectorados Francês e Espanhol em Marrocos foram responsáveis pela produção de um urbanismo e arquitectura de carácter inovador, já que permitiram aos arquitectos de ambos os países, sobretudo aos franceses, utilizar o território como um verdadeiro laboratório para a experimentação dos novos conceitos que o modernismo e o movimento moderno abriram, aliados às possibilidades plásticas que a generalização do betão armado oferecia.
No início da década de 50 são construídos dois postos de fronteira na sua linha de delimitição, cuja existência efémera acabou por não justificar a sua construção, mas que simbolizam a modernidade que essa nova arquitectura representou. Abandonados logo após a independência, tornaram-se dois monumentos nostálgicos e insólitos, cuja existência persiste, verdadeiras obras de arte da arquitectura e engenharia modernas.
Delimitação entre os protectorados francês e espanhol
Desde finais do século XIX que França e Espanha acordaram em partilhar Marrocos entre si, vindo a esboçar em 1904 uma delimitação que atribuía à Espanha a região Norte do País, através de uma linha definida pelas bacias do Sebou e do Moulouya e que incluía a cidade de Fez. Essa área viria a ser substancialmente reduzida com os acordos de 1912, que instituíram os protectorados de França e Espanha em Marrocos.
A linha divisória entre os dois protectorados acabou por ser definida pelo curso dos Oued Loukkos (Rio Lucus) do lado ocidental e Oued Moulouya do lado oriental, sendo o seu limite central definido de forma irregular pelos contrafortes da Cordilheira do Rif, limte esse que sofreu vários ajustamentos até se estabilizar em 1927, quando as potências coloniais lograram derrotar a resistência marroquina no Norte do país, protagonizada pelos rifenhos de Abdelkrim Khattabi, naquela que foi a chama pacificação de Marrocos, que permitiu aos espanhóis criar uma administração efectiva desse território.
As montanhas do Rif
A pacificação dos rifenhos foi brutal, não só do ponto de vista militar, com os célebres bombardeamentos de aldeias com armas químicas, mas também em termos sociais já que, como refere Gérard Crespo, as terras pertencentes aos combatentes de Abdelkrim foram confiscadas e entregues a agricultores que aceitaram a presença colonial espanhola. O próprio consumo do hashish no Rif foi largamente incentivado pelo colonizador espanhol, como forma de adormecer as populações e garantir-lhes um rendimento mais elevado do que aquele que as produções ligadas à agricultura de subsistência garantiam.
Gérard Crespo refere na sua obra citada na bibliografia que é “de notar a tolerância que exerceram as autoridades espanholas em relação à prática da cultura do cannabis pelos Rifenhos, mas também em relação ao comércio interno e evidentemente ao consumo”. (CRESPO, 2016)
Aliás, a chamada pacificação de Marrocos não foi fácil nem pacífica, fosse no Norte ou no Sul, facto para o qual contribuiu a forte resistência que as populações locais ofereceram, como foi não só o caso dos Rifenhos liderados por Abdelkrim Khattabi, como das tribos do Médio Atlas lideradas por Hammou Zayani, o célebre Moha, ou das tribos do Anti-Atlas lideradas pela confederação dos Ait Atta.
Os protectorados duraram até ao ano de 1956, data da independência de Marrocos.
O posto de fronteira de Lakhdadra
É inegável que Marrocos constituiu um verdadeiro laboratório para a experimentação dos conceitos urbanísticos e arquitecturais modernos, sobretudo por mão dos franceses, cujos urbanistas, arquitectos e engenheiros aí puderam dar largas à sua imaginação e criar com liberdade total.
E se é verdade que o urbanismo colonial francês dirigido por Henri Prost teve um certo carácter de urbanismo de apartheid, construindo a cidade europeia ao lado da cidade árabe, também é verdade que teve a vantagem de permitir a criação de estruturas urbanas modernas de raíz, incompatíveis com as das existentes medinas, permitindo ao mesmo tempo que estas se mantivessem preservadas.
De um ponto de vista social sempre existiu uma certa incompatibilidade entre colonos e autóctones, que os chamados bairros indígenas, bairros construídos para a população local, são exemplos paradigmáticos.
No campo estrito da arquitectura, os francesses deixaram um vasto património edificado, patente nos inúmeros exemplares de art deco que dominam as avenidas rasgadas nos anos 20 em Casablanca, mas também um importante legado do modernismo, estilo essencialmente de transição, e do movimento moderno, no qual as novas técnicas do betão armado permitiram a realização de estruturas arrojadas e inovadoras, não só em moradias e imóveis de habitação colectiva, como em equipamentos.
Localização de Lakhdadra e do Pont du Loukkos
Os dois postos de fronteira que aqui se referem a título de exemplo situam-se no Oued Loukkos e apresentam uma planta extremamente funcional, simétrica nos dois sentidos, permitindo que a estrada de acesso se divida em duas para controlo do trânsito nos dois sentidos. Os imóveis albergavam as administrações das fronteiras dos dois protectorados no mesmo edifício, integrando um programa extremamente racional e funcional.
São dois edifícios interessantíssimos, exemplares raros da arquitectura moderna, de linhas simples e horizontais, dominadas pelas consolas de 11,00 metros que constituem as palas onde as viaturas e utilizadores se protegem.
O primeiro, denominado Lakhdadra (Khedadra ou Guedadra para os franceses), situa-se na estrada Nacional nº1 entre Ksar El Kebir e Arbaoua, no local de Douar Lakhdadra e o mais recente na estrada Nacional nº13 junto à aldeia de Laghdir, e tem o nome de Pont du Loukkos.
Localização do posto de Lakhdadra
O posto de Lakhdadra terá sido construído entre 1951 e 1953. Sobre este imóvel existe alguma informação e podemos afirmar que, na nossa opinião, é de longe o mais interessante dos dois e menos desvirtuado. Da autoria do arquitecto Édouard Delaporte e do engenheiro Pradeaux, apresenta uma linguagem extremamente actual e uma grande pureza nas suas linhas.
Delaporte foi um arquitecto, pintor e escultor francês que se instalou em Marrocos em 1946, tendo vivido seis anos em Rabat, onde projectou diversos edifícios, sobretudo moradias.
Elementos do projecto do posto de “Khedadra” publicados no nº 35 da Architecture d’Aujourd’hui
Elementos do projecto do posto de “Khedadra” publicados no nº 60 da Architecture d’Aujourd’hui
O projecto foi publicado na revista Architecture d’Aujourd’hui por duas vezes. Em 1951, em fase de projecto, refere-se que do lado francês existirá um posto de gasolina, um hotel e restaurante. Na mesma revista surgem outros elementos publicados em 1955, com fotos do imóvel já construído.
O posto de Lakhdadra em 1953
No entanto existe uma foto do imóvel em funcionamento, datada de 1953, no site eBay.
Sobre esta fronteira, também chamada Fronteira de Arbaoua, refere Crespo que “na fronteira havia uma tal tensão que nos fazia sentir culpados; a passagem durava mais de uma hora. Franceses e espanhois não tinham a mesma optica da gestão do país”. (CRESPO, 2016)
O posto de Khedadra encontra-se totalmente abandonado.
Localização do posto de Pont du Loukkos
O posto do Pont du Loukkos será de construção posterior, já que, segundo informações do site do Régiment de Chasseurs d’Afrique, foi aberto no ano de 1956, não tendo havido tempo para construir a ponte que lhe dá acesso. A ponte foi construída posteriormente pelas autoridades do Reino de Marrocos.
Foto do posto do Pont du Loukkos de Y. Caudron de 1956
Na legenda de uma foto de 1956, pertencente à colecção de Y. Caudron, incluída no referido site, pode ler-se: Maio 1956 – O Rif – Pont du Loukkos, posto de fronteira com o Marrocos espanhol na estrada de Tânger. Esta ponte nunca foi terminada.
O posto do Pont du Loukkos. Foto jo.schz
Apesar de se basear no posto de Lakhdadra e ter as mesmas características, não temos informação sobre o seu projecto, mas podemos afirmar que já não apresenta a pureza de linhas do anterior, combinando os elementos modernos com aspectos revivalistas, como os beirados nos remates das consolas. Para além disso o posto do Pont du Loukkos sofreu algumas alterações e não se encontra totalmente abandonado, funcionando como paragem de autocarros, e funcionando como área de estacionamento de dois edifícios públicos que se situam a seu lado.
Bibliografia :
ARRIF, Abdelmajid. “La ville coloniale au Maroc: objet de savoirs, objet de projets. Sciences sociales, architecture, urbanisme”. Communication au séminaire « Architectures exportées : transferts, expérimentations, métissages », Laboratoire Urbama (Université de Tours), équipe LAA (EA Paris-la Villette), laboratoire Ladrhaus (l’EA Versailles), Tours, 1993
“Contre Vents et Marées”. Página electrónica do 12ème Régiment de Chasseurs d’Afrique. 3ème Escadron du 12ème R.C.A. Dezembro de 2010
CRESPO, Gérard. “Les espagnols au Maroc 1859-1975 : de la guerre d’Afrique à l’independence du Sahara Espagnol”. edições Edilivre, Saint-Denis, 2016
LOFTUS, Gerald. “A Bridge Over Morocco’s Colonial Past”. Artigo da página electronica “Tangier American Legation Institute for Moroccan Studies”, Dezembro 2011
MARRAST, J. “L’oeuvre de Henri Prost. Architecture et urbanisme”. Página electrónica de Bertrand Terlinden publications. Março, 2010
“Maroc, Douanes de Guedadra entre Maroc espagnol et Français, 1953 vintage silver”. Página electrónica EBAY. Janeiro 2016
“Poste frontière a Khedadra”. L’architecture d’aujourd’hui Nº 35 . 21ème Année, Pág. 75. Mai 1951 . Paris
“Poste frontière a Khedadra”. L’architecture d’aujourd’hui Nº 60 . 26ème Année, Pág. 82-83. Juin 1955 . Paris