O Alto Atlas na região de Skoura
“Adeus poesia, nunca te perdoarei,
Não ter encontrado em ti o que esperei.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 14)
A poesia Amazigh, ou Berbere, vem sendo preservada ao longo dos tempos através de um processo de transmissão oral, levado a cabo por homens mais ou menos iletrados que, percorrendo as aldeias e áreas rurais, levam até aos seus habitantes mais simples os saberes e fundamentos da cultura popular. Amazigh (pl. Imazighen) significa “homem livre” na língua Tamazight.
São os “poetas de tribo”, que fortalecem os elos entre os seus membros, contribuindo para o reforço da sua identidade e ajudando a ultrapassar as dificuldades colectivas. Exaltam a coragem dos seus heróis, dão corpo aos rituais colectivos que celebram os acontecimentos do dia-a-dia e os ciclos da natureza. São os “poetas errantes”, que deambulam em pequenos grupos ou isolados, recitando ou cantando os seus poemas, versejando, acompanhados ou não por instrumentos musicais, aliando ao espectáculo e divertimento a mensagem instrutiva, os princípios da justiça, morais e religiosos, o saber, a própria intervenção de carácter político.
“O poeta está envolto em mitos. Pensamos que ele pode entrar em contacto com as forças da natureza, apaziguá-las ou virá-las contra alguém; fala a linguagem dos animais, das plantas e dos insectos. O mundo não tem segredos para ele. Mas a crença popular não ignora que o poeta deve aperfeiçoar a sua arte junto de outros poetas ilustres. Entra ao serviço de um deles, acompanha-o por todo o lado onde vai, aprende o que ele diz. Após um longo período de iniciação poética, ele próprio pode então exprimir-se, dar um timbre pessoal aos seus cantos.”
(BOUANANI, 1966, p. 3-4)
Dunas do Erg Chebi próximo de Merzougha
“Uns são jardineiros em Fez, e outros em Marraquexe.
Allah ya’nal ach-chitan’ al malloun!
(Que Deus domine Satã, o malévolo!)
Uns têm mulheres belas como a lua, e outros têm fontes melodiosas como as ribeiras dos jardins do Paraíso.
Allah ya’nal ach-chitan’ al malloun!
Uns vão admirar os seus campos, e outros vão vigiar a construção dos seus magníficos túmulos.
Allah ya’nal ach-chitan’ al malloun!
Nós, os homens das caravanas, só temos o céu e as areias!
Allah ya’nal ach-chitan’ al malloun!
Mas, após o calor do dia, há a frescura da noite. Porque nos haveríamos de queixar?
Allah ya’nal ach-chitan’ al malloun!”
(TOUSSAINT, 1942, obra citada)
Na Medina de Chefchauen
“Aquele que ignora a poesia não conhece a estrada da inteligência que conduz à sabedoria, pelos degraus da ciência e da arte.”
Canto do Souss (BOUANANI, 1966, p. 1)
Um primeiro esclarecimento sobre os dialectos Tamazight ou línguas dos Imazighen (plural de Amazigh). A questão da definição das várias identidades Amazigh não é fácil, já que não existe uma correspondência entre etnias e dialectos, podendo, de forma grosseira, falar-se de unidades étnico-linguísticas. Nesta perspectiva podemos considerar três grandes grupos étnico-linguísticos, associando a língua à ocupação do território: os Zenata no Rif e zona Oriental, os Masmouda-Sanhaja nas montanhas do Atlas, Médio, Alto e Anti-Atlas, e os Al-Hassânia no Sahara.
Também em termos muito simplistas, podemos afirmar que em Marrocos existem três dialectos principais da língua Tamazight ou três regiões berberófonas:
O Rifenho ou Tarifit, falado por cerca de 3 milhões de pessoas, que pelo facto de se encontrado associado ao aos falantes Beni Snassen, Chaouia e Ghomara constitui com eles a unidade linguística Zenata, sendo o dialecto falado no Rif. O Tamazigh do Marrocos Central ou simplesmente Tamazight, falado por 3 a 4 milhões de pessoas, constitui o dialecto falado no Médio Atlas, no Alto Atlas Central e Oriental e no Anti-Atlas Oriental ou Jebel Saghro. O Chleuh ou Tachelhit, falado por cerca de 8 milhões de pessoas, que constitui a unidade linguística Masmouda-Sanhadja, é o dialecto falado no Alto Atlas Ocidental, no Suss e no Anti-Atlas.
Unidades Etnico-linguísticas Amazigh e dialectos do Tamazight
A poesia popular marroquina tem semelhanças ao nível dos temas e da sua função social, versando temas que espelham a identidade cultural das várias tribos. São os rituais ligados à agricultura, pedindo chuva ou celebrando as mudanças das estações do ano, as sementeiras e as plantações; são os cantos que acompanham o ritmo de trabalhos quotidianos, como a moagem do grão dos cereais; são os cantos de casamento e luto; são os cantos que acompanham os jogos infantis; são os cantos de guerra que incitam os guerreiros nas batalhas.
São também as canções de escárnio, como é exemplo este poema cantado pelas mulheres de Tânger ridicularizando os homens velhos:
“Os mendigos e os vagabundos
procuram iguarias delicadas;
os velhos grisalhos e enrugados
gostam das raparigas novas;
o gato que perdeu os dentes
quer ratos bem tenros
e aquele que é desdentado
quer mastigar bombons…”
(BOUANANI, 1966, p. 5)
São inúmeros os ditados de caracter tribal recolhidos em colectâneas:
“Cada um tem uma praia do céu em direcção à qual se vira para rezar.”
“Basta que tenha existido um só Justo, para que o mundo tenha merecido de ser criado.”
“O coração do tolo está na sua língua e a boca do sábio está no seu coração.”
“A morte está mais próxima de nós que a nossa pálpebra.”
“Quem se apaixona pelas pérolas mergulha no mar.”
(ELIAN e FINBERT, 1948, obra citada)
Alguns desconcertantes:
“Dizes-me que vais a Fez.
Se me dizes que vais a Fez,
é porque não vais.
Mas eu sei que vais a Fez.
Porque me mentiste, tu, meu amigo?”
(MERCANTOM e ROUGET, 1954, p. 83)
Noiva marroquina
Amarg é a palavra que em Tachelhit ou Língua Amazigh Chleuh designa a poesia cantada. O amarg nasce de forma expontânea em celebrações no seio das tribos, como nos casamentos, cerimónias de circuncisão ou funerais, ou em encontros de tribos, constituindo muitas vezes formas de competição entre si, verdadeiros torneios literários que tomam o nome de ahwach ou ahidous. Nestes encontros a poesia cantada é acompanhada por danças.
Amarg significa literalmente “poesia” e “amor”, este último no sentido de amor insatisfeito e doloroso, ou seja, é uma poesia que exprime desgosto e lamento.
“Foi o teu amor, minha amada, que me separou dos meus pais.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 14)
A melancolia é uma das características do amarg, como nesta relação directa entre amor e desgosto. A melancolia está inclusivamente presente na própria essência da poesia, num sentimento contraditório entre o prazer e a tristeza de ser poeta.
“Se eu soubesse que a poesia era assim
Nunca tinha tocado alaúde nem nunca teria sido poeta.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 14)
“Adeus poesia, nunca te perdoarei,
Não ter encontrado em ti o que esperei.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 14)
O amarg é cantado pelos rrways (plural de rrays), também designados bab n-umarg ou “proprietários da poesia”. Para as poetisas é utilizado o termo rrayssa ou tirrayssin. Para além do indiscutível Sidi Hammou Taleb, que viveu no século XV, ficaram célebres como rrways da primeira metade do século passado os nomes de Lhaj Beleid, Boubaker Azeri ou Boubaker Anchad, e as rrayssas Fatima Talgrucht, Fatima Tagurramt ou Sfya Ult Tilwat. Hoje são referências nomes como Hmad Amntag, Rqiya Talbinsirt ou Fatima Tihihit.
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 22-23)
Existem basicamente dois tipos de literatura oral Tachelhil _ o verso, ou nndm, e a prosa, ou amjrrd. No primeiro caso inclui-se o amarg nas suas várias variantes, amarg n-hwach (poesia cantada associada a danças ahwach), amarg n-rrways (poesia dos cantores itinerantes), tizrarin (poesia cantada pelas mulheres durante os trabalhos domésticos), tanggift (cantos de casamento) ou tamawacht (duelo poético). No segundo caso estão os uniyn (contos), os iwaliwn ddrnin (provérbios) e os ggallr-ak tt-inn ur-ak tt-inn mmalr (adivinhas). Ahwach significa também “festa”, assumindo várias formas conforme as celebrações, designando-se tamyra nos casamentos, talalit nos nascimentos ou tazallit nas circuncisões.
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 15-16)
Abdallah El Mountassir desenvolveu um importante trabalho de recolha da literatura oral amazigh do Suss, à qual neste texto se fazem inúmeras referências e citações. No seu trabalho, o cantos são divididos em três categorias, poesia dos cantores itinerantes, poesia anónima e cantos de casamento.
A caminho do casamento
O facto de o Tachelhit não ser escrito e os poetas de tribo serem basicamente pessoas “iletradas”, e o consequente carácter oral da poesia popular dos Chleuh, remete para a transmissão oral o “registo” dessa poesia. No entanto, resumir ao amarg uma expressão simplesmente poética é redutor da sua verdadeira dimensão enquanto transmissor da própria identidade e memória colectiva, “dos valores tradicionais da sociedade mas também dos conhecimentos técnicos, éticos, religiosos… O conto serve para ensinar códigos de comportamentos da sociedade, as suas normas e valores e ajuda a criança a desenvolver as suas capacidades mentais iniciando-a no mundo dos adultos. O mito é uma fonte de valor moral sob a forma de lei e/ou de virtude (…) Os provérbios, depositário da sabedoria colectiva do povo, oferecem uma visão precisa dos valores de base de um grupo cultural (…) As adivinhas, espécie de diálogo social e fonte de conhecimentos, servem principalmente para preparar o espírito da criança para desenvolver as suas faculdades de raciocínio… Num todo, estes géneros, têm assim a sua utilidade; são utilizados com diversos fins: acentuar o valor do conhecimento, da sabedoria, do pensamento voltado para o futuro, consolidar a identidade da comunidade e veicular a história do grupo, as suas crenças e representações simbólicas”.
(BEN-ABBAS, 2013, p. 9)
“Montei-me num cavalo, montei-me numa mula
Vejam como os tempos mudam
O destino atirou-me para cima dum burro
E o burro atirou-me para o chão.”
(SOUAG, 2005, obra citada)
“Desde séculos encalhado no banco de areia,
Um barco feito novo atravessava o oceano.
Tudo o que existe neste mundo tem cura,
Só a morte e o amor não têm.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 69)
O amor e morte estão sempre presentes no amarg, como as duas inevitabilidades e fatalidades da vida.
“A nuvem negra anuncia a chuva;
A chegada do vespeiro, o verão;
O fumo dos terraços, o fogo das nogueiras…
Mas nada avisa da morte.”
(BOUANANI, 1966, p. 3)
A transmissão oral pressupõe três coisas que a distinguem fundamentalmente da transmissão escrita pelo seu carácter de transmissão viva e mutável. A primeira é que, contrariamente a um texto, apenas existe quando em contacto com um grupo receptor, o que implica interacção e linguagem gestual como complemento para um entendimento com os vários elementos do grupo. A segunda é a do aspecto criativo do contador, do seu estado de alma, que altera a própria forma de contar a história conforme diferentes momentos da sua vida. A terceira é a falta de noção de autoria dos temas, que são transmitidos em cadeia enquanto pertença colectiva.
“Um conto é a forma como é contado. Como é oral, não é prisioneiro de nenhuma linguagem; só os temas que são desenvolvidos são imutáveis. Cada contador tem um estilo próprio, uma maneira de fazer viver o seu conto na halka (1). Usa artimanhas para interessar, cativar o auditório. O improviso é fundamental para atingir os seus fins. O contador muda por vezes o nome de uma ou de várias personagens, suprime no momento algumas acções, acrescenta outras por sua iniciativa, segundo as circunstâncias. Já que contar não á apenas relatar o conto tal como foi concebido pelos antigos, é sobretudo enriquecê-lo com novos elementos. É por isso que o contador é também um poeta. Um estudo da literatura oral tradicional não deve de forma alguma negligenciar o papel criativo do contador.”
(1) Halka é o círculo de pessoas que se juntam em torno de um músico ou de um contador de histórias
(BOUANANI, 1966, p. 2)
Mulher no Vale de Ourika
“Aicha foi de manhã buscar água à grande daia (2).
Encontrou o seu amigo e as suas faces empurpuraram-se.
A sua mãe disse-lhe:
– Ó minha filha, a luz do amanhecer tingiu as tuas faces.
Nunca te vi com tão boas cores…
– Ó minha mãe, o ar está vivo de manhã, a ânfora é pesada.
O caminho corou as minhas faces.
Aicha foi, ao meio dia, buscar água à grande daia.
Encontrou o seu amigo e apertou-lhe as mãos.
A sua mãe disse-lhe:
– Ó minha filha, como as tuas mãos estão vermelhas!…
Nunca o henna (3) as tingiu assim.
– Ó minha mãe, colhi rosas ao longo das sebes.
Os espinhos picaram-me e o sangue corou os meus dedos.
Aicha foi ao entardecer buscar água à grande daia.
Encontrou o seu bem-amado.
Voltou com os lábios vermelhos dos seus beijos.
A sua mãe disse-lhe:
– Ó minha filha, os teus lábios parecem os corais do Rif.
Nunca te vi os lábios assim vermelhos.
– Ó minha mãe, comi bagas, e elas coraram os meus lábios.
Aicha foi à noite buscar água à grande daia.
Voltou com as faces brancas e os cabelos desfeitos.
A sua mãe disse-lhe:
– Ó minha filha, a tua face está tão branca.
Nunca te vi com a face tão pálida.
– Ó minha mãe, prepara a minha mortalha e manda abrir o meu túmulo, porque o meu amigo abandonou-me.”
(2) Daia é um pequeno lago natural
(3) Corante retirado da planta “lawsonia inermis” que é usado no Norte de Africa e na India para colorir o cabelo e tatuar o corpo e as mãos
(DUQUAIRE, 1947, obra citada)
A região do Souss
“Se tu fores mar, eu serei barco e te sulcarei
Se tu fores chuva, eu serei terra e te absorverei
Se tu fores sol, eu serei bruma e te ocultarei
Se tu fores lua, eu serei nuvem e te cobrirei.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 71)
A região do Suss, situada em torno do rio com o mesmo nome, abarcando o extremo Poente da cordilheira do Alto Atlas e do Anti-Atlas, é habitada por Berberes Chleuh que falam o Tachelhit. É uma zona particularmente rica em termos de poesia popular.
“Só o apaixonado e o doente ficam acordados durante as noites…
Quanto àquele que dorme tranquilamente, o que lhe falta?”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 75)
Grande parte das poesias do Suss são atribuídas a Sidi Hammou Taleb, que ficou conhecido como “bab n umarg”, que em Tachelhit significa “mestre da poesia”. Sidi Hammou nasceu em Aoulouz, cidade situada entre Ouarzazat e Tarudant, no século XVI, e viveu percorrendo as aldeias da região recitando os seus poemas ou versejando. Para ser compreendido exprimia-se num Tachelhit “médio”, já que a língua chleuh tem muitas variantes.
A fama de Sid Hammou está patente num dito popular do Suss que diz que “os propósitos de Sidi Hammou são tão numerosos que são como o mar, não se lhe vê o fim”.
(BOUANANI, 1966, p. 7)
“Quando a caravana se cansa, é preciso que se repouse.
Se o moinho trabalha devagar, junte-se água à ribeira.
Se a amizade se esfria, larga-a.”
(BOUANANI, 1966, p. 6)
Não deixou obra escrita, pelo que os poemas que lhe são atribuídos foram muito possivelmente modificados com o tempo e inclusivamente não existe a certeza de que muitos deles sejam da sua autoria. O tema dominante na poesia atribuída a Sidi Hammou é o da amizade. Numa das passagens da sua autoria diz que “o verdadeiro orfão é aquele que não tem amigos”.
(JOHNSTONE, 1907 (2), p. 41)
Kasbah de Ait Ben Haddou
Reza a historia que após uma longa permanência na região de Marraquexe, Sidi Hammou regressou à sua terra natal, onde procurou o conforto nos braços do seu primeiro amor, uma mulher de nome Fadma Tagurramt. Ao chegar verificou que um poeta rival do vale do Draa lhe fazia a corte e Sidi Hammou terá procurado inspiração junto do santo Sidi Brahim no Alto Atlas. Compôs então um poema com o título de Fadma Tagurramt, que foi recolhido por Johnston no inicio do século XX. Sidi Hammou exprime-se nele com constantes parábolas. Eis algumas passagens:
“A nuvem funde-se nas trevas, a brisa perde-se no rio: que a água leve as folhas murchas!
Pesa as tuas palavras mais do que as tuas riquezas. Quanto à prata, não existe sem liga.
Será que eu peço ao camelo a nobreza do cavalo? O oleandro dar-me-ia doçura? Não se procura um lugar seco no oceano. E eu, posso esperar uma resposta dum morto?”
Mais à frente diz:
“O galo queria voar até ao sétimo céu. Não são asas que lhe faltam; mas Deus não o quer ver.
A pólvora do canhão pensa que é antimónio, porque é negra. O pobre peixe queria saltar fora das águas amargas. Em sonho, a cabeça calva convence-se que entrança uma bonita madeixa de cabelos, ornamentada de uma prova de amor.
Tu, e a tribo do teu pai! A tribo de Houwa! Vocês só sabem pôr a pastar as cabras, alugar camelos e remendar sapatos velhos.”
E continua:
“E que a misericórdia do Senhor desça sobre o humilde Sidi Hammou, autor da canção.
Se a mão generosa vier a ser ferida, nós choraremos. Quanto à do avaro, que seja mirrada!
O desejo é como um filho. Quer seja cego ou manco, podemos esquecê-lo?
O ser amado é um tesouro: guarda-me só para ti, e desfruta a teu prazer. E que ele seja como um ovo! Quanto ao guloso, que devore as árvores com o camelo.”
No final do poema Sidi Hammou diz:
“Fadma, filha de Moh’ammed, pensas tu que, entre as drogas de Roma, existe um remédio para os que amam?
Seja qual for, dá-mo; mas depressa!”
(JOHNSTON, 1907, p. 106-110)
Ao que parece, Fadma não resistiu aos argumentos de peso de Sidi Hammou e deixou-se levar pelo seu amor…
Cáfila na Praia de Essaouira
Na poesia de Sidi Hammou estão patentes realidades da sociedade Amazigh tal como existia no seu tempo, sobretudo sobre a importância da mulher nessa sociedade matriarcal, o seu poder e direitos. O autor faz convergir na pessoa de Fadma Tagurramt todo o seu deslumbramento, numa espécie de alegoria à Mulher, referindo-se a ela como “formosa Fadma, rainha da mulher e do homem”, que o próprio Johnstone interpreta como uma constatação do fascínio da mentalidade Berbere masculina pela figura feminina. Este fascínio, que Johnstone afirma que deve ser a base com a qual se deve ler Sidi Hammou, tem o seu ponto mais elevado quando Sidi Hammou diz a Fadma:
“O que é mais doce do que o Céu agora? O que é mais profundo do que o Inferno? O ‘eu amo-te’ ou o ‘eu não te amo.”
Segundo Johnstone “Fadma é o símbolo belo da pura e nobre feminilidade. Ela representa o eterno mistério da existência, da criação, do Desconhecido”.
(JOHNSTONE, 1907 (2), p. 25-27)
“Três vezes bem-vinda seja a mensageira que disse, ‘eu vi-a’. Enquanto ela falava o meu coração tinha olhos, e eu contemplei o meu amor.
No vosso cintilante santuário, a vós estrelas, peço que não deixem que a minha face se torne fastidiosa para Fadma.
Como a pomba quando voa para o riacho, assim vem Fadma, caminhando com os seus pequenos pés, e alisando as suas plumas delicadas. Querida para mim ela é, mais querida que o festim das amêndoas é para os habitantes de Ait Ounain.
Fadma, a minha rapariga gazela.”
(JOHNSTONE, 1907 (2), p. 33-34)
Johnstone recolheu uma parte substancial da obra atribuída a Sidi Hammou, que publicou em 1907 no livro intitulado “The Songs of Sidi Hammou” referenciado na bibliografia.
Cavaleiros durante uma Tbourida
“Diz-me, o que é o paraíso neste mundo?
Será a poesia?
Será a mulher com quem partilhas a vida?
Será o potro que vive na tua companhia?
Serão as moedas que contemplas com desejo?
Ou é a manteiga e o mel, num prato reunidos?”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 75)
Outro autor que recolheu parte da obra de Sidi Hammou Taleb foi um capitão do exército colonial francês de nome Léopold Justinard. Justinard chega a Marrocos no ano de 1911 e instala-se em Fez para dar treino militar a um batalhão das tropas do sultão Mulay Hafid. Com a instituição do protectorado da França em Marrocos no ano seguinte, Justinard inicia a organização dos regimentos de goums ou harkas, nomes dados aos regimentos de soldados marroquinos integrados no exército colonial francês, sob as ordens de oficiais franceses.
Inicialmente Justinard é um adepto convicto da política colonial dos grandes qaids, ou chefes tribais, que utilizava as tribos como principal arma de pacificação das populações locais. “Esta política de poupar forças francesas e usar forças indígenas chama-se política dos grandes qaids (…) porque a sua localização como porteiros do Atlas e o seu relacionamento com as tribos do Suss, tornavam estes grandes leaders perfeitos testas de ferro políticos e físicos. São eles que actuarão ao sul do atlas para curvar El Hiba”.
(AGROUR, 2007, obra citada)
El Hiba, um dos heróis da resistência marroquina à colonização francesa, era originário de Smara, no Sahara. No ano de 1912, uma revolta no Suss proclama-o sultão e nesse mesmo ano entra em Marraquexe com o seu exército de Touaregs, com o objectivo de destronar o sultão colaboracionista Mulay Hafid. Um exército francês derrota-o em Sidi Bou Othman e El Hiba regressa ao Suss, onde continuará a guerra contra o invasor francês até à sua morte em 1919.
Os Touareg são um povo nómada berbere que habita o Sahara central e o Sahel. Touareg significa “abandonado” ou “errante”. O seu verdadeiro nome é Imuhar, cujo significado é “homens livres”.
Mausoléu do Rei Mohamed V em Rabat
“Repete esta palavra: ‘lamentavelmente!’, pensa no tempo que foge,
É preciso que saibas que a vida é apenas uma passagem.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 75)
A partir de 1916 Justinard é colocado em Tiznit como oficial de informações e de coordenação da acção das tribos leais aos franceses. No entanto, a partir da sua chegada a Tiznit que Justinard começa a entrar em contradição com o seu papel ao serviço do exercito colonial, dividido entre a França e o seu amor à cultura chleuh, que cada vez se entranha mais na sua personalidade.
Justinard era conhecido no Souss como “qebtan chelh”, ou “capitão chleuh”. Desde a sua chegada a Marrocos que aprendera o tachelhit e o tarifit, tendo escrito em 1914 e 1926 dois manuais destas duas variantes da língua Tamazight.
Para além destes manuais levou a cabo inúmeras recolhas de poesia cantada e oral amarg, para além de ter publicado trabalhos sobre literatura, história, poesia e cultura tachelhit.
Após a sua reforma em 1937, Justinard permanece em Marrocos continuando o seu trabalho sobre a cultura chleuh, até à sua morte em 1959. O seu contributo para o conhecimento da literatura oral do Suss foi enorme.
“Aquele a quem a vida satisfez todos os desejos
Troça da morte que o espera. Para o diabo…vida!”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 75)
Praça Jemaa El Fna, Marraquexe
Um dos poemas recolhidos pelo capitão Justinard no seu livro “Manuel de Berbere Marocain (Dialecte Chleuh)” de 1914 é o Poema a Sidi Hammou. Nesse poema, atribuído ao próprio Sidi Hammou, o mestre da poesia é evocado e colocado no papel de cantor:
“Que Deus guarde Sidi Hammou, o cantor,
O sábio, o poeta. Dizia, o pobre homem:
As mulheres, o vento, os escravos, o leão, o rio,
Qualquer um que aí procure o bem, aí encontra infelicidade.
Há aí mais mortos do que feridos, tudo é veneno.
Longe de nós, crianças do pecado; que o mal não aumente.
Que Deus guarde Sidi Hammou, o cantor,
O sábio, o poeta. Dizia, o pobre homem:
A bala da emboscada é mais amarga do que tudo.
As lágrimas do amigo que chora são amargas.
O oleandro é amargo; quem alguma vez o comeu achou-o doce?
Eu, comi-o pelo meu amigo, e não era amargo.”
(JUSTINARD, 1914, p. 65)
O Jebel Tissouka em Chefchauen
Justinard apresenta outros poemas que atribui a Sidi Hammou num capítulo da sua obra a que chama “As palavras de Sidi Hammou”.
“Ele disse: Ó morábitos vivos e aqueles que estão sob a terra,
Os morábitos de Tetouan e os de Azemmour,
Os do Sous e os de Demnat,
(Façam) que Deus nunca retire a água do meu balde,
Que o meu moinho possa moer sem a água de outro.”
(JUSTINARD, 1914, p. 66)
“Quando a gente reza cansada, o dia não acabou?
Quando a sua barba se torna branca, um homem não está acabado?
Quando o carniceiro acabou de vender, o mercado não acabou?
Recolhe os teus carneiros, pastor; agora o dia já passou.”
(JUSTINARD, 1914, p. 68)
“Eles abateram as flores do mundo, as pessoas de outros tempos;
As pessoas de agora, é no outono do mundo que estão.”
(JUSTINARD, 1914, p. 69)
“Ele nunca dirá, aquele que não tem amigo: eu fui feliz,
Porque a vida, são os amigos que a fazem passar.”
(JUSTINARD, 1914, p. 69)
“O fusil não se separa da bala,
Os olhos pintados não se separam do antimónio,
O coração não se separa dos seus amigos
Até que entrem todos debaixo da terra.”
(JUSTINARD, 1914, p. 74)
O Deserto Negro e o Sahara junto a Merzougha
Henri Duquaire na sua antologia adapta o poema a Sidi Hammou recolhido por Justinard, alterando o seu texto, agregando diversas partes de poemas diferentes num só e conferindo-lhe uma estrutura mais “homogénea”, apesar de referir que o retirou do texto original:
“Que Deus guarde Sidi Hammou. Dizia o pobre cantor:
As mulheres, o vento, o leão, os negros e o rio,
Aí vai procurar infelicidade quem aí quer encontrar o bem.
Mais mortos que vivos, nada a não ser veneno.
Para trás, crianças do pecado, que o mal não aumente.
Que Deus guarde Sidi Hammou. Dizia o pobre cantor:
Não há nada mais cruel que o chumbo da emboscada.
Não há nada mais cruel que as lágrimas dum amigo.
O oleandro é amargo. Quem, alguma vez, ao comê-lo,
Achou que ele era doce?
Comi-o pelo meu amigo. Não o achei amargo.
Que Deus guarde Sidi Hammou. Dizia o pobre cantor:
Quando as pessoas fizeram as suas orações, a meio da tarde,
Não é verdade que o dia acabou?
Terminada a venda do talho, não é o fim do mercado?
Aquele cuja barba se esbranquiçou, não é um homem acabado?
Recolhe os teus carneiros, pastor. É tempo. O dia já passou.
Eles tiveram o mundo em flor, a gente de outros tempos,
Mas os de agora estão no seu outono.
Que ele não diga nunca que passou a sua vida sem ter um amigo,
Porque a vida, são os amigos que a fazem passar.”
(DUQUAIRE, 1947, obra citada)
Vendedor de artesanato em Chefchauen
“O papel do poeta na antiga sociedade marroquina é considerável. Ele é antes de mais o cronista, o ‘historiador’ da sua tribo. Ele não canta só os seus amores e os seus contratempos pessoais, mas também e sobretudo os acontecimentos vividos pela sua tribo ou no seio da sua tribo. No decurso de uma disputa entre clãs rivais, é a ele que é feito o apelo para tomar a defesa dos seus. Respeitado e venerado como um santo, a sua palavra é ouvida, já que ele possui a sabedoria e o segredo das palavras que vão direitas ao coração.”
(BOUANANI, 1966, p. 3)
Nos dias que correm o papel dos poetas já não é o mesmo, nem nunca mais será. Na sociedade moderna, com as suas instituições e os novos meios de comunicação já não há lugar para eles. Em número cada vez mais reduzido, apenas subsistem nas pequenas aldeias e mercados do interior do país, nesses lugares onde o tempo teima em não passar.
“O caminho de Deus e o caminho da poesia dialogam,
O primeiro diz ao segundo: “eu não coloco questões,
Como eu sirvo a Deus,
Na minha morte, ele fará de mim o que quiser.”
O caminho da poesia responde então: “eu coloco questões,
Como agrado ao meu coração com a companhia de fadas,
Na minha morte, Deus fará de mim o que quiser,
O inferno como o paraíso, aceitarei.”
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 77)
Morábito no Alto Atlas junto a Ouarzazat
As ameaças à tradição oral e ao saber transmitido pelos poetas de tribo é cada vez mais uma realidade, seja pela modernização em si, com a generalização dos meios de comunicação, os movimentos e migrações populacionais e uma crescente descrença dos mais novos nos valores tradicionais, mas também pela própria uniformização dos dialectos do Tamazight e da sua transmissão escrita, seja através de caracteres latinos combinados com símbolos, seja através dos próprios caracteres Árabes.
A partir dos anos 70 do século passado surge uma geração de intelectuais amazigh que iniciam um processo de aparecimento de uma literatura escrita em tachelhit, de carácter erudito, que hoje se encontra disseminada nos principais meios urbanos. É personificada em autores como Muhmmad Moustaoui, Ali Azaykou, Hassan Id Belkasm e Muhmmad Akunad.
(EL MOUNTASSIR, 2004, p. 17)
Exemplo de Amarg
Musica de Lhaj Beleid, um dos poetas dos anos 30-40 do século passado
Lhaj Boubakr Anchad, outro dos rrays do século passado
Rayssa Rkiya Talbensirt
Fatima Tihihit
Parabéns pelo excelente trabalho e serviço prestado a Portugal e ao Reino de Marrocos
Obrigado e um abraço
Saudações a felicitar mais uma vez toda esta imensidão de caminhos e conteúdos, e imagens, e história, e sabedoria e entrega e afectos e sensibilidade e tempo e trabalho dedicados a este seu sítio que a net traz até nós permitindo pois esta partilha sua connosco !
Obrigada sempre, que cada vez que aqui venho por aqui me perco com gosto ! em prejuízo de outros tempo e afazeres obrigatórios ….mas ainda bem !
As suas palavras são a maior recompensa que o meu trabalho pode merecer. Ainda por cima num comentário a este artigo que é especialmente caro para mim. Agradeço do fundo do coração
… guifolki ! ak´misbarbi ! timin siuin . ( um pouquito do pouco que trouxe na memória de pouquíssimos mas muito ricos e afectuosos momentos de convívio com a nobreza da gente berbere , que quando se afeiçoam de verdade a alguém é para toda a vida ! …assim mo terão dito, assim o comprovo até hoje )