
Morabito nos campos de Alcácer Quibir
Mulei Maluco e o renegado Reduão são dois personagens da história comum de Portugal e Marrocos, protagonistas do acontecimento que marcou profundamente as duas nações — a Batalha de Alcácer Quibir.
Um marroquino e outro português, actores do mesmo lado da contenda, cuja ligação nunca foi assumida nem divulgada pelas entidades dos dois países, uma vez que revela uma complexa relação transcultural e desafios à sua narrativa oficial.
O enquadramento da sua história passa pela compreensão do papel das potências da época, sobretudo de Espanha e da Turquia, e particularmente do deylik de Argel, que influenciaram directamente os acontecimentos e as alianças na região.

“Carte Particulière des Côtes de l’Afrique qui comprend le Royaume du Maroc”, 1600-1699, Bibliothèque nationale de France
Os Sádidas
No início do século XVI, Marrocos encontrava-se dividido em duas zonas bem definidas.
No Norte, estabelecidos na sua capital, Fez, os Oatácidas governavam um território que se estendia até ao curso do Rio Morbeia (o Oued Oum er-Rbia, que desagua junto de Azamor), conhecido como Bled el-Makhzen ou País da Lei. O termo Makhzen, designação oficial do Estado marroquino, significa Armazém, simbolizando a entidade que armazenava os bens em tempos de abundância para os distribuir em períodos de necessidade.
Os Oatácidas ou بنو الوطاس Banu Uatás, eram uma dinastia de berberes Zenata originária das montanhas do Rif, que governou Marrocos entre 1472 e 1549.
A sul do Morbeia, existia uma espécie de autodeterminação das várias tribos árabes e berberes, num território que ficou conhecido como Bled es-Siba ou País do Caos (o termo “caos” está assim associado às autonomias que escapavam ao controlo do Makhzen). Havia duas excepções a esta autodeterminação tribal: a cidade de Marraquexe, governada pelos emires Hintata, e o Sus, onde a emergente dinastia Sádida, estabelecida na cidade de Tarudante, constituía uma ameaça a este estado de coisas.
Os Sádidas, السعديون As-Saa’diyun ou Banu Zaidan, eram uma linhagem de Chorfas (Xerifes em árabe; Chorfas no dialeto marroquino), nobres que descendiam do Profeta por via dos netos da sua filha Fátima Zahra. Vindos da Arábia Saudita, fixaram-se no século XVI em Tagmadert, próximo da actual Zagora, no Vale do Dra, ganhando notoriedade na luta contra os portugueses, instalados em Agadir desde 1505.
Nessa luta procuraram unir as várias tribos, cuja dispersão favorecia a presença portuguesa, nomeadamente os Haha, os Regraga e os Chiadma, alargando o âmbito de sua acção para a zona de Safi e Mogador, onde se digladiavam com os Mouros de Pazes, mouros aliados dos portugueses, comandados por Yahya ben Tafuft.
Em 1524, os Xerifes Sádidas conquistaram Marraquexe, até então sob posse do Emir Hintata Nasir b. Chentouf. No ano seguinte, o Xerife Ahmed Al-Aarej proclamou-se rei de Marraquexe, declarando circunstancialmente sua vassalagem ao Rei de Fez, o Oatácida Ahmed “o Português”, assim chamado por ter estado cativo em Lisboa no seguimento da conquista de Arzila por D. Afonso V.
O seu irmão, o Xerife Mohamed Xeque, manteve-se como rei do Sus, governando a partir de sua capital, Tarudante. No texto da Crónica de Santa Cruz do Cabo de Gué, os dois Xerifes são denominados como Xarife de Marraquexe e Xarife do Sus. (CÉNIVAL 1934: obra citada)

Gravura de Santa Cruz da Berbéria de 1790 (?), de Martinus Lambrechts, Museu Marítimo Nacional de Amesterdão
Durante a década de 1520, iniciou-se um período de lutas e de alianças entre Oatácidas, Sádidas e Portugueses. Mohamed Xeque assumiu o poder e, em 1541, conquistou aos portugueses Santa Cruz do Cabo Guer. Os exércitos Sádidas foram-se reforçando progressivamente com o apoio turco e de renegados, e, em 1548, entraram em Fez, tomando definitivamente a cidade dos Oatácidas em 1549 e unificando Marrocos sob o seu poder. (TERRASSE (1847) 2016: 160-7)
As vitórias Sádidas obrigaram a um recuo estratégico dos portugueses e ao reformular da sua política expansionista em Marrocos. Numa primeira fase, Portugal abandonou Safim e Azamor, concentrando a defesa do Sul numa superfortaleza construída de raiz, Mazagão, e, numa segunda fase, abandonou Arzila e Alcácer Ceguer, mantendo apenas no Norte as praças fortes do Estreito, Ceuta e Tânger.
O território dominado pelos Sádidas ultrapassava os limites do atual Reino de Marrocos, estendendo-se para leste até Tlemcen, na Argélia. O norte e o leste de Marrocos eram disputados com os turcos, estabelecidos em Argel, e entre Mohamed Xeque e Soliman, soberano otomano, instalou-se uma controvérsia. O Xerife ameaçava avançar até o Egito e ocupar territórios sob domínio turco, enquanto Soliman apelidava o Xerife de sultão dos pecadores. Essa contenda era alimentada por outros factores, como a incorporação, nas tropas do Xerife, de um destacamento de soldados turcos chamados janíçaros — uma tropa de elite formada por renegados europeus convertidos ao Islão, que já serviam ao anterior sultão Oatácida. (ELOUFRANI 1889: 78-9)
Governava Argel o Dey (governador) Hassan Paxá, filho de Khayr ad-Din Barbarossa, que, no ano de 1557, ordenou ao destacamento de janíçaros assassinar Mohamed Xeque. O Xerife foi decapitado durante uma campanha de pacificação nos Montes Deren (Adrar’n’Deren é a designação amazigh do Alto Atlas, que os portugueses chamavam Montes Claros) e a sua cabeça foi levada para Tlemcen e, posteriormente, para Constantinopla, onde foi pendurada nas muralhas da cidade. (ELOUFRANI 1889: 80)
Com a morte de Mohamed Xeque, assumiu o trono o seu filho Abdalá el-Ghaleb. Os turcos tentaram destroná-lo, enviando, em 1558, um numeroso destacamento de soldados apoiados pelo irmão do novo Xerife, Abu Saíd Otmane, mas foram derrotados próximo de Fez, na Batalha de Wadi al-Laban, e Abu Saíd Otmane foi executado.
À data desses acontecimentos, dois outros irmãos de Mulei Abdalá, Mulei Abdelmalek e Mulei Ahmed Al-Mansur (Almançor), encontravam-se em Sijilmassa com a mãe, Sahaba al-Rehmania, que, receosa pela vida dos filhos, fugiu com eles, no ano seguinte, para Argel e, posteriormente, para Constantinopla. Abdelmalek tinha então 18 anos, e Almançor, 16.
(Nota: o termo Mulei, مولاي Mawlay, significa Senhor, precedendo o nome dos soberanos de Marrocos, correspondendo ao nosso Dom).

“Receção em Argel” de Jan Luyken, 1684, Amsterdam Historic Museum
Argel cidade de cativos e renegados
Os dois irmãos permaneceram no seio do Império Otomano durante 17 anos, passando a maior parte desse período na cidade de Argel e deslocando-se frequentemente a Constantinopla.
Argel fora integrada em 1516 no Império Otomano, após a sua conquista por Aruj Barbarossa, também conhecido como Bábá Aruj (papá Aruj), que instituiu o deylik de Argel, uma espécie de principado apoiado pelo Grão-Turco de Constantinopla. Aruj acedera ao pedido de ajuda do Xeque de Argel para expulsar os espanhóis instalados no Penhão de Argel, mas não só expulsou os espanhóis como depôs o Xeque.
A Arudj sucedeu o seu irmão Kheir ad-Din Barbarossa, que governou entre 1518 e 1546, colocando definitivamente Argel sob o domínio otomano, transformando seu território numa província turca e fundando o estado moderno de Argel. Kheir ad-Din foi sucedido pelo seu filho Hassan Paxá, que governou entre 1546 e 1567, e a este sucedeu Occhiali Paxá, que governou entre 1568 e 1577.
Nota: a designação Barbarossa explica-se pelo facto de Aruj ter a barba ruiva. O seu irmão Kheir ad-Din não tinha, mas após a morte de Aruj começou a tingir a sua com henna em sua homenagem.
Em 1577, governava Argel Rabadan (ou Ramadan) Paxá, em substituição de Occhiali, e nesse mesmo ano assumiu o poder Hassan Veneziano, um renegado italiano que foi beylerbey (governador dos governadores) da cidade até 1586.
Argel era, na época, uma metrópole com cerca de 125.000 habitantes, uma cidade cosmopolita habitada por mouros, mouriscos, turcos, berberes, judeus e muitos renegados e comerciantes europeus, que faziam do corso e do tráfico de escravos o seu grande negócio. Era o maior centro de corso no Mediterrâneo e de detenção de cativos. Estima-se que o número de cativos atingisse cerca de 25.000 — entre 20% e 25% do total da população — segundo o Dr. António de Sousa, eclesiástico português cativo entre 1577 e 1581 (HAEDO 1612: 8). Emanuel d’Aranda, viajante, historiador e poeta nascido em Bruges que esteve cativo dois anos em Argel, calculava que os escravos na cidade chegavam a um total de 30.000 a 40.000 almas (ARANDA 1662: 154). Só entre 1520 e 1660 teriam sido vendidos em Argel entre 500.000 e 600.000 escravos cristãos (GARCÉS 2005: 84).

“Maneira como os prisioneiros cristãos são vendidos como escravos no mercado do Argel” de Jan Luyken, 1684, Amsterdam Historic Museum
“Quando llegué vencido en esta tierra,
Tan nombrada en el mundo, que en su seno
Tanto pirata encubre, acoge y cierra,
No pude al llanto detener el freno:
Que à pesar mio, sin saber lo que era,
Me vi el marchito rostro de agua lleno.”
(CERVANTES 2023: 31-2)
A chegada dos cativos às cidades era um acontecimento terrível, sendo obrigados a desfilar pelas ruas, sujeitos aos insultos e agressões da populaça. Os escravos eram divididos em dois grupos: os destinados ao trabalho e os destinados a ser resgatados. Estes últimos eram considerados um investimento para quem os comprava.
Nos mercados de escravos, os prisioneiros eram examinados minuciosamente para avaliar a sua idade e condições físicas, analisando desde calos nas mãos, articulações, dentes, órgãos sexuais, até o corte de cabelo, que poderia indicar origem nobre. Os renegados participavam nessas inspecções para ajudar a determinar a nacionalidade e a origem social dos cativos, fatores fundamentais para estabelecer o preço do resgate. Dos que não eram resgatados, os mais afortunados eram os que acabavam como criados em residências particulares, normalmente bem tratados e que desenvolviam relações de amizade com seus senhores. (DAVIS 2006: 114-5 e 126-7)
As mulheres jovens eram rapidamente vendidas para os haréns. Quanto aos mais pobres, acabavam invariavelmente nas masmorras, sujeitos aos maus-tratos e aos trabalhos forçados, ou enviados para as galés como remadores. José Rodrigues, natural da Madeira, foi aprisionado e levado para as galés. Conta que era comum a mutilação dos remadores ao mínimo pretexto. Normalmente cortavam-lhes o nariz ou as orelhas. (CIAPPARA 2008: 25)
As prisões eram chamadas Banhos (Bagnos). Uma possível origem do termo é a de que essas prisões eram catacumbas cobertas com abóbadas onde existia uma abertura que servia para deitar água e alimentos. Outra explicação era o facto de serem normalmente edifícios com um pátio central e um tanque de água no centro. João de Mascarenhas, português cativo cinco anos em Argel, após ter sido aprisionado pelos turcos ao largo da Ericeira, atribui a origem do termo aos muitos banhos públicos transformados em prisões para conseguir acolher o grande número de cativos que existiam na altura. (MASCARENHAS [1627] 1993: 71)

“Cautiverio de Cervantes. Interior de la prisión llamada Baño Real donde amontonaba sus cautivos el Rey de Argel”, 1862-1863, ilustração da obra El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha. Madrid: Imprenta Nacional
Miguel de Cervantes refere-se aos Banhos de Argel:
“Eu passava a vida metido numa casa ou prisão que os turcos chamavam banho, onde recolhem os cativos cristãos, tanto os que são do rei como os que são dos particulares, e ainda os que chamam do armazém, que é o mesmo que cativos do concelho, empregados nas obras públicas do município e misteres conexos. Alguns chatins costumam trazer os cativos para estes banhos, mormente quando se trata de cativos de resgate, onde os têm folgados e seguros à espera que venham compradores. Os cativos de el-rei, que são para resgate, também não saem ao trabalho com a chusma, a não ser que tardem a vir resgatá-los.” (CERVANTES 2018: 312)
O Dr. António de Sousa refere que os escravos comuns, destinados às obras públicas de Argel, estavam confinados no Banho da Bastarda, onde 400 a 500 indivíduos eram mantidos em condições sórdidas. Os cativos destinados a serem resgatados eram encerrados no Banho Real, situado na rua do mercado, com capacidade para entre 1.500 e 2.000 cativos cristãos que pertenciam ao Dey (Governador) Hassan Veneziano. De forma rectangular, tinha 70 pés de comprimento por 40 pés de largura, dois pisos, com múltiplas câmaras abobadadas, e pátio central com uma cisterna com água fresca.” (HAEDO 1612: 42-3)
“Tengo yo el Ave Maria
Clavada en el corazón,
y es la estrella que me guía,
en este mar de aflicción.”
(CERVANTES 1864:269-70)
A esmagadora maioria dos renegados eram cativos que, de forma voluntária ou forçada, acabavam por se converter ao Islão, transformando um futuro sem perspectivas numa vida em sociedade. A principal causa dessa conversão era a incapacidade de comprar a própria liberdade, já que apenas os nobres eram resgatados pelas suas famílias mediante o pagamento de somas avultadas de dinheiro.
Um renegado, ou elche — palavra derivada do árabe علج Ilj, que significa estrangeiro — não era apenas alguém que mudava de lado, colaborando com o inimigo, mas alguém que negava a sua fé, neste caso a fé cristã, convertendo-se ao Islão e renegando o seu próprio passado e identidade.
Uma nota interessante dada pelo Dr. António de Sousa sobre a razão da conversão dos renegados ao Islão era “porque não queriam fazer trabalho escravo ou porque preferiam uma vida de liberdade, marcada pelos prazeres da carne”. (HAEDO 1612: 9)

“Capitão de corsários argelino” de Andreas Matthäus Wolfgang, 1687, Brown University Library
Germain Mouette foi um escritor francês que esteve 11 anos cativo em Marrocos, tendo sido vendido no mercado de escravos de Salé. Durante o cativeiro, a mulher do seu proprietário propôs-lhe várias vezes que se tornasse renegado:
“A minha patroa, que era uma jovem muito bela e que falava muito bem espanhol, defendeu-me dos golpes e das agressões do seu marido e pediu-me várias vezes que me tornasse renegado, para me dar sinais mais amplos da sua afeição, oferecendo-me casar com uma sobrinha dela, muito bela e muito rica.” (MOUETTE 1683: 27-8)
Como negou, Mouette continuou a dormir nas masmorras com os seus companheiros de cativeiro.
“Te digo agora, christão,
Qu’és muito engraçado
Se quizeras ser um turco
Ou um mouro arrenegado
Dera-te a mais linda cara
Que em Argel se há criado.
Não me quero fazer turco
E nem mouro arrenegado,
Que tenho em meu branco peito
O senhor cruxificado;
Se essa offensa lh’eu fizesse
Logo era castigado.”
(OLIVEIRA 1905: 81)
O cativo Simão Gonçalves fez referências relevantes no tribunal da inquisição sobre a sexualidade no seio dos renegados, como ilustrado nesta declaração de um deles, ao dizer que “o demónio que assombrava as suas noites e o dirigia em direção ao Islão tomava rostos de mulher e falava-lhe de liberdade”. (BENNASSAR [1989] 2006: 494)
Um denominador comum à maioria das conversões de cativos era a relação com o amor, que representava um fator de estabilidade emocional, criação de laços familiares e de integração social.
Num contexto europeu extremamente castrador e culpabilizador do prazer, onde a fornicação era considerada um pecado mortal, a liberalidade do Islão em relação ao prazer sexual, à facilidade dos casamentos — inclusive com várias mulheres — e às relações de concubinagem com escravas, além do carácter temporário com que a sociedade muçulmana aceitava essas relações, era extremamente atraente para homens em situação de risco e carência.

“Le Marché aux esclaves” de Jean-Léon Gérôme, circa 1866, Sterling and Francine Clark Art Institute
A conversão e o casamento eram, inclusivamente, uma solução para situações de relações proibidas, como as que os cativos mantinham com mulheres muçulmanas, além de evitar a homossexualidade, que se generalizava em muitos presídios. No entanto, mesmo sendo consideradas proibidas e reprimidas, as relações de sodomia com jovens rapazes aprisionados eram frequentes, especialmente entre os elches, incluindo os próprios alcaides. Esses jovens eram chamados bardaches, uma designação que tem origem no persa bardag e significa “jovem homossexual ou efeminado”. (MOTT, 2015, p. 18-27)
O consumo de vinho era comum no seio dos renegados, como atesta António de Sousa, que fala das tabernas e do vinho em Argel:
“Ninguém anda por uma rua em momento algum sem se deparar com esses bêbados, muitos deles alcaides muito importantes, Arrais e homens ricos.” (HAEDO 1612: 178)
Nas próprias prisões existam tabernas, como refere Emanuel d’Aranda:
“Os taberneiros são Escravos Cristãos do mesmo Banho, e os que vêm beber são corsários e soldados Turcos, que se divertem a beber e fazer pecados abomináveis”. (ARANDA 1662: 18)
Os renegados, que constituíam metade da população da cidade (fazendo fé aos números do Dr. Sousa, de que 25% dos habitantes eram cativos e 50% eram renegados, então 75% da população da cidade era europeia!) (HAEDO 1612: 9). Tinham grande poder em Argel — dominavam a guerra do corso, o negócio dos cativos e ocupavam lugares de relevo na governação e no aparelho administrativo e militar otomano. António de Sousa refere que 21 dos 35 navios corsários de Argel eram de renegados europeus. (HAEDO 1612:89-91)
O renegado judeu e funcionário público, alcaide Mahamet, era o proprietário do Dr. Sousa. Era um dos 23 alcaides mais importantes de Argel, um judeu que se foi convertendo a outras religiões de acordo com as conveniências dos vários momentos — do judaísmo para o Islão, do Islão para o Cristianismo, e do Cristianismo novamente para o Islão. Sousa referiu a propósito deste personagem: “Ouvi dizer publicamente e praticar a muitos mouros e turcos por todo esse Argel, que este alcaide Mahamet, o judeu seu patrão, a nenhum Deus reconhece, nem teme, nem adora; não é mouro ou turco, nem judeu, nem cristão.” (HAEDO 1612: 97)
E acrescenta: “O que todos dizem da sua vida e costumes mais que gentílicas é que não faz não faz outra coisa senão ocupar-se dia e noite a revolver moeda, contar moeda, pesar moeda, negociar moeda, atesourar moeda, e fundir ouro, prata, alquimia e fazer às escondidas moeda falsa.” (HAEDO 1612: 97)
Existia inclusivamente um provérbio em Argel segundo o qual “malicioso e astuto como o alcaide Mahamet, o judeu.” (HAEDO 1612: 97)

“A Batalha de Lepanto”, anónimo, National Maritime Museum of London
Mulei Maluco
Mulei Abdelmalek e Ahmed Almançor participaram em várias operações militares turcas. Na Batalha de Lepanto, em 1571, Mulei Abdelmalek, que tinha então 30 anos, foi feito prisioneiro e levado para Espanha. Mais tarde, foi encarcerado em Orão, que na época estava sob domínio espanhol, por sugestão de André Gaspar Corso (de quem mais adiante falaremos) a Filipe II. Dois anos depois, Mulei Abdelmalek conseguiu fugir para Argel.
Em Argel, passou a ser conhecido como Mulei Maluco. A designação Mulei Maluco é uma corrupção de Mulei Malek (عبد الملك Abdelmalek, significa servo do soberano, ou servo de Deus) e surge escrita em documentos da época de variadíssimas formas:
Em documentos portugueses, é referido como Mulei Maluco, Maluco ou Malluco; em documentos espanhóis, aparece como “El Maluco (donde Melic, que todo es uno)”, El Malucho, Maluch, Muley Meluco ou Muley Maluco; em documentos franceses, como “Mulei Meluch, ou encore Moulouc, Malaco, Maleek… noms sous lesquels était connu en Europe le chérif Moulay Abd el-Malek”, além de Malen, Maluc, Mulei Moluc ou Muley Maluco Abdelmelech; em documentos italianos, aparece como Molu Moluch, Molucco, Moluco ou Molen Moluc; e em documentos ingleses, como Mulla Maluca ou Maluca.
Frei Luis Nieto tem uma descrição de Mulei Maluco que merece ser lida:
“Era homem de estatura mediana, reto de corpo, com costas largas, e membros fortes; era branco como leite. Com uma rosa em cada bochecha, que acompanhava com muita barba preta, os olhos verdes e grandes, e em tudo mais era de muito belas feições e homem muito gentil. Além disto, tinha muita força, que exercitava continuamente em escaramuças, treinando os cavalos, e a atirar ao arco em seco. Falava o nosso espanhol muito claramente e escrevia-o; sabia também a língua italiana muito particularmente, a língua turquesca falava-a melhor que nenhuma, excepto a sua língua materna, que era o árabe, no qual era singular poeta.
Era homem engenhosíssimo e de grande juízo e descrição em tudo, em especial acerca do regime e governo dos seus reinos; sabia tocar diversos instrumentos e dançar com muita elegância: era aficionadíssimo das armas e negócios de guerra, e para isso fez com suas próprias mãos algumas peças de artilharia; em todos os ofícios era universal, e apesar de ser infiel, tinha muita amizade aos cristãos, e em particular à gente espanhola.
Parece claro por muitos que libertou de graça, e enviou a estas partes, que os três anos que reinou foram mais de duzentos.” (NIETO 1891: 454-5)

Assinatura de Mulei Abdelmalek, conforme facsimile de uma carta escrita a Filipe II, existente nos Arquivos do British Museum
É curioso este comentário de Henry de Castries: “O Xerife Moulei Abd el-Malek é o único de todos os soberanos de Marrocos que assinou documentos com caracteres latinos”. (LES SOURCES… 1918: 210)
Mulei Maluco casou-se em 1574 com a filha de Agi Morato, de nome Zahara, admirada por todos pela sua grande beleza, especialmente por Miguel de Cervantes, que a descreve como a mulher mais bela da Berbéria. (COTARELO Y VALLEDOR 1915: 236-7)
“Casou-se com Mulei Maluco, de quem assim fala na comédia, Rei de Fez, mouro famoso, discreto e muito instruído, que falava com perfeição o turco, o espanhol, o alemão, o italiano e o francês, morto de um tiro de mosquete na célebre batalha de Alcácer Quibir.” (COTARELO Y VALLEDOR 1915: 237)
Miguel de Cervantes compôs este poema a Mulei Maluco, incluído na obra Baños de Argel:
“Muley Maluco es su esposo,
El que pretende ser rey
De Fez, moro muy famoso,
Y en su secta y mala ley
Es versado y muy curioso.
Sabe la lengua turquesca,
La española y la tudesca,
Italiana y francesa;
Duerme en alto, come en mesa,
Sentado à la cristianesca.
Sobre todo, es gran soldado,
Liberal, sabio, compuesto,
De mil gracias adornado.”
(CERVANTES 1864: 294)
As referências ao carácter de Mulei Maluco são várias. David Lopes refere que era reconhecidamente um homem tolerante, prudente e sensato, e os cronistas da época “são unânimes em elogiar as suas qualidades morais, isto é, de tolerância, prudência e experiência, coisas que a escola da adversidade dá, aos que sabem ler no seu livro”. (LOPES 1989: 77-8)

“Entrada solene do novo Pacha em Argel” de Jan Luyken, 1684, Amsterdam Historic Museum
Os anos de Argel
Mulei Maluco frequentava a sociedade argelina, extremamente heterogénea, tendo-se cruzado com figuras de relevo, entre as quais destacamos as seguintes: o comerciante, resgatador e mediador diplomático André Gaspar Corso; o soldado espanhol cativo (e grande romancista), Miguel de Cervantes Saavedra; o eclesiástico português cativo Dr. António de Sousa; o renegado Albanês Agi Morato e a sua filha, a bela Zahara; o renegado de Múrcia e corsário, Murad Arrais Maltrapilho; o renegado Veneziano e regente Otomano de Argel, Hassan Veneziano; e o renegado português ao serviço dos otomanos, Alcaide Reduão.
André Gaspar Corso era o mais novo e mais proeminente de cinco irmãos proprietários de uma agência de resgate de cativos e de mediação diplomática, com ligações a Filipe II de Espanha, de quem seriam espiões. Estava sediada em Valência, mas tinha ramificações pelo Mediterrâneo, nomeadamente em Argel, onde André se estabeleceu e onde conheceu Mulei Maluco, de quem se tornou amigo íntimo. Quando Mulei Maluco regressou a Marrocos em 1576, André juntou-se a ele e tornou-se seu conselheiro, regressando a Espanha após a sua morte da batalha de Alcácer Quibir.
Miguel de Cervantes esteve cativo na cidade entre 1575 e 1580. Foi capturado na abordagem do navio do corsário e renegado albanês Arnaut Mamí à Galera Sol, onde seguia no seu caminho entre Nápoles e Barcelona. Ficou escravo do lugar-tenente de Arnaut Mamí, o também corsário e renegado grego Dali Mamí. O seu prestígio, bem como a facilidade de escrita e tradução, deram-lhe alguma liberdade de movimentos, o que lhe permitiu conhecer figuras de destaque da sociedade argelina. Na História do Cativo, do romance Dom Quixote de la Mancha, Cervantes confessa que Hassan Veneziano poupou um cativo chamado Saavedra (ele próprio) de maus-tratos e torturas:
“Somente tratou com ele um soldado espanhol, um tal de Saavedra, o qual com ter feito coisas que ficarão na memória daquelas gentes por muitos anos, e todas para alcançar a liberdade, nunca lhe deu bastonadas, nem lhe mandou dar, nem lhe dirigiu más palavras; e pela menor coisa de muitas que fez, temíamos todos ser empalados, e assim temeu ele mais do que uma vez”. (CERVANTES SAAVEDRA 1605: 237)
Este tratamento privilegiado de que Cervantes beneficiou, especialmente após as suas quatro tentativas de fuga, pode ser em parte explicado pela pretensão de Agi Morato em tornar Argel independente dos otomanos, contando com o apoio da Espanha. Nesse sentido, teria instruído o Dey Hassan Veneziano a poupar o nobre fidalgo espanhol, que muito possivelmente teria também ligações a Filipe II. (GARCÉS 2005: 113-4)
António de Sousa, eclesiástico português vinculado à Igreja hispano-italiana, foi teólogo e doutor em direito canónico. Foi aprisionado em 1577 durante uma viagem entre Barcelona e La Valeta, quando a sua galera San Pablo foi abordada por 12 galeras corsárias comandadas por Arnaut Mamí, o mesmo renegado que capturara Miguel de Cervantes dois anos antes. Foi levado para Argel onde ficou cativo entre 1577 e 1581.
A obra de António de Sousa foi compilada e publicada pelo arcebispo de Palermo Diego de Haedo em 1612, mais de 20 anos após a sua morte, com o título Topografia e História Geral de Argel, sem referência à autoria dos textos que utilizou. A Topografia é um documento extraordinário que caracteriza a cidade de Argel, a sociedade argelina da época e vida dos cativos sob o domínio otomano, com especiais menções à relação de amizade do Dr. Sousa com Miguel de Cervantes.
Nos documentos consultados o nome do eclesiástico português surge escrito como Antonio de Sosa, figurando em língua castelhana.
As referências ao trabalho de António de Sousa não ficariam completas sem referir o seu provável contributo para a cartografia da cidade de Argel. Aurélio Vargas Díaz-Toledo refere a existência de um documento manuscrito depositado na British Library datado de 1577, que “se trata de una missiva, provavelmente acompanhada de um mapa e de algum outro esclarecimento não conservados, onde se descrevem um conjunto de lugares estratégicos referenciados por umas letras maiúsculas de A a Z (23 lugares) e por uns números de 10 a 17 (8 lugares), que fariam referência, sem dúvida, ao desaparecido mapa”. (DÍAZ-TOLEDO 2021: 41)
A paternidade de António de Sousa em relação ao documento parece evidente, pela semelhança com outros escritos seus, como a Topografia ou o Diálogo de los Mártires de Argel. (DÍAZ-TOLEDO 2021: 43-4)

“Planta de Argel Fortificada, anno, 1575”, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Esta planta foi provavelmente desenhada por Alexandre Massai a partir de um esboço do cativo António de Sousa
A Planta Cidade de Argel fortificada, anno, 1575, existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Casa de Cadaval, n.º 29, fl. 110) integra-se num conjunto de documentos oferecidos a D. João IV por Frei Luís da Natividade. Esse conjunto de documentos, com o título Descrição e plantas da costa, dos castelos e fortalezas, desde o reino do Algarve até Cascais, da ilha Terceira, da praça de Mazagão, da ilha de Santa Helena, da fortaleza da Ponta do Palmar na entrada do rio de Goa, da cidade de Argel e de Larache, (ref.ª PT/TT/CCDV/29), inclui várias plantas desenhadas por Alexandre Massai, conforme refere o texto introdutório. As plantas têm todas o mesmo grafismo, a marca inconfundível do traço de Alexandre Massai. As que se referem a locais por ele não visitados teriam sido desenhadas a partir de originais de outros autores, como é o caso da Planta de Larache, “conforme o original de João Matteo Benedetti”. Nesta lógica, não é de afastar a possibilidade de que a referida Planta de Argel tenha sido desenhada a partir de um esboço realizado por um cativo, muito provavelmente pelo Dr. António de Sousa.
Os trabalhos de Maria Antónia Garcés e de Aurélio Vargas Díaz-Toledo levantam inclusivamente a possibilidade de António de Sousa ser informador ou agente secreto de Filipe II. (DÍAZ-TOLEDO 2021: 22)

Detalhe da planta anterior representando o Banho del-Rei e o Banho dos Enfermos
Agi Morato ou Hajj Murad (حج Hajj significa Peregrinação e é um título que se coloca antes do nome dos homens que realizaram a peregrinação a Meca) era um renegado albanês (de Ragusa, hoje Dubrovnik, na Croácia), um dos homens mais ricos da Berbéria, com grande influência no seio da corte do Grão-Turco, de quem se considerava um alter-ego. Tinha o cargo de chaouch ou enviado diplomático do Grão-Turco e do Dey de Argel. Foi negociador otomano da Grande Paz com Espanha de 1579-1590, que contou, na qualidade de intermediários do lado de Filipe II, com Fresneda e André Gaspar Corso.
Agi Morato, sogro de Mulei Maluco e pai da sua mulher Zahara, apoiou ativamente a sua pretensão ao trono de Marrocos. Tinha inclusivamente o desejo de realizar uma confederação de estados que unissem Filipe II de Espanha, o Grão-Turco de Constantinopla e Mulei Maluco de Marrocos. (LES SOURCES… 1961: 329).
Quando Agi Morato casou a sua filha com Hassan Paxá, no seguimento da morte de Mulei Maluco na batalha de Alcácer Quibir, entabulou contactos com altas figuras ligadas a Filipe II, sugerindo uma eventual independência de Argel face aos turcos. Esta situação pode explicar o apoio de Murat Arrais a Cervantes e a condescendência de Hassan Veneziano por ele, apadrinhada por Agi Morato. (GARCÉS 2005: 113-4)
Filha de Agi Morato, a bela Zahara (aliás Zoraida, aliás Zara) era neta de cristãos, tanto pelo lado do pai como da mãe. Tinha uma beleza quase indescritível, como se depreende de várias passagens escritas por Cervantes:
“Zoraida apresentou-se a meus olhos bonita e ricamente adereçada e fiquei deslumbrado. Vê-la assim, e tendo em conta os actos da sua bondade para comigo, era como estar perante uma deidade que descesse do céu à terra para meu gosto e alívio dos meus males.” (CERVANTES 2018: 321)
“Admiravam-se da formosura de Zoraida, que naquela ocasião estava mais encantadora do que nunca. Por um lado, a fadiga do caminho, por outro a exultação de se ver em terra cristã, livre de perigos, davam-lhe ao rosto cores tão vivas e fagueiras que, a menos enganar-me a afeição, dizia que debaixo da rosa do sol não havia mulher mais bonita”. (CERVANTES 2018: 331)
“Zara ou Zoraida, que por ser a mais rica e formosa mulher da Berbéria era pretendida por muitos vice-reis e altas personalidades do país.” (COTARELO Y VALLEDOR 1915: 236-7)
Zahara casou-se com Mulei Maluco em 1574 e, quando este regressou a Marrocos em 1576, ficou em Argel “cativa” como garantia da fidelidade do Maluco ao Grão-Turco. Após a morte de Mulei Maluco em 1578 na batalha de Alcácer Quibir, casou-se em segundas núpcias, no ano de 1580, com o Dey Hassan Veneziano, para grande desgosto de Miguel de Cervantes.

“Galera barbaresca” de Jan Luyken, 1684, Amsterdam Historic Museum
Murad Arrais Maltrapilho era um renegado de Múrcia, proprietário de um barco de 22 bancos, um dos principais corsários de Argel, que participou na captura do Dr. Sousa. A sua amizade por Cervantes valeu ao escritor espanhol ter a vida salva após a sua quarta e última tentativa de fuga, por ter intercedido junto do Paxá Hassan Veneziano. Na História do Cativo de Cervantes, Murad é o renegado que traduz as cartas de Zoraida. Diz Cervantes: “Por último, tomei a resolução de fiar-me de um renegado, natural de Múrcia, que se fazia muito meu amigo, depois de tirar inculcas que até certo ponto me garantiram a sua lealdade.” (CERVANTES 2018: 314)
Miguel de Cervantes chama-lhe bom renegado, mas o Dr. Sousa chama ao Maltrapilho “grande traidor” por ter estado envolvido na execução de um residente grego de Cádis, chamado Nicolo, que foi queimado vivo em 1574, em represália pela execução de um corsário argelino em Cádis. (HAEDO 1612: 175-7)
A casa de Maltrapilho era conhecida como lugar de encontro para corsários, renegados e mercadores estrangeiros que passavam pela cidade. (GARCÉS 2005:117)
Hassan Veneziano, de nome original Andreta, era um renegado italiano capturado pelos Turcos e propriedade do Dey de Argel, Ochali, de quem seria um dos sucessores no cargo. Foi um corsário de renome, fazendo frequentes incursões às costas de Espanha, trazendo mouriscos fugitivos e capturando escravos cristãos. Era temido pelos cativos devido à sua crueldade e torturas que lhes infligia. Quando chegou a Argel em 1577 aumentou enormemente o seu património, apropriando-se dos escravos de elite nas mãos de corsários, turcos e mouros, incluindo os que pertenciam ao anterior Dey, Ramadan Paxá. Confiscou bens de primeira necessidade existentes na cidade, aumentou os impostos e cunhou moeda. (HAEDO 1612: 175-7)
Cervantes descreve-o da seguinte forma:
“Grande, magro, pálido, a barba rala e ruiva, os olhos brilhantes e raiados, ar altivo e cruel”, acrescentando que “cada dia enforcava alguém. Empalava este, cortava as orelhas àquele, e por nada, ou melhor, sem razão nenhuma, que os próprios turcos reconheciam que ele fazia o mal só por fazer, porque o seu feitio o levava a ser um assassino do género humano”. (CERVANTES SAVEDRA 1605: 237)
Reduão o renegado (علج el-Euldj) era um renegado português natural de Vila Real ou de Portalegre, ao serviço dos otomanos, que Mulei Maluco conheceu em Argel e que se tornou seu lugar-tenente. Viria ser seu camareiro e secretário, chegando ao lugar de Vice-Rei de Marrocos. Era o alcaide dos alcaides (alcaide era o título que os renegados ao serviço do sultão tomavam). As suas ligações aos otomanos levantam suspeições sobre a sua lealdade aos xerifes, concretamente a Mulei Maluco e ao seu irmão e sucessor Ahmed Almançor, existindo inclusivamente a suspeita que foi ele que envenenou Mulei Maluco em vésperas da Batalha de Alcácer Quibir, para governar Fez ao serviço dos otomanos.

A Habs Qara ou Prisão Cara de Mequinez, uma das principais prisões de cativos europeus em Marrocos
Língua Franca
A origem da Língua Franca esteve na necessidade de entendimento entre proprietários árabes/turcos e escravos europeus, criada por iniciativa dos proprietários, utilizando uma mescla simplificada das várias línguas dominantes na comunidade dos escravos. A Língua Franca surge assim inicialmente ligada à escravatura de europeus, como um instrumento para que os carcereiros e os proprietários se fizessem entender com os seus escravos, sendo também a língua preferencial do corso, utilizada pelos corsários nas suas incursões terrestres e abordagens de navios — non paura! non paura! (não tenham medo! não tenham medo!) gritavam quando abordavam um navio, preferindo sempre a rendição das suas presas a um confronto direto, que podia provocar feridos desnecessários, de cura muitas vezes incerta, e que colocava em risco o valor da própria mercadoria a apresar.
É extremamente relevante, e de certa forma paradoxal, o facto de a Língua Franca ter sido criada pelos muçulmanos, por relutância em se fazerem entender com os cristãos em árabe, já que para o carcereiro muçulmano não era tolerável que o prisioneiro falasse o árabe, a língua do Alcorão, na sua condição de não crente. Tão pouco era aceitável para o carcereiro muçulmano que o prisioneiro falasse a sua língua natal, que não entendia. A Língua Franca mantinha-o no seu universo cultural e linguístico, e permitia também um entendimento entre prisioneiros de várias origens.
Era sobretudo uma língua com carácter transitório, apenas utilizada durante o período em que os indivíduos se encontravam cativos, voltando a falar a sua língua natal se fossem resgatados, ou adotando a língua árabe se fossem convertidos. Mas era acima de tudo uma língua que assegurava uma distância e frieza no relacionamento entre carcereiro e prisioneiro, em momentos de grande conflito e sofrimento.
“Os muçulmanos, na sua condição dominante, são eles, e não os escravos, que teriam produzido este jargão. Este paradoxo em que são os mestres que aprendem a língua dos seus escravos (e não os escravos que adotam a língua dos seus mestres) faz sentido? (Sim, se existe no horizonte da catividade a probabilidade de reintegração). A língua franca seria assim a língua de situações transitórias”. (DAKHLIA 2008: 70-71)
Para além da “neutralidade” que a Língua Franca conferia aos relacionamentos entre pessoas de lados opostos desta contenda, tinha a vantagem de dispensar qualquer operação de tradução, ou seja, qualquer intermediação. A adoção de um falar românico e não árabe-turco pelos patrões de escravos europeus foi inevitavelmente influenciada pelo facto de muitos desses patrões serem renegados europeus.
As primeiras referências conhecidas sobre a utilização da Língua Franca surgem na obra de Miguel de Cervantes El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de la Mancha, de 1605, na História do Cativo.
Diz a bela Zoraida:
“Si, si, Maria; Zoraida macange.” Macange é a forma do árabe (dialectal) ما كان شي Ma kan chi (não é), e a frase traduz-se por “Sim, sim, Maria; Zoraida não é (o meu nome)”. (CERVANTES SAAVEDRA 1605: 225)
Quando o Cativo procura Zoraida na casa do seu pai, encontra-o este fala-lhe em Língua Franca:
“E assim decidi ir ao jardim, e ver se podia falar com ela: e com intuito de colher algumas ervas, um dia antes da minha partida fui lá, e a primeira pessoa que encontrei foi o seu pai, que me disse na língua que em toda a Berbéria e mesmo em Constantinopla se fala entre cativos e Mouros, que não é nem Mourisca, nem Castelhana, nem de nenhuma outra nação, mas uma mistura de todas as línguas, com a qual todos nos entendemos.” E mais adiante, Cervantes apelida a Língua Franca de “mezcla de lenguas” e de “la bastarda lengua”. (CERVANTES SAAVEDRA 1605: 245-6)
Cervantes coloca nas palavras de Zoraida duas outras expressões em Língua Franca:
“Quando ela, voltando-se para mim, os olhos cheios de lagrimas, disse-me Amexi Christiano, Amexi, que quer dizer: Vais-te Cristião, vais-te?” e mais adiante “Amexi Christiano, Amexi: Vai-te Cristão, vai-te.” (CERVANTES SAAVEDRA 1605: 247)
Nestas passagens, Cervantes utiliza o verbo árabe مشى (maxaa), andar, sob a forma أمشي (amexi), vou, tanto no presente como no imperativo, ou seja, sem conjugação.
Na obra Baños de Argel, Cervantes também utiliza a Língua Franca, quando várias crianças mouras acossam dois escravos cristãos: “Rapaz cristiano, non rescatar, non fugir; don Juan non venir; acá morir, perro, acá morir!”. (Rapaz cristão, não serás resgatado, não vais fugir; don Juan não virá: vais morrer cá, cão, vais morrer cá). (CERVANTES 1864: 246)

“Escravos cristãos a trabalhar sob a dominação dos Barbarescos de Argel” e “Escravos cristãos acorrentados”, ilustrações da obra Historie van Barbaryen en des Zelfs zee-roovers de Pierre Dan, 1684
Transcrevemos de seguida as passagens da Topografia de António de Sousa que referem a Língua Franca:
“Falam-se três línguas em Argel: o turco, que praticam os Osmanlis entre si e com os seus renegados; Mouros e também muitos cativos cristãos falam muito bem esta língua pela sua convivência com os Turcos. A segunda língua é o árabe que é geralmente utilizada por todos, não apenas pelos Mouros, mas pelos Turcos, por pouco tempo que estejam em Argel, e os Cristãos, em contacto com os indígenas, falam árabe pouco ou muito. A terceira língua usada em Argel é a língua franca assim chamada pelos muçulmanos não porque ao falarem-na pensem exprimir-se na língua de uma qualquer nação cristã, mas porque, por meio de um jargão utilizado entre eles, eles entendem-se com os cristãos, a língua franca sendo uma mistura de diversas palavras espanholas ou italianas na sua maioria. Algumas palavras em português também se utilizam, desde que se enviaram a Argel de Tetuan e de Fez, um grande número de pessoas desta nação feitas prisioneiras na batalha que perdeu o Rei de Portugal, D. Sebastião.” (HAEDO 1612: 24)
“E juntando a esta confusão e mistura de tão diversos vocábulos e maneiras de falar, de diversos Reinos, províncias e nações cristãs, a má pronúncia dos mouros e turcos, que não sabem conjugar os modos, tempos e casos, como os cristãos (que lhes são próprios), aqueles vocábulos e modos de falar, vêm a ser o falar franco de Argel, quase uma gerigonça, ou pelo menos um falar de negro boçal, trazido para Espanha recentemente. Este falar franco, está tão generalizado, que é empregue em todos os negócios, e todas as relações entre Turcos, Mouros e Cristãos, que são numerosas; de tal modo que não é apenas o Turco, o Mouro, mas mesmo as mulheres e as crianças, que falam correntemente esta linguagem e se entendem com os cristãos.” (HAEDO 1612: 24)
O Dr. Sousa conta um diálogo que um renegado teve consigo em Língua Franca:
O interlocutor de Sousa é o renegado Ahmud, genro do seu amo, que lhe fala em língua franca: “Como estás Papaz? (Papaz era a designação que os mouros e turcos davam aos religiosos cristãos). Dio grande no pigllar fantesia. Mundo cosi cosi. Si estar scripto in testa, andar, andar. Sino acá morir”. (Deus grande não recebe ofensas. O Mundo é assim-assim. Se estiver escrito na cabeça, vai-te, vai-te. Senão morres cá). (HAEDO 1612: 192)
Linguisticamente, a Língua Franca era um pidgin, designação que tem origem inglesa, e que designa qualquer língua criada, normalmente de forma espontânea, a partir da mistura de duas ou mais línguas e que serve de meio de comunicação entre os falantes dessas mesmas línguas.
É diferente de um crioulo, língua natural estável, que se desenvolve a partir do processo de simplificação e mistura de diferentes línguas numa nova forma (muitas vezes, um pidgin), originando um idioma completo com falantes nativos. Embora o conceito seja semelhante ao de uma língua mista ou híbrida, os crioulos são caracterizados por um sistema consistente de gramática, possuem vocabulários grandes e estáveis e são adquiridos pelas crianças como sua língua nativa.
A Língua Franca é também chamada “pequeno mourisco, pequeno mouro, pequeno franco, mistura bárbara, língua europeia, falar cristão, geringonça, língua de carregadores ou miscelânea de línguas”.
Era composta maioritariamente por termos latinos ou romanos (italianos, castelhanos, portugueses e franceses), em cerca de 80%, e minoritariamente por termos árabes e turcos e de algumas outras línguas, como o grego.
O princípio fundamental a que a Língua Franca obedece, é o da ausência de regras ortográficas ou gramaticais. Os substantivos declinam-se com a aposição do artigo definido (l’amigo, del’amigo, per l’amigo), não têm plural (os amigos = l’amigo), os verbos não se conjugam utilizando-se apenas no infinito (mi andar, noi andar) ou no particípio passado (mi star andato), e o futuro obtém-se colocando a palavra bisogno (preciso) antes do verbo (bisogno mi andar).

Planta de Argel por Georg Braun e Franz Hogenberg, in Civitates Orbis Terrarvm, 1576, Universitätsbibliothek Heidelberg. Na legenda são identificados o Banho dos Cristãos (ou del-Rei), o Banho dos Enfermos, o Banho da Bastarda (ou dos presos comuns), o Banho dos Leões e outros animais, o Banho de Chiabali (?), o Banho de Yaloche arraez e o Banho de Mami arraez Napolitano.

Detalhe da planta anterior representando com o número 30 o Banho dos Cristãos
A Língua Franca, língua de ninguém, falada por toda a gente, associada à escravatura, aos espancamentos, aos insultos e à violação de mulheres, apesar de conotada como a língua dos marinheiros, dos escravos, das prostitutas e das tabernas dos portos, ultrapassa o seu estatuto de língua de classe baixa, sendo utilizada por mercadores e diplomatas, normalmente apenas de forma falada, mas também em determinados extractos das sociedades Norte-Africanas, no meio familiar, entre a patroa árabe e a empregada europeia, entre o renegado europeu e a sua mulher nativa.
Renaudot, oficial do Cônsul de França em Argel, escreve sobre a forma como em Argel o Dey era chamado pelas várias comunidades:
“Os Turcos chamam ao dey, effendi, que significa senhor na sua língua. Os Mouros chamam-lhe baba, que significa pai (papá) em árabe, e os Europeus chamam-lhe patron-grand, que significa grande patrão em pequeno mourisco.” (RENAUDOT 1830: 83)
Laurent d’ Arvieux foi um comerciante francês, apaixonado pelo orientalismo científico e diplomata de renome. Foi Cônsul de França em cidades como Alepo, Argel ou Tripoli. Conta como foi recebido pelo Governador Otomano de Tunis, Hagi Mehemed:
“Recebeu-me com um cumprimento num italiano corrompido, que é chamado Língua Franca, a qual é utilizada normalmente em Tunis: Ben venuto, como estar, bono, forte, gramercy”. (Bem-vindo, como está, bom, forte, muito obrigado). (ARVIEUX 1735: 418)
A recusa dos muçulmanos em aceitarem que os europeus se exprimissem em Árabe, está patente numa carta enviada pelo Sultão de Marrocos Sidi Mohamed ben Abdalá ao Cônsul da Dinamarca Georg Host, referindo-lhe que a correspondência oficial deveria ser escrita em Língua Europeia:
“Como te escrevemos em europeu para evitar qualquer erro, por que razão me escreves em árabe, língua que tu não entendes? Podes cometer erros, então porque não me escreves em europeu? Não queremos mais ler as tuas cartas em árabe, e todas as que me escreveres, escreve a partir de agora em europeu, senão nós nos recusaremos a lê-las”. (HOST 1998:44-45)
A recusa de Sidi Mohamed, apesar de referir que é pelo facto de Host poder cometer erros, teria razões mais profundas, como não permitir que não muçulmanos utilizassem a Língua do Alcorão para assuntos de Estado. Este facto confirma-se pela carta que escreveu ao Juiz, ordenando-lhe que informasse todos os notários marroquinos que, se traduzissem as cartas de Host, mandava cortar-lhes a mão:
“Ordenamos-te que reúnas todos os notários e diz-lhes que se algum deles escrever uma carta à nossa Corte em árabe para o Cônsul da Dinamarca, nós mandamos-lhe cortar a mão, e se o cônsul quiser escrever, deve fazê-lo em europeu”. (HOST 1998: 45)
Na redação de tratados, originalmente escritos em Turco e em Francês, a língua franca constituía uma ferramenta de clarificação, como esclarece Christian Windler:
“Quando em 1757 Muhammad bey recebeu cartas do rei (de França) redigidas em francês e acompanhadas de traduções turcas, leu essas traduções, mas acabou por devolver ao cônsul as versões em francês, pedindo-lhe que lhas explicasse em “pequeno mourisco” ou “pequeno mouro” para ver se ele as tinha verdadeiramente compreendido na versão turca, que ele entendia de forma imperfeita”. (WINDLER 2002: 173)
Interessante esta descrição de um episódio conflituoso entre o Consul Inglês e o Pacha de Tripoli durante uma venda de mercadorias aprisionadas por corsários, narrado pelo Padre Antoine Quartier, um religioso francês que esteve preso oito anos na Líbia:
“O Pacha durante a conversa apercebeu-se que o Cônsul tinha bebido licores não recomendados pelo Profeta. E vendo que os Turcos troçavam dele, disse-lhe, “Seignor Consule per que non restar à casa toya quando ti estar sacran?” (Senhor Cônsul porque não ficas em tua casa quando estás embriagado?). O Cônsul que estava de mau humor, picado por estas palavras, e o vinho fazendo-lhe esquecer o seu dever, respondeu ousadamente ao Pacha, “Saper Sultan que gente comme mi bever vin, e bestie comme ti bever aqua” (Saibas Sultão que gente como eu bebe vinho e bestas como tu bebem água). O Pacha em cólera, por ser maltratado no seu Palácio por um Cristão, sacou de imediato de uma espada para lhe trespassar o ventre; mas o golpe foi travado pelos Oficiais Renegados que testemunharam a folia do Cônsul, e o retiraram do Castelo, com medo que os Turcos se vingassem da injúria feita por um Cristão ao seu Pacha, que as preces dos Mercadores acalmaram um pouco. O resto do dia foi passado a pedir desculpas por parte do Cônsul, do qual Soliman Caya apenas obteve três mil Piastras, que o Inglês depois de curar a bebedeira pagou de bom grado, ficando feliz por resolver a questão por tão pouco”. (QUARTIER 1690: 67-68)
Apenas como curiosidade, refira-se que o árabe “sacran” deu origem ao português “sicrano”.
Quartier conta que conheceu no deserto de Mesrata um beduíno chamado Yusuf, com idade de 70 anos, descendente de mouriscos expulsos da Península, que falava Latim, Espanhol, Turco, Árabe e Língua Franca. Vivia numa tenda com as suas filhas, a mais nova das quais, chamada Alima, viúva de um renegado, estava tatuada com henna e usava véu e, como o pai, também falava Língua Franca. (QUARTIER 1690: 162-166)
Este texto de Quartier demonstra a generalização da Língua Franca em meios tão afastados das zonas costeiras como era um acampamento de beduínos no deserto e revela a utilização da Língua Franca num ambiente familiar, concretamente entre um renegado e a sua mulher autóctone.
Nota: as traduções de Língua franca foram realizadas pelo autor deste artigo com o apoio do Glossary de Alan Corré e do Dictionnaire de la Langue Franque ou Petit Mauresque.

Miguel de Cervantes por Juan de Jáuregui, 160-, Real Academia de la Historia de Madrid
Argel e Miguel de Cervantes: a História do Cativo
“De todos los puntos sustanciales
que en este suceso mi acontecieran,
ninguno se me ha ido de la memoria,
ni aun se me irá tanto que tuviere vida.”
(CERVANTES SAAVEDRA 1605: 240)
A literatura de Cervantes está dramaticamente marcada pelo seu cativeiro em Argel e pelas personagens que aí conheceu. As imagens do banho de Argel e das torturas infligidas aos cativos persegui-lo-iam para o resto da sua vida, e seriam uma fonte de inspiração para a sua obra literária. A generalidade dos estudiosos interroga-se se Cervantes teria deixado a profícua e inigualável obra que deixou se não tivesse vivido a experiência traumática do cativeiro.
Algumas das personagens que conheceu figuram nas principais obras escritas por Cervantes, de forma explícita ou velada, incluindo os seus alter-ego, como Saavedra ou o Cativo (Capitão Pérez de Viedma), que surgem em várias obras suas, como El Trato de Argel, El gallardo español, El Romance de Sayavedra ou na História del Cautivo, como um soldado de fronteira cativo, aliciado a tronar-se mouro, junto de quem uma figura feminina perturba os seus sentimentos.
Na obra Baños de Argel surgem várias referências a Mulei Maluco, sempre na condição de marido de Zahara:
“Muley Maluco apetece, Ser su marido (…) Que es gentilhombre Muley. Sin duda que estás prendada (…) Muley Maluco es su esposo, El que pretende ser rey De Fez, moro muy famoso (…) Con Zara, la desta casa, Muley Maluco se casa. (…) Qué es lo que tu padre dice Desto de tu casamiento, Con Muley Maluco? (…) La fiesta cese, y à su casa vuelva, La bella Zara; que Muley lo ordena.” (CERVANTES 1864: 218, 287, 294, 295 e 300)
Zahara, encarna invariavelmente essa figura feminina, sendo claro que Cervantes nutria por ela uma paixão quase obsessiva.
As referências à beleza de Zahara (Zoraida ou Zara) já anteriormente referidas não ficariam completas sem uma outra ao seu endeusamento por Cervantes, que constrói na História do Cativo uma narrativa quase bíblica da fuga de Viedma e de Zoraida para Espanha, marcada pela imagem do cativo segurando os arreios do burro sobre o qual Zoraida vinha montada, à imagem de José e da Virgem Maria.
Na História do Cativo, surgem também outros personagens reais da estadia de Cervantes em Argel:
O renegado (que é na realidade Murat Arrais Maltrapilho) em quem o cativo deposita a sua confiança para lhe traduzir as cartas de Zoraida (nas quais ela confessa querer fugir para a terra dos cristãos e casar-se com um deles), e comprar o barco utilizado na fuga. Após comprar uma barca de 30 lugares, o renegado tentou ver Zoraida na sua casa de férias, mas a moura nunca apareceu “porque as mulheres mouras nunca se deixam ver de homens da sua raça”.
A referência a Arnaut Mami (ele próprio, o corsário que capturou Cervantes), enquanto proprietário do cativo e amigo íntimo de Agi Morato.
Agi Morato (ele próprio), “riquíssimo em toda a extensão da palavra”, tem um papel central na história enquanto pai de Zoraida, recebendo o cativo no seu jardim e falando-lhe em Língua Franca: “Era o próprio Agi Morato que servia de intérprete no decurso deste colóquio, como mais sabido a falar a língua bastarda.” Jardim onde Zoraida aparece porque “as moiras não têm escrúpulos de se mostrarem aos cristãos”, nem o seu pai se espanta por esse facto, nem pelo facto de abraçar o cativo “encostando a cabeça no seu peito e dobrando os joelhos”.
Agi Morato acaba por descobrir a fuga no último momento e é feito prisioneiro pelos fugitivos, sendo libertado na Cava Rumia (قحبة رومية ou Puta Romana/cristã), uma enseada assim chamada porque reza a tradição que ali foi enterrada Cava Rumia, mulher “por causa da qual se perdeu Espanha”. Agi Morato desespera quando foi abandonado, gritando e insultando todos, especialmente a filha. “Arrancava os cabelos e as barbas, e rojava-se pelo chão”.

Descrição da riqueza de Zoraida, “a moça mais formosa em toda a Berbéria, que agora quer que lhe chamem Maria”:
“Seria deslocado falar-lhes eu agora da muita formosura, gentileza, e dos ricos adornos com que me apareceu a minha querida Zoraida. Somente direi que do pescoço, das orelhas e toucado lhe pendiam mais pérolas do que cabelos tinha na cabeça. Nos artelhos, que trazia nus à moda da terra, viam-se-lhe dois cascadj – que assim se chama em moirisco às argolas ou xarcas – de oiro finíssimo, cravejados de diamantes, que, segundo me disse mais tarde, seu pai avaliava em dez mil dobras e em outro tanto em pulseiras. As pérolas eram da maior pureza e em grande profusão, que é em ataviar-se com elas que está o grande luxo das moiras, por isso há mais pérola e aljôfar na moirama do que no resto do mundo. Tinha nomeada o escrínio que possuía o pai de Zoraida, como sendo as suas pérolas as mais finas e em maior quantidade que havia em Argel. Nas ancas tinha aferrolhados mais de duzentos mil escudos espanhóis, legítima desta senhora que hoje é minha.”
A história relata a partida no barco onde Zoraida ia com as mãos na cara para não ver o pai e invocava Leila Mariem (Virgem Maria) e o desembarque em Velez-Málaga, onde o cativo comprou um burro e nele transportou Zoraida, a pé, guiando-o pelos arreios e a chegada à estalagem onde a história foi contada. “Rompeu atrás dele em cima dum burro, uma mulher vestida à agarena, de rosto coberto com um bioco pela cabeça, por baixo do bioco uma touquinha de brocado, e um manto que lhe caía até aos pés”.
Interrogado na estalagem em Espanha sobre a origem de Zoraida, o Cativo esclarece: “Esta senhora percebe apenas duas ou três palavras da nossa língua; só sabe falar a língua da terra dela.” E sobre se é Moura ou Cristã, responde: “Moira é no trajo e de nação, mas na alma é cristã, porque tem grande vontade de o ser.” Em resposta à pergunta de como se chamava, a própria Zoraida exclama: “Não, Zoraida, não! Maria, Maria…” e reitera “Sim, sim, Maria, Zoraida macange!” (Zoraida não é).
A história termina com a conversão de Zoraida e o seu casamento com o cativo em Sevilha. (CERVANTES 2018: 297-337)

Marraquexe
Regresso a Marrocos
Em 1574, Mulei Maluco participou na conquista otomana de Tunes. Em consequência dessa vitória, o sultão otomano Murad III prometeu ajudá-lo a recuperar o trono de Marrocos, então ilegitimamente ocupado por seu sobrinho Mulei Mohamed.
A manutenção no poder de Mulei Mohamed el-Mutauakil, conhecido como “El Negro” e “O Esfolado”, contrariava as regras de sucessão da Dinastia Sádida, que determinavam que, após a morte do sultão, o trono deveria ser assumido pelo homem mais velho da família. No caso específico, após a morte de Abdalá el-Ghalib, o poder cabia legalmente a Mulei Maluco, e não ao seu sobrinho Mulei Mohamed, filho do sultão falecido.
Em Argel, Mulei Maluco desenvolveu uma intensa atividade diplomática, negociando tanto com os turcos quanto com alcaides marroquinos, com o objetivo de angariar o máximo de apoios para a sua causa.
“Mulei Maluco, durante todo o tempo, que esteve em Argel fugido e ausentado, negociou sempre pelos seus meios e contínuas inteligências com os mais importantes alcaides de Fez e de Marrocos: os quais certificaram-no de terem muita vontade que ele fosse Rei de Fez.” (HAEDO 1612: 82)
Murad III forneceu-lhe um poderoso exército, cuja partida de Argel em 1576 foi testemunhada pelo Dr. António de Sousa:
“Era composto por seis mil mosqueteiros Turcos, mil Mouros Azuagos, vassalos do Rei de Kouko, armados de mosquetes e bons soldados (os Reis de Argel serviam-se deles há vários anos nas suas guerras e nos destacamentos que enviavam pelo país para cobrar impostos), oitocentos Spahis a cavalo e doze canhões, com muitos projécteis, pólvora e munições. Pelo caminho, aumentou o seu exército com cerca de seis mil cavaleiros provenientes dos seus vassalos Mouros ou de Árabes amigos.” (HAEDO 1881: 161)
O acordo com os turcos previa, em troca do apoio à tomada do poder em Marrocos, o pagamento de 500.000 onças de ouro, o estabelecimento de uma aliança militar contra a Espanha e a cedência do porto de Larache como base para investidas corsárias no Atlântico.
Conforme já referido, a bela Zahara permaneceu em Argel como refém dos turcos, receosos de que Mulei Maluco viesse a estabelecer um acordo com os espanhóis.

Cavaleiros marroquinos
Os Xerifes Sádidas utilizavam os renegados em grande escala para ocupar postos relevantes na hierarquia do seu aparelho militar e administrativo. Os renegados traziam ao Norte de África conhecimentos importantes e tinham a grande vantagem de serem pessoas desenraizadas do seu meio, sem passado, e como tal mais propensos a serem leais aos soberanos. Esta característica era particularmente valiosa num período marcado por intensas lutas internas, pois o poder dos sultões dependia fortemente da fidelidade de indivíduos sem ligações a fações rivais ou elites locais.
“Sendo Mulei Maluco, homem discreto, e segundo entendi de muitas pessoas que trataram familiarmente com ele, de muito gentil juízo e discurso, soube negociar de forma que quando ele e o Rei de Argel chegaram a Fez, os mais importantes alcaides, e todos os Elches e Andaluses escopeteiros estavam subordinados e a seu favor”. (HAEDO 1612: 82)
A própria tropa de elite do Sultão de Marrocos era constituída por Elches. Diego de Torrés refere que o sultão tinha uma guarda pessoal composta por 2.000 renegados e turcos a cavalo e munidos de arcabuzes. (TORRES: 1636: 319)
No início de 1576, um exército composto por 6.000 arcabuzeiros e 8.000 cavaleiros, maioritariamente janíçaros e soldados argelinos, marchou sobre Fez. Cerca de 2.000 Andalusinos que apoiavam Mulei Mohamed passaram-se para o lado de Mulei Maluco, resultando numa vitória estrondosa deste último, que obrigou o sobrinho a refugiar-se em Marraquexe.
Após a batalha, Mulei Maluco pagou as 500.000 onças de ouro aos turcos, dispensou seus serviços militares e até recusou ceder-lhes o porto de Larache. Segundo o historiador D. Fage, Mulei Abdelmalek negociou com o sultão otomano Murad III sua independência em relação aos turcos, conseguindo a retirada das tropas otomanas de Marrocos mediante o pagamento da soma em ouro. (FAGE 2008: 405)
No final desse ano travou-se uma segunda batalha junto a Rabat, com nova derrota de Mulei Mohamed, que abandonou Marraquexe, refugiando-se nas montanhas de Deren.
Queiroz Velloso refere que, quando Mulei Maluco se ausentou de Marraquexe para dar luta ao seu sobrinho fugido nas montanhas, confiou a Reduão o poder do seu reino:
“Abdelmalek saiu de Marraquexe, deixando por governador o alcaide Reduão, um renegado português, inteligente e corajoso, que trouxera de Argel, e a quem dera o alto cargo palaciano de camarista, como homem de sua plena confiança”. (VELLOSO 1935: 327-8)
Mulei Mohamed pediu ajuda a Filipe II de Espanha, que não se mostrou interessado numa guerra contra Mulei Maluco, mas adiantou que o rei de Portugal, D. Sebastião, poderia estar. Lançada a armadilha, Mulei Mohamed prometeu mundos e fundos ao ingénuo e impreparado rei português, que aceitou o desafio. D. Sebastião mobilizou o exército e preparou-se para invadir Marrocos.
Mulei Maluco sabia que a independência de Marrocos dependia de um entendimento com as potências europeias e de uma mão forte em relação aos turcos. Para isso, desenvolveu uma intensa actividade diplomática após a sua tomada do poder, como comprova a vasta correspondência diplomática trocada com Isabel I de Inglaterra, Henrique III de França e Filipe II de Espanha, além de três tentativas de dissuasão a D. Sebastião de Portugal, nas quais procurou mostrar a injustiça da situação e manifestar seu desejo de ser amigo de Portugal. No entanto, D. Sebastião interpretou essas cartas como um sinal de fraqueza do sultão de Marrocos.
As relações entre Agi Morato e Mulei Maluco tornaram-se tensas, pelo facto de Agi apoiar um domínio turco sobre Marrocos, situação que se extremou porque Mulei Maluco supostamente não permitiu que a sua mulher Zahara se juntasse a ele. (LES SOURCES… 1961: 333)

“Argel em 1830”, Oficina Régia Litográfica, 1833, Biblioteca Nacional Digital. A planta localiza (nomeadamente) o Palácio do Dey e os Banhos
Os irmãos Gaspar Corso
Os irmãos Gaspar Corso, família originária da Córsega estabelecida em Espanha, eram comerciantes que se dedicavam sobretudo ao resgate de cativos. Dirigiam uma espécie de agência de mediação diplomática e de espionagem sediada em Valência, com ramificações no Norte de África, concretamente em Argel e Marrocos. O seu principal cliente era o Rei de Espanha Filipe II, de quem eram agentes secretos e informadores, mas mantinham relações com outros monarcas. (LES SOURCES… 1961: 157-9)
Francisco Gaspar Corso, o mais velho, vivia permanentemente em Valência, onde centralizada as informações que transmitia diretamente a Filipe II. Recebia, traduzia e expedia o correio que enviava para a sua rede de informadores.
O mais novo dos irmãos Gaspar Corso, André, era o homem mais importante da família. Estabelecera-se em Argel, onde se tornou conselheiro íntimo de Mulei Maluco e mantinha relações cordiais com o Paxá. A sua relação de amizade com Mulei Maluco levou-o a fixar-se em Marrocos no período anterior à batalha de Alcácer Quibir, mediando as relações entre os marroquinos e os Estados europeus e, após a batalha, foi destacado por Filipe II para Lisboa com seu agente secreto.
Felipe Gaspar Corso também residia em Argel e tinha por missão transportar o correio entre esta cidade e Valência. Mariano Gaspar Corso residia em Marselha com a missão informar sobre os assuntos relativos à Síria, Malta e Chipre. Um outro irmão, cujo nome se desconhece, estabeleceu-se em Barcelona.
Aos cinco irmãos juntavam-se alguns parentes e fiéis amigos, como Agostinho Corso, Juan Pedro Corso e Juan António Corso, este último responsável pelos assuntos da Índia. Outro elemento importante era o renegado corso Mami Chiaya, que afirmava “querer morrer na cristandade”.
Existe inúmera correspondência trocada por estes agentes. Interessante e relevante para esta narrativa é uma carta escrita pelo próprio Reduão, por si enviada um ano antes da batalha a André Gaspar Corso, que inclui passagens curiosas como as que se transcrevem:
“Mui magnifico Senhor. Por carta de Vossa mercê, que recebi a ultimo de Agosto, me faz sabedor de sua boa chegada ao porto de Larache (…) da qual me folguei muito de que venha com saúde Vossa mercê e seu irmão (…) e, para que venha a esta corte com brevidade, enviamos-lhe tendas e cavalos (…) e venha Vossa mercê com toda a brevidade possível, para que nos encontre aqui em Marrocos (Marraquexe), porque el Rey meu senhor (Mulei Maluco) está de partida (…) e, antes que Vossa mercê chegue cá, mande-me avisar onde e como quer que o faça aposentar: se quer na casa del-Rei meu senhor, ou na aduana dos mercadores, ou noutra casa por si (escolhida). De Marrocos, a 2 de setembro 1577 anos, para o que Vossa mercê mandar, Cayto Rozuano (Alcaide Reduan).” (LES SOURCES… 1918: 253-4)
Esta carta é referida por Francisco Gaspar Corço numa outra carta escrita a Mateo Vazquez, que refere que “ontem recebi carta de André Gaspar, meu irmão, escrita no porto de Larache aos vinte e oito de setembro, na qual me avisa que tinha recebido cartas e ordem do rei de Marrocos e de Rozuan, seu lugar-tenente, para que fosse a Marrocos”. (LES SOURCES… 1918: 275)
O papel dos Gaspar Corso nos períodos antes e depois da batalha de Alcácer Quibir foi da maior importância para o desenrolar dos acontecimentos. Inclusivamente, André Gaspar Corso foi representante de Mulei Maluco em várias negociações com portugueses e espanhóis, destacando-se ter sido responsável pela entrega do corpo de D. Sebastião às autoridades portuguesas.

Gravura da Batalha de Alcácer Quibir de Miguel Leitão de Andrada in Miscellanea [1629] 1993 (p. 126-127). Edição em fac-simile da 2ª edição, publicada pela Imprensa Nacional em 1867. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa, 1993
Pouco antes da batalha, Mulei Maluco começou a mostrar sinais de envenenamento. A sua situação de debilidade seria determinante para a sua morte durante a contenda.
A forma como se desenrolou a Batalha de Alcácer Quibir, que os marroquinos chamam Batalha de Oued el-Makhazen, travada no dia 4 de Agosto de 1578, a 17 quilómetros a Norte da cidade de Ksar El Kebir, no lugar de Douar Souaken, é pouco conhecida da generalidade das pessoas. É indiscutível a enorme responsabilidade de D. Sebastião no fracasso, a falta de preparação, as hesitações, as decisões erradas e o excesso de voluntarismo. No entanto, é inquestionável a superioridade do exército de Marrocos em relação ao de Portugal, cerca de 60.000 homens para apenas 25.000, e a forma inteligente como Mulei Maluco soube posicionar as suas tropas no terreno, tirando partido da topografia e da orientação do sol.
Mas a batalha iniciou-se com uma vitória dos portugueses, pelo facto de o seu exército ter na vanguarda a elite, constituída pelos veteranos das guerras de África e os mercenários, enquanto a vanguarda dos marroquinos era formada por tropa regular. No primeiro embate, os marroquinos recuaram e a ala direita da sua cavalaria, comandada pelo irmão de Mulei Maluco e futuro sultão, Almançor, foi desbaratada, resultando na debandada de muitos soldados para a cidade de Alcácer Quibir, incluindo o príncipe herdeiro. Mulei Maluco morreu envenenado, nesse momento desfavorável para o seu exército, mas Reduão ocultou a sua morte e assumiu o comando do exército marroquino, dirigindo a reviravolta militar.
“O esquadrão comandado por D. Sebastião acometera com tal ímpeto a ala dos cavaleiros de Mulei Ahmed que centenas deles, incluindo Mulei Ahmed, correram a refugiar-se em Alcácer Quibir. Teria ocorrido, nessa altura, a morte de Mulei Maluco, dizem uns que num último esforço para montar a cavalo e conter a debandada dos seus, dizem outros que atingido por um tiro. Segundo a tradição, antes de morrer, Mulei Maluco pôs o dedo indicador sobre a boca fechada, recomendando segredo. Junto da liteira do falecido, Reduão, o renegado português, continuou a dar instruções ao exército, fingindo que lhe eram transmitidas por Mulei Maluco. A verdade é que se considera que a ocultação da morte do sultão teria tido um papel decisivo no curso da batalha”. (CRUZ 2009: 337)
Eloufrani descreve assim na sua obra Histoire de la Dynastie Saadienne au Maroc (1511-1670) o episódio que envolve o português Reduão:
“No próprio momento do primeiro choque, quando o combate se iniciava, que a luta começava e que o fogo da guerra se acendia, Abdelmalek que estava doente morreu na sua liteira. Mas na sua admirável previdência, Deus quis que a morte do sultão fosse ignorada por todos à exceção do seu camareiro, Redhouan o renegado. Este ocultou a morte e foi de tenda em tenda dizendo: ‘O sultão ordena a uma tal pessoa que se dirija a um tal lugar, a uma tal pessoa que fique junto da bandeira, a uma tal pessoa que se coloca à frente, a uma tal pessoa que se coloque atrás, etc.” (ELOUFRANI 1889: 134)

A Batalha de Alcácer Quibir num panfleto volante ilustrado de grande formato, com gravura em madeira de Hans Rogel (Augsburgo, 1578), Zentralbibliothek-Zürich
Os portugueses ainda alimentaram alguma esperança quando a morte do sultão foi descoberta, gritando “o Maluco é morto! O Maluco é morto!”, mas era tarde demais. A “tenaz marroquina”, constituída pelas alas do seu exército, envolveu o exército português, que já se encontrava em completa desordem — com a retirada desastrosa da vanguarda, que caiu sobre a segunda linha, e com a explosão da pólvora transportada em vários dos 500 carros de bestas. A vitória marroquina foi total.
Fazendo fé nas declarações do historiador marroquino do século XVII, Al-Ifrani, teria sido o próprio Reduão a assassinar Mulei Maluco para se assenhorear da cidade de Fez, que pretendia governar em nome do Grão-Turco, integrando o Norte de Marrocos no Império Otomano, situação que não se concretizou porque os próprios otomanos perceberam a força do exército de Marrocos e a inviabilidade de a contrariaram.
“A morte de Abdelmalek, diz Ibn Elqâdhî, foi resultado de um envenenamento praticado nas circunstâncias seguintes: Redhouân Eleuldj (o Elche ou o Renegado), o alcaide dos Turcos, que acompanhava o príncipe, tinha dito aos outros alcaides que lhes entregaria um bolo envenenado para oferecer a Abdelmalek no momento em que este passasse próximo deles. O objetivo de Redhouân era o de matar o sultão e tornar-se senhor da cidade de Fez, e estabelecer desta forma a autoridade dos Turcos nessa cidade. Deus não permitiu que este último desígnio se realizasse, e os Turcos eles próprios consideraram-no impraticável, vendo a força das tropas de Marrocos, mas a morte do príncipe foi consequência desta traição. O corpo de Abdelmalek foi, assim que morreu, transportado para Marrocos (Marraquexe) onde foi enterrado”. (ELOUFRANI 1889: 137)
A morte de Mulei Maluco foi especialmente sentida em Argel, “pela sua simpatia” e, segundo consta, “pela beleza da sua mulher Zahara”.
Mulei Mohamed morreu afogado no Rio Mocazím ou Oued el-Makhazen. O seu corpo foi esfolado, as entranhas cheias com palha e exibido nas principais cidades de Marrocos, daí o cognome “O Esfolado”.
A designação do Rio Oued el-Makhazen merece uma explicação:
A designação Makhazen, origem do nome português Mocazím, deriva do termo Makhanez, que significa cheiro a putrefação, já que após a batalha o rio ficou pejado de cadáveres em decomposição que conferiam ao local um cheiro nauseabundo. Para a Nação marroquina, este topónimo não se coadunava com a grandeza do evento aí ocorrido, tendo sido alterado para Makhazen, plural de Makhzen, designação do Estado marroquino (explicação já referida anteriormente).

Mausoléu de Mulei Abdelmalek em Douar Souaken, no local onde supostamente morreu durante a batalha de Alcácer Quibir
O pós-Alcácer Quibir
Na noite da batalha, o corpo de D. Sebastião foi identificado e transportado para a casa do alcaide de Ksar El Kebir, Ibrahim Sufiani, onde permaneceu dentro de uma “caixa” com cal à guarda do fidalgo português Belchior do Amaral, até ser entregue por André Gaspar Corso às autoridades portuguesas de Ceuta, em 10 de Dezembro de 1578.
“Daquilo que tratou deu conta D. Duarte àqueles Cavaleiros, e acordaram que voltassem a falar com o Xerife, para pedir, que mandasse por algum Fidalgo em guarda daquele corpo Real, porque não se pusesse outro em seu lugar: fê-lo o Bárbaro com muita liberalidade; e assim nomearam Belchior do Amaral, que o guardou, e levou a Alcácer, onde nas casas de Ibrahim Soufiane, Alcaide daquela Vila se sepultou, ajudando a ele um Tudesco (alemão): cobriram a sepultura de cal, e areia, porque de água serviam as lágrimas que derramava, e para final pôs algumas pedras, e tijolos.” (MESA, 1630, p. 94)
Após a morte de Mulei Maluco em Alcácer Quibir, o nacionalismo marroquino aumentou e inclusivamente surgiram sentimentos anti-Turcos, que viriam a consolidar a independência do país. (GARCÉS 2005: 113-4)
Sucedeu a Mulei Maluco o seu irmão Almançor (Ahmed Al-Mansur ad-Dahabi, O Dourado), não antes de ser esbofeteado em público por Reduão, pela apatia que demostrou ao assumir o cargo:
“Estava Mulay Hamet bem alheio de ser senhor de Africa, pelo pouco que foi tido e estimado em vida do irmão; testemunha Reduan Elche, Renegado Português, que lhe deu uma bofetada, de que nunca se fez caso, nem dela se fez repreensão”. (MESA 1630: 88)
Apesar de ter sido esbofeteado por Reduão, Almançor manteve-o como seu Vice-Rei e o seu poder é sintomático em excertos de uma Relação de uma Embaixada ao Rei de Fez e de Marraquexe em outubro 1579, publicada e anotada pelo Conte Henry de Castries, onde existem várias referências interessantes a Reduão:
“O alcaide (de Safi, onde a embaixada de Filipe II aportou) enviou correio a Marraquexe para avisar da chegada do Embaixador e seu desembarque. Os que se encontravam com o Rei (Ahmed Elmansur) dizem que o seu contentamento foi tão grande, quando recebeu a notícia, que esqueceu a majestade da sua pessoa. E imediatamente chamou o alcaide Redouan.” (LES SOURCES… 1909: 36)
Castries escreve uma nota sobre Reduan que diz o seguinte:
“Redouan, chamado frequentemente Redouan el-Euldj (o Renegado), era um renegado português originário de Vila Real ou de Portalegre. Libertado por Moulay Abd el-Malek, tornou-se seu camareiro, e tentou envenenar o Xerife, instigado pelos Turcos, fazendo parte do exército marroquino. No dia da Batalha de Alcácer Quibir encontrava-se junto da liteira real e teria ocultado das tropas a morte de Moulay Abd el-Malek. Sob o reinado de Ahmed el-Mansour, começou por desfrutar de um grande favor, apesar de anteriormente ter esbofeteado este Xerife. O alcaide Redouan esmagou com o seu sangue-frio a revolta dos Zouaoua que iam proclamar Moulay en-Nasser. Foi ele que negociou o resgate dos fidalgos portugueses cativos em Marrocos.” (LES SOURCES… 1909: 36-7)
Entre outras referências a Reduão no documento, a seguinte é especialmente demonstrativa do seu poder:
“Atrás vinham vinte alcaides, os principais deste reino, ricamente vestidos à turca, com belos cavalos bem equipados, e, chegando próximo do Embaixador, saudaram-no. E de seguida chegou o alcaide Redouan, que é vice-rei deste país, num belo cavalo, cujo arnês era guarnecido de ouro, e usando uma couraça esverdeada adornada com ouro sobre carmesim. Vinha vestido com um caftan de brocado e, por baixo, outro de damasco branco, com um corpete de tecido prateado, um arnês muito rico na sua espada, cuja guarda era de ouro ricamente trabalhada e que lhe tinha sido dada por Abd el-Malek, quando ele defendeu a kasba contra Moulay Mohammed (o Esfolado).” (LES SOURCES… 1909: 48)
Reduão acabou por perder a confiança do sultão e, em 1581, foi assassinado por ordem de Almançor no seu palácio em Marraquexe. (LES SOURCES… 1909: 37)

O Borj Norte de Fez, forte construído “à portuguesa” durante o reinado de Almançor, supostamente projectado e edificado por renegados e cativos portugueses, hoje museu militar. Do lado direito da imagem vê-se o canhão Sidi Mimoun (tradução abençoado), de 12 toneladas e 4,80 metros de comprimento, utilizado pelo exército marroquino na batalha de Alcácer-Quibir
Pensa-se que dos muitos milhares de cativos portugueses na batalha, um número muito significativo teria renegado, de forma voluntária ou forçada. Na sua chegada a Fez, o Xerife (Ahmed Almançor) decidiu aceitar resgatar 80 fidalgos portugueses e “buscar todos os moços que se acharam da batalha d’el-rei D. Sebastião de quinze anos para baixo, e os mandou circuncisar e vestir à mourisca e ordenando-lhes muitas vantagens. Deixou em Fez trezentos moços e levou consigo a demasia para Marrocos (Marraquexe) para servirem das portas adentro e confiar deles sua pessoa. E fez alcaide destes moços Jaudar, e de sua casa o alcaide Brahen Sufiane com o título de alcaide dos alcaides, homem que foi benemérito de todos os lugares por sua boa natureza e foi grande amigo dos fidalgos e geralmente de todos os cristãos”. (SALDANHA [160-] 1997: 27)
A geração dos mais novos foi especialmente aproveitada por Almançor, vindo a constituir, anos mais tarde, uma casta de elite ligada ao poder, que no período da Guerra Civil de 1603-1664 dominava as próprias decisões dos protagonistas das várias facções em disputa — Mulei Xeque em Fez e Mulei Zidane em Marraquexe.
Foi o caso de Sebastião Pais da Veiga (aliás Soliman), natural de Lisboa, que chegou a “cobrador dos impostos reais e das taxas cobradas pelo rei sobre as mercadorias, responsável pelo pagamento do soldo aos homens da guerra, tesoureiro-mor do reino de Fez, gestor das finanças do rei e dos seus exércitos. Para aqueles que o conheceram, era o mais poderoso favorito do rei, e segunda personalidade do reino!” (BENNASSAR 2006: 484)
Foi também o caso de Luís Barreto (aliás Ali), natural de Santarém, conhecido como “o monge”, por ter estudado para religioso. O sultão considerava-o um dos seus renegados preferidos, confiando-lhe as tarefas mais íntimas, como verificar se a sua comida não estava envenenada e assisti-lo “ao despertar e deitar”. Mulei Xeque ainda o nomeou responsável pelo escudo e armadura do soberano, “cargo honorífico que fez dele um familiar permanente do rei”. (BENNASSAR 2006: 483 e 486)
Continua aqui: https://historiasdeportugalemarrocos.com/2025/09/28/historias-de-portugal-em-marraquexe/
Bibliografia









































































































































































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excelente, um gosto ler os seus textos, sendo eu um amante de Marrocos
Obrigado. Cumprimentos
Mais um texto interessantíssimo a somar aos muitos que liso da sua autoria. Obrigado
Eu é que agradeço o seu comentário. Os meus cumprimentos