O Estreito de Gibraltar, porta do Mediterrâneo
Entre os séculos XV e XVIII o Mediterrâneo, incluindo o chamado Mar dos Algarves ou Mar das Éguas, actual Golfo de Cádiz, estava pejado de corsários que faziam do tráfico de escravos o seu maior negócio. A actividade corsária envolvia meios consideráveis, em homens e navios, e garantia lucros fenomenais para os seus intervenientes, fosse nos valores dos resgates cobrados, fosse no aproveitamento da mão de obra escrava que assegurava.
O corso atraiu milhares de aventureiros em busca de riqueza fácil, que ajudaram a desenvolver as técnicas de navegação e construção naval, deu origem à concentração de um enorme número de cativos de diversas nacionalidades, que exigia a existência de grandes espaços para a sua concentração, criou um sistema de resgates com intermediários das mais diversas proveniências, e foi responsável por grandes movimentos populacionais, fossem populações deslocadas das áreas costeiras, fossem os chamados renegados, sobretudo europeus, que acabaram por se integrar nas sociedades Norte-Africanas.
Entre este conjunto extremamente dispare de pessoas, sobretudo daquelas que se encontravam “em trânsito”, se assim lhes podemos chamar, fossem corsários, fossem cativos das galés ou das masmorras, fossem ainda comerciantes, desenvolve-se uma linguagem mestiça, chamada Língua Franca, que permitia um entendimento entre os vários intervenientes, sem que fosse utilizada a língua materna de uns ou de outros.
A Habs Qara ou Prisão Cara de Meknés, principal local de concentração de cativos europeus em Marrocos
Alguns números:
Segundo Robert Davis, só entre os anos de 1530 e 1750 foram feitos cativos pelos corsários turcos e norte-africanos entre 1 milhão e 1,25 milhões de europeus. Apesar de este número ser incomparável aos cerca de 12 milhões de africanos escravizados pelos europeus, a verdade é que os efeitos do corso na costa Sul da Europa foram devastadores, pela insegurança, instabilidade, despovoamento e consequências negativas na actividade económica que causou. (DAVIS, 2003, obra citada)
Estima-se que só o corso de Salé empregasse nas tripulações da sua armada cerca de 4.000 homens, ou seja, 20% do total da população da cidade, e que o volume de bens apresados e número de cativos fosse enorme. Só entre 1618 e 1624 terão feito 6.000 cativos, atacado mais de 1.000 navios e pilhado 15 milhões de libras de mercadorias num total equivalente a cerca de três mil milhões de euros em moeda actual. (DUMPER, 2007, p. 306)
A grande maioria dos cativos acabava por se converter e integrar-se na sociedade marroquina, como foi o caso dos mais de 15.000 prisioneiros de Alcácer Quibir. Só na cidade de Salé eram encarceradas anualmente 800 pessoas, mantendo-se um número médio de cativos em cerca de 1.500, correspondentes a 10% da população da cidade, número que atingiu um pico de 3.000 escravos em 1690. Nesse mesmo ano o número de prisioneiros em Meknés aumenta de 1.200 para 2.900. (MAZIANE, 2002, p. 2)
Os resgates atingiam preços exorbitantes, principalmente os das mulheres nobres. Um comerciante inglês de nome Edmund Cason foi enviado a Argel para resgatar mulheres e “pagou 800 libras por Sarah Ripley, de Londres, 1.100 por Alice Hayes de Edimburgo, e a soma exorbitante de 1.392 libras por Mary Bruster, de Youthgal, mais de 36 vezes o preço médio” (MILTON, 2006, pág. 41). O próprio Milton esclarece que na época o salário anual médio de um lojista em Londres era de 10 libras! Se esse salário anual fosse hoje apenas de 12.000 euros (que não será), então o resgate de Mary Bruster terá tido o valor aproximado de 1.500.000 euros! Por aqui se vê como os lucros da escravatura eram incomparavelmente superiores aos das mercadorias, no quadro da guerra do corso.
A Casbah Oudaia em Rabat, capital da República Corsária do Bouregreg ou dos Salé Rovers
A Língua Franca teria a sua origem nos tempos da presença dos cruzados na Palestina e seria transportada para o Mediterrâneo quando as potências europeias desistiram da conquista da Terra Santa. A sua utilização tinha desde logo um caracter extremamente pratico, já que permitia um entendimento entre comunidades tão diversas, desde os árabes e berberes aos europeus do Sul, aos judeus que intermediavam os resgates, sendo inclusivamente falada pelos corsários ingleses e holandeses.
Era uma língua com carácter transitório, já que era apenas utilizada durante o período em que os indivíduos se encontravam cativos, voltando a falar a sua língua natal se fossem resgatados, ou adoptando a língua árabe se fossem convertidos. Para o carcereiro árabe não era tolerável que o seu prisioneiro falasse a sua língua de origem, que não entendia, nem tão pouco que falasse o árabe, a língua do Alcorão, na sua qualidade de não crente.
Mas principalmente era uma língua que assegurava uma distancia e frieza no relacionamento entre carcereiro e prisioneiro, em momentos de grande conflito e sofrimento, que Jocelyne Dakhlia apelida de “no man’s langue” e refere como “um modelo de uma mestiçagem como resposta do vencido, de adaptação do colonizado sem marca identitária própria, sem objectivo de territorialidade e sem soberania no seu uso”. (DAKHLIA, 2008, obra citada)
Coluna da antiga prisão portuguesa de Anafé com inscrições latinas feitas por cativos
A obra de Jocelyne Dakhlia é a grande referência sobre o tema, infelizmente disponível no mercado a preços exorbitantes e incomportáveis (inexplicavelmente), analisada por vários investigadores, cujas principais conclusões de seguida se apontam.
Da análise que Cécile Canut (CANUT, 2011, obra citada) faz da obra ressalta que a Língua Franca é uma língua e não um calão, falado apenas por homens no Mediterrâneo, que acaba por estabelecer uma ligação orgânica entre o Oriente e a Europa, apesar de não pertencer a ninguém já que constitui a abolição total das fronteiras, assumindo-se como a tal “no man’s langue”. Esta “língua nómada” é encarada com desprezo tanto por europeus como por muçulmanos, que a apelidam de “pequeno mourisco, pequeno franco, mistura bárbara, língua de carregadores ou miscelânea de línguas”.
Thomas Wieder (WIEDER, 2008, obra citada) refere o caso do cavaleiro Laurent d’Arvieux mandatado por Luis XIV para encetar conversações com o Dey (Governador) Otomano em Tunis, que lhe falou “numa espécie de italiano corrupto a que chamam língua franca, e citou palavras através das quais foi acolhido: Ben venuto, como estar, bono, forte, gramecy (grand merci)”.
Sobre a obra de Dakhlia, realça os 15 anos que a autora dedica ao estudo da Língua Franca “em registos de comerciantes, nas correspondências diplomáticas, mas também no teatro, da Zingana de Giancarli (1545), à L’Impresário de Smyrne de Goldoni (1759), passando pelo Le Bourgeois Gentilhomme de Molière (1670)”. Das conclusões de Dakhlia ressalta que a Língua Franca, apesar de fortemente disseminada nas regiões costeiras, nas tabernas e prisões, foi também usada pela alta sociedade e no interior do território do Norte de Africa, como pelo cônsul inglês em Argel ou pelas empregadas domésticas italianas nas Cabilas, demonstrando que a mobilidade das populações europeias no território foi muito maior do que se pensa. Segundo ele, Dakhlia não deixa de conferir a essa língua a sua conotação com a escravatura, pela frequência da utilização de termos como falaca (espancamento), galima (saque), sangre (sangue), schiavo (escravo) ou tobgi (canhoneiro).
Corsários de Salé
Se parece evidente que a Língua Franca teve uma base italiana-francesa-castelhana no Mediterrâneo, parece também lógico que em Marrocos a sua principal influência foi o português, como defende Cyril Aslanov (ASLANOV, 2010, obra citada). Refira-se também que muitos dos termos da Darija marroquina, normalmente atribuídos à influência espanhola e francesa estarão certamente na Língua Franca.
No texto de Aslanov ressaltam aspectos muito curiosos, que se prendem com a utilização de formas abreviadas do português, como star, em vez de estar, ou melhor, substituindo as três formas do português ser, estar e ficar. O autor vai mais longe, ao realçar as semelhanças entre o francês e o português e de referir que existem evidências da utilização de uma base do português na Língua Franca, por exemplo, pelo uso de termos como parlar na frase no parlar que estar malato, no sentido de não me digas que estás doente, quando numa base espanhola ou italiana seria mais comum usar o verbo dizer.
Esta teoria leva Aslanov a dizer que “será que na sua fase de cristalização, a língua franca se desenvolveu a partir dum núcleo ou de uma base portuguesa? Esta hipótese vale sem dúvida para Marrocos onde a presença portuguesa se manteve bastante longa em Tânger, Ceuta, Mazagão e um pouco menos de tempo em Mogador”.
Mikael Parkvall, na sua Foreword (PARKVALL, 2003, obra citada) coloca em causa a origem portuguesa da Língua Franca, mas não nega que essa língua foi utilizada pelos portugueses durante os Descobrimentos como língua de contacto com os povos africanos, influenciando inclusivamente a formação do Creolo.
“Le Bourgeois Gentilhomme” de Molière
Num artigo não assinado intitulado Les Pirates Barbaresques – Partie 3: La Lingua Franca des esclaves et du Bourgeois Gentilhomme, que analisa a obra de Dakhlia, a Língua Franca é descrita como “a língua de ninguém, falada por toda a gente”, associada à escravatura, aos espancamentos, aos insultos e à violação de mulheres. Neste artigo é interessante verificar como a Língua Franca extravasa o âmbito do universo dos cativos e é descrita como a língua dos marinheiros, dos escravos, das prostitutas e das tabernas do porto. Mais, ultrapassa o seu estatuto de língua de classe baixa, sendo utilizada por mercadores e diplomatas, apenas de forma falada, já que não é escrita, mas também entre marido e mulher, sobretudo na sociedade argelina, em relações matrimoniais entre renegados e autóctones, fossem homens ou mulheres.
No Ballet de Molière Le Bourgeois Gentilhomme, no Acto IV, Cena V, são utilizadas passagens em Língua Franca, personificadas nos personagens turcos, como é este exemplo:
“Se ti sabir,
Ti respondir
Se non sabir
Tazir, tazir.
Mi star Mufti
Ti qui star ti
Non intendir
Tazir, tazir.”
Gerard Vigner (VIGNER, 2010, obra citada) fala de uma língua que desapareceu e de cuja memória apenas resta a denominação, já que não existem documentos escritos. No entanto refere que a Câmara do Comércio Francês publicou em Marselha em 1830 um dicionário para ajudar os militares a compreenderem a população durante a ocupação do Norte de África, chamado Dictionnaire de la Langue ou Petit Mauresque, suivit de quelques dialogues familiers et d’un vocabulaire de mots arabes les plus usuels; à l’usage des Français en Afrique. Segundo o autor, a Língua Franca desapareceria com a colonização francesa.
Mohamed Daoui, guia da Habs Qara de Meknés, exemplificando a posição em que os cativos eram acorrentados aos pilares da prisão
Alan Corré (CORRÉ, 2003, obra citada) define a Língua Franca como a mãe de todas as línguas de contacto na Bacia do Mediterrâneo, uma espécie de Esperanto Mediterrânico, com vocabulário reduzido e ausência de regras gramaticais, utilizando apenas os pronomes na primeira pessoa do singular e os verbos no infinito. O futuro, por exemplo, obtinha-se colocando a palavra bisogno (é preciso) antes do verbo no infinito.
Basicamente, era composta maioritariamente por termos latinos ou romanos (italianos, castelhanos, portugueses e franceses), em cerca de 80%, termos árabes e turcos, em cerca de 15%, e alguns termos de outras línguas como por exemplo o grego, numa percentagem de 5%. A preponderância de termos italianos sobre os franceses, portugueses e castelhanos tem como explicação o facto de a maioria dos cativos nas prisões do Norte de Africa serem italianos, como refere Rossetti. (ROSSETTI, 2003, obra citada)
Ficaram célebres as expressões Non paura! Non paura! (não tenham medo) que os corsários gritavam ao abordar os navios, no intuito de evitar o combate e garantir uma rendição pacífica das suas presas, ou Bono! Bono!, como dizia Mulai Ismail aos seus cativos quando estava de bom humor.
Do Glossário de Língua Franca de Alan D. Corré deixamos o link para descarregar o documento, incluindo a versão em PDF:
https://minds.wisconsin.edu/bitstream/item/3920/go.html
Filhos de corsários
Barbara Hlibowicka-Werglaz sistematiza as características da Língua Franca, procurando estabelecer as diferenças e semelhanças entre Pidgins, Língua Franca e Sabir. A principal conclusão a que chega a autora é a de que a Língua Franca é um Pidgin e o Sabir a sua forma afrancesada.
O Pidgin surge quando diferentes comunidades têm urgência em comunicar, de forma muito restrita, tendo geralmente por base a língua socialmente dominante. Essa necessidade surge normalmente em relações comerciais ou de trabalho e o léxico e morfologia são apenas os essenciais para que cumpra a função desejada.
A Língua Franca é um pidgin, mas não resulta da língua socialmente dominante, mas da necessidade de ultrapassar uma situação em que as línguas dos intervenientes são ininteligíveis, mas o grupo socialmente dominante não aceita que o grupo dominado fale a sua língua. Por isso é chamada também de modo de hablar christiano. Para além disso, a Língua Franca permitiu a comunicação entre os povos das duas margens do Mediterrâneo, não apenas a comunicação de simples situações concretas, comerciais ou de trabalho.
O Sabir é o nome dado à Língua Franca após 1830, ou seja, após a decisão francesa de colonizar a Argélia, afrancesando-a até ao decreto da sua extinção.
Assim, todas elas são línguas mistas, necessárias ao entendimento de povos que falavam línguas ininteligíveis, sem as substituírem.
Uma galé
A Língua Franca foi uma língua veicular e temporária utilizada na margem Sul do Mediterrâneo, para onde se processaram movimentações de populações que precisavam ser entendidas e fazer-se entender. Não é por acaso que, apesar de terem existido movimentos de cativos no sentido contrário, não tenha havido necessidade de criar para estes um meio de entendimento com as populações locais. A explicação é simples e reside no facto de que, independentemente das condições deploráveis em que viviam os prisioneiros europeus no Norte de Africa, a sua esperança de vida era real, sendo frequentes os resgates. Era-lhes permitido ter os seus locais de culto, com os seus religiosos, e as missões de resgate da Ordem da Santíssima Trindade eram autorizadas pelas autoridades locais. Ao contrário, na Europa não eram permitidas as mesquitas para os cativos muçulmanos, nem a sua visita por missões humanitárias, sendo a esperança de vida nas galés de apenas um ano. (KNINAH, 2016, p. 52)
Caro Frederico Mendes Paula, estou neste momento a preparar a edição de um manuscrito contendo a crónica de D. Sebastião atribuida a frei Bernardo da Cruz, mas que em caso algum poderia este ser o autor. Diz o Cenáculo e frei Manuel Vicente, bem como quase todos os que publicaram sobre a crónica, que o autor tinha de ser versado no “árabe” para a poder ter escrito. Já o “árabe ” é deveras problemático (o que é isso, o clássico?). Baseiam-se estes autores (incluindo Queiroz Veloso) numa frase da crónica em que ele diz que estando em Lisboa viu e conversou com Abdelcarim, o xerife que se refugiou em Portugal nas vésperas de Alcácer. Se conversou, sabia a língua. Ora eu penso que não. Podia ter conversado na mesma, ou usando intérpretes ou falando numa língua franca que fosse entendível por ambas as partes. De qualquer forma, acho este seu artigo interessantíssimo e gostava de o citar, sobretudo pelo valioso manancial de bibliografia que cita. Gostava que me sugerisse a melhor forma de o citar. Desde já o meu agradecimento.
Caro António Brehm. Penso que a melhor forma de citar o artigo será:
PAULA, Frederico Mendes (2018). “Língua Franca, a língua mestiça do Mediterrâneo”. In Histórias de Portugal em Marrocos, página electrónica. Disponível em https://historiasdeportugalemarrocos.com/2018/01/02/lingua-franca-a-lingua-mestica-do-mediterraneo/
Os meus cumprimentos
Faltaram exemplos da língua franca, textos que permitissem sentir sua presença.
Caro amigo
No texto do artigo existe um link para o Glossário de Língua Franca de Alan Corré, onde poderá descarregar uma versão PDF bastante completa (https://minds.wisconsin.edu/bitstream/item/3920/go.html).
O texto do Bourgeois Gentilhomme de Molière também é descarregável (http://www.toutmoliere.net/IMG/pdf/bourgeois_gentilhomme.pdf).
Cumprimentos
Fascinante trabalho, gostei muito de o ler. Obrigada e Bom Ano!
Muito obrigado. Bom Ano para si também. Cumprimentos
Olá, boa tarde! Muito obrigado pelo envio.
Sobre pirataria arábe: Se tiver tempo poderá como que dar uma vista de olhos (e talvez incluir a matéria, se o bloguista não se importar) por um documento autêntico existente na Torre do Tombo, que há anos facultei ao bloguista. Não sou formado em História, mas parece-me interessante. Sobre pirataria árabe na costa atlântica… Está na Net, com cópia fiel feita por mim, neste endereço: https:// alfeizerense.blogspot.com/2015/02/pedro-fernandes-um- pirata-alfeizerense.html
Bons cumprimentos Carlos Casimiro de Almeida – Alfeizerão
Boa tarde. Obrigado pelo link. Cumprimentos
e o “ladino” surge quando?
O ladino ou judeu espanhol é um cripto-judeu, que terá surgido a partir de 1492 quando os Judeus são expulsos de Espanha