Baluarte Sul do Castelo de Aguz
O Castelo de Aguz foi a última fortaleza construída de raiz por Portugal na costa de Marrocos, a única edificada após o desastre da Mamora de 1515.
Á semelhança das restantes fortalezas isoladas que não evoluíram para Praça-forte, casos de Ben Mirao e do Castelo Real de Mogador, a existência da Aguz portuguesa foi extremamente curta, já que a sua manutenção foi considerada como sem utilidade poucos anos depois de ser construída, facto a que não terão sido estranhas as ameaças das tribos locais e dos Xerifes Sádidas.
Apesar de a presença portuguesa no local não ter ultrapassado os cinco anos, Aguz chegou a abrigar uma pequena comunidade, como atesta o facto de Duarte Fogaça ter sido nomeado prior da sua igreja em 1520.
A Praia de Souira Qadima e o Castelo de Aguz
O Castelo de Aguz implanta-se no extremo Norte da Praia de Souira Qadima, local onde desagua o Oued Tensift, o Rio Tenerife das crónicas portuguesas. No início do século XVI o local revestia-se de importância estratégica para as aspirações de Portugal, já que permitia controlar o acesso ao mar das tribos berberes locais e da própria cidade de Marraquexe, para além de garantir uma presença militar entre Safim e Santa Cruz do Cabo Guer.
A fronteira Sul da Duquela, na transição das actuais regiões da Doukkala-Abda e do Suss, era especialmente hostil nessa época às intenções colonialistas de Portugal, já que as tribos oriundas do Jebel Hadid, ou Montanha do Ferro, nomeadamente os Beni Regraga e os Chiadma, levavam a cabo uma guerra implacável contra o invasor português.
No século XI o geógrafo Al-Bakri já referia a importância do local, assinalando-o como o porto de Aghmat, cidade que precedeu Marraquexe como capital do Sul marroquino, e como lugar onde se localizava um importante ribat.
Fachada Nascente
David Lopes refere que o castelo de Aguz foi edificado em 1507 ou 1508, já que “Diogo de Azambuja em Agosto de 1508 aparece já seu capitão, ao mesmo tempo que de Safim” (LOPES, [1937] 1989, p. 29).
Este facto é, no entanto, desmentido em duas cartas escritas ao Rei D. Manuel, que provam que, apesar de o local já se encontrar confirmado desde essa altura, através de doações sobre a propriedade, as obras apenas se iniciaram no ano de 1519.
A primeira, datada de 22 de Maio de 1519, é escrita por D. Nuno de Mascarenhas, Governador de Safim, fazendo ver ao Rei a necessidade de se iniciar a construção do Castelo de Aguz, que será a forma de garantir a vassalagem das tribos ‘Abda, que se encontram divididas entre o poder dos Portugueses e o do Xerife. O Castelo seria assim um meio para controlar o território e garantir a permanência dos vinte aduares no local como vassalos da Coroa Portuguesa. A permanência das tribos nos territórios controlados pelos Portugueses era fundamental para que se continuassem a receber tributos em cereais, vitais para a cidade de Safim. D. Nuno propõe a D. Manuel que o Rei envie o dinheiro para a construção e Safim garante as tropas para a sua defesa. (CÉNIVAL, 1939, Tomo II, p. 243-247)
A segunda carta, datada de 11 de Agosto de 1519, é escrita pelo Bispo de Safim D. João Subtil, na qual refere que o Castelo de Aguz deverá ter 130 braças de parede e ficar de dois lados cercado pelo mar. (CÉNIVAL, 1939, Tomo II, p. 250-254)
Fachada Sul
A construção é assim realizada por proposta de D. Nuno de Mascarenhas, Governador de Safim, ao Rei de Portugal, com o apoio do bispo dessa Praça, D. João Subtil. “D. Nuno de Mascarenhas propõe a D. Manuel I uma obra no então designado sítio de Aguz, financiada pela coroa mas organizada, orientada e defendida a partir de Safim. Do mesmo ano data a missiva de D. João Subtil, bispo daquela cidade, descrevendo o projeto para um grande castelo cercado por água em dois dos seus lados” (CORREIA, 2008, p. 346). Por esse motivo o Castelo também é conhecido como Castelo Mascarenhas, sendo ainda designado Castillo Pena e Casbah Lahjar ou Castelo das Pedras.
Aguz seria assim uma fortaleza dependente da Praça de Safim e construída por iniciativa dos seus governantes.
Planta do castelo de Aguz da autoria de Edmond Doutté 1867-1926 (as dimensões do castelo encontram-se incorrectamente representadas, apresentando um rectângulo com 45 x 25 metros, e não os 35 x 35 que de facto tem)
A autoria do projecto é atribuída aos irmãos Diogo e Francisco de Arruda, conforme refere João Campos. “Foi construído em 1519-1520, provavelmente com desenho dos Arrudas, pelo governador D. Nuno de Mascarenhas”. (CAMPOS, 2008, p. 113)
É um castelo de forma quadrangular com cerca de 35 metros de lado, com adarve e ameias, com dois baluartes circulares nos cunhais Noroeste e Sueste, e entrada por uma porta situada na fachada Nascente. Do lado do mar, a estrutura assenta num alambor que lhe serve de quebra-mar.
O projecto inicial previa uma fortaleza de maiores dimensões, com cento e trinta braças de lado e não com as sessenta e cinco que apresenta.
Castelo de Aguz por A. Luquet, 1941, Serviços Históricos de Marrocos
O desenho e o método construtivo postos em prática seguem um processo que os portugueses utilizavam normalmente para construir as suas fortalezas em território hostil e que tinha por objectivo fazê-lo no mais curto espaço de tempo e na máxima segurança.
Por um lado, a concepção da fortaleza assentava num projecto-tipo, com base numa planta quadrangular e torreões circulares nos seus vértices, fossem cinco, quatro ou dois, situação que permitia uma racionalização de meios. Por outro lado, os materiais eram transportados de Portugal, num processo de pré-fabricação, o que acelerava o processo construtivo e evitava riscos desnecessários com a eventual recolha e fabricação no local. As pedras de cantaria eram transportadas já talhadas, os elementos de madeira prontos a utilizar, bem como a cal, os pregos e restantes acessórios. Finalmente, a construção definitiva era precedida da montagem no sítio de uma estrutura pré-fabricada de madeira, para abrigo dos operários e das defesas, em torno da qual se construía a estrutura definitiva.
A utilização de estruturas defensivas provisórias ou castelos de madeira era aliás comum não só para a construção de fortalezas, mas também em situações de concentração de tropas para operações militares como cercos, como sucedeu na tentativa falhada para tomar Tânger em 1437 e na conquista de Arzila de 1471, tendo a designação de palanques.
A porta do Castelo de Aguz
A utilização deste método expedito deu origem à Lenda de Aguz, “segundo a qual os portugueses, numa só noite, teriam erguido a fortaleza, com o auxílio dos anjos”. (CRUZ, 2015, página electrónica citada)
David Lopes refere assim este facto:
“Mas aqui a tradição é acompanhada de maravilhoso, pois reza que as pedras foram levadas de Portugal e o castelo edificado no espaço de uma noite”. (LOPES, [1937] 1989, p. 29)
A partir de 1524-1525 desaparecem as referências ao Castelo de Aguz nos documentos portugueses, não se sabendo se foi abandonado pela sua inutilidade, se foi conquistado pelos guerreiros Regraga.
“No movimento da Jazoulya, ponta de lança da guerra santa, os Regraga demarcaram-se pelos seus combates contra os ocupantes portugueses, fornecendo um valoroso exército de Moujahidine”. (HACHIM, 2010, página electrónica citada)
O território Chiadma, país dos Regraga
Mas quem são esses Regraga, monges-guerreiros e mendigos celestes que tão arduamente imploravam a bênção divina?
O terrritório situado entre Souira Qadima e Essaouira, designado por Chiadma, é habitado pelos Regraga, tribo berbere da Conferderação Masmuda, e pelos Chiadma, tribo de origem Árabe, pertencente à tribo Yemenita dos Beni Maaqil, que entre os séculos XIII e XV se instalaram no Sul de Marrocos. Esta convivência ancestral entre as duas tribos influenciou linguisticamente os Regraga, que falam Árabe com um acento particular, em oposição aos seus vizinhos do Sul, os Haha, também Masmudas, que falam o Tachelhit.
O País Chiadma é dominado por uma montanha situada no seu interior, o Jebel Hadid ou Montanha do Ferro, sagrada para os Regraga, e divide-se em duas zonas distintas _ o Sahel ou litoral, faixa localizada entre o Oceano e o Jebel Hadid, e a Kabla, planalto situado a Nascente dessa montanha. Segundo Mouna Hachim, citando Mohamed Mokhtar Soussi, o território dos Regraga já teria sido muito mais vasto, incluindo “as duas margens do Oued Tensift desde a sua foz no Atlântico até ao Oued Chichaoua, bem como Haha, Chiadma, o Sousse e o Sahara até Seguia Hamra”. (HACHIM, 2010, página electrónica citada)
O morabito de Sidi Abdellah Ben Ouasmin no Jebel Hadid. Autor desconhecido
A história dos Regraga está envolta em grande misticismo, cuja origem remonta a tempos ancestrais.
Abdelkader Mana é um sociólogo estudioso dos Regraga e refere nos seus trabalhos que, segundo escritos antigos, os antepassados dos Regraga eram inicialmente apóstolos (Hawariyun) de Sidna Aissa (Jesus Cristo), por intermédio de Sidi Yahya (S. João Baptista), professando uma crença próxima do Arianismo. Perseguidos pelos Ortodoxos, terão fugido do Médio Oriente por mar, instalando-se na costa Ocidental de Marrocos, na zona da foz do Oued Tensift, onde fundaram uma igreja chamada Timzkdem n’houren ou Igreja dos Apóstolos. Desse templo surgiram sete Zauías ou Confrarias, por mão de sete homens santos:
Sidi Ouasmine (sultão dos Regraga, sepultado no cume do Jebel Hadid), Sidi Boubker Ben Ashemas (sepultado na Zauía Agermous), o seu filho Sidi Salah Ben Boubker, Sidi Abdellah Ben Salah, Sidi Aissa Bou Khabia (sepultado nas margens do Oued Tensift), Sidi Yala Ben Ouatil (sepultado no Ribat Chakir) e Sidi Said Sabek (sepultado em Tamazat).
Os sete homens santos foram por chamamento divino para a Península Arábica, onde se encontraram com o Profeta Muhammad, por mão do qual se islamizaram e de quem se tornaram Companheiros. A designação Regraga vem do nome que lhes foi dado pela própria filha do Profeta, Lalla Fatima-Zahra, que lhes chamou Rajraja, que significa gagos em Árabe, devido à sua pronuncia rebuscada. De regresso a Marrocos, foram os primeiros a difundir o Islão no país, muito antes da invasão Árabe comandada por Oqba Ibn Nafi, facto que no entanto os Oulemas de Fez não corroboram.
O Daour Regraga. Autor desconhecido
Todos os anos, nos meses de Março e Abril, os Regraga celebram a Primavera Regraga, durante a qual visitam os 44 locais santos do território Chiadma. Essa romaria chama-se Daour ou volta, sendo também conhecida por Hajj El Meskin ou Peregrinação dos Pobres. Existe nas tribos Regraga a convicção de que fazer o Daour várias vezes equivale a fazer a Grande Peregrinação a Meca. Na origem do Daour estaria uma visita que os sete santos faziam às tribos para verificarem que não tinham abandonado a religião:
“Todos os anos, os sete santos guerreiros visitavam as tribos da região afim de verificarem que elas não tinham apostasiado: essa é a origem do Daour.” (PÉNICAUD, 2005, obra citada)
O território Chiadma encontra-se dividido em 13 zauías, correspondentes às 13 sub-tribos Regraga. Em cada zauía existe um manuscrito chamado Ifriqya ou África, uma espécie de cartão de identidade que legitima o seu poder, exalta os feitos dos seus antepassados e determina a sua missão.
Segundo Abdelkader Mana, “o território Chiadma compõe-se actualmente de dois grupos: a metade sagrada, constituída pelas treze zaouia Regraga e a metade profana, constituída pelas quatorze tribos Chiadma.” (MANA, 2009, página electrónica citada)
Existem assim dois tipos de tribos no território Chiadma – as tribos Khoddam ou servidoras e as tribos Zaouia, protectoras. E pela protecção os servidores pagam um tributo.
“As tribos-khoddam estão sob a protecção sobrenatural das tribos-zaouias como nos confirma um velho canto :
Os Haha nas grutas sobrevoadas pelas águias
O que podem temer os Chiadma que os Regraga protegem ?
Do cume do Jebel Hadid, o Sahel não passa de um imenso espelho.
O que podem temer os Chiadma que os Regraga protegem ?”
(MANA, 2009, página electrónica citada)
A chegada dos Regraga a Essaouira, numa pintura de Roman Lazarev
A peregrinação, que tem a duração de trinta e nove dias e um percurso circular de 460 quilómetros, está intimamente ligada aos ciclos da vida, que se repetem, estabelecendo uma relação mística entre o renascimento das plantas em cada Primavera com a própria morte e a ressurreição dos humanos. O percurso é eminentemente rural, tendo apenas uma paragem urbana, na cidade de Essaouira.
“No rasto da sua trajectória, os Regraga desenham no espaço geográfico dos Chiadma duas enormes rodas que pretendem reproduzir uma constelação cósmica na terra (uma das tribos chama-se justamente “Njoum”, as estrelas). A primeira roda segue o movimento solar e a segunda roda segue o movimento lunar. Uma desenvolve-se a Oeste do Jebel Hadid, no chamado Sahel, e a outra desenvolve-se a Leste, na chamada Kabla.” (MANA, 2009, página electrónica citada)
O Daour inicia-se na Zauía de Akermoud com o taouaf movimento circular em volta do morabito. Vestida de branco, Laarossa, a noiva, rainha da chuva, abre a cerimónia montada num cavalo. Curiosamente a noiva é um homem, o moqadam ou chefe da Zauía de Akermoud que encarna esta figura feminina, que no início dos festejos simula fecundar simbolicamente as verdadeiras noivas da aldeia.
Manoel Pénicaud é um dos estudiosos do trabalho de Mana e refere-se assim ao papel que o sociólogo de Essaouira atribui ao Daour Regraga:
“Abdelkader Mana desenvolveu o conceito de “caprificação” para qualificar a acção dos Regraga sobre os que pedem a Baraka (bênção divina). Trata-se tecnicamente de uma operação arbórea praticada pelos agricultores que consiste em tornar fértil uma figueira que se tornou estéril. Na sua passagem, os Chorfa (senhores) Regraga “fecundam simbolicamente” as tribos sedentárias Khoddam.” (PÉNICAUD, 2005, obra citada)
Oferenda de grandes pratos de couscous durante o Daour. Foto Manoel Pénicaud
Pénicaud refere no seu trabalho a relação entre o sono e a morte. “O sono é irmão da morte”, diz um ditado popular. E cita Boujemaa Lakhdar, antigo conservador do Museu de Essaouira:
“A dormição não é a morte, mas um sono que se assemelha à morte. A vegetação adormecida espera o regresso da bela estação (…) Para que as colheitas sejam abundantes, é necessário que a baraka (dos Regraga) venha completar e concretizar a obra da natureza.” (PÉNICAUD, 2005, obra citada)
Durante o Daour, uma khaima ou tenda é transportada num dromedário e montada nos souks que se organizam em cada paragem. Nessa tenda são recebidas as oferendas, sejam alimentos, seja dinheiro, e em troca é dada a Baraka.
Os souks são o centro das festividades, onde se organizam jogos equestres, fantasias e espectáculos de música, constituíndo um evento de carácter social que pretende também rejuvenescer as próprias relações sociais no seio das tribos, sarando conflitos e desavenças por mais um ano.
Les Chemins de la Baraka. Filme de Manoel Pénicaud e Khamis Mesbah
A importância da Primavera Regraga é decisiva para o equilibrio deste território, conferindo um sentido místico aos ciclos da natureza e harmonizando as relações inter-tribais.
“No mundo cíclico dos Regraga, não existe princípio nem fim, mas um eterno regresso: alternância perpétua entre a noite e o dia, do ritmo das estações, da morte e da ressurreição e da vegetação de que depende a vida dos Homens.” (HACHIM, 2010, página electrónica citada)
Este trabalho é excelente para possibilitar um maior e melhor conhecimento da história dos portugueses em Marrocos. Pena que essa cultura comum e a literatura e musica do magrebe
tenha tão pouca divulgação entre nós e vice versa.
De facto o poder em Portugal nunca apoiou de forma séria a divulgação da cultura luso-marroquina. Podendo parecer que se trata apenas de mais uma manifestação da ignorância dos nossos dirigentes, para mim de facto assim não é, já que não serve os desígnios políticos da afirmação da nossa pretensa identidade europeia
Mi felicitación y enohrabuena por ese estupendo artículo que contribuye una vez más al conocimiento de una parte de la historia bastante desconocida por el público en general.
Obrigado pelo teu comentário, caro amigo
os portugueses construíram de raiz em Marrocos fortificações em Marrocos e o intercâmbio entre as culturas dos dois povos deixou um legado , lá e cá, que importa conhecermos. Por exemplo sobre a literatura magrebina ou árabe(!!!) como Ibn Abd Rabbini (860-940), Abú al-Qali (901-967), Ibn Bassan de Santarén (?-1147) e Said al-Magrabi, al-Bakrí (?-864) ,Abd al-Malik (796-852), o primeiro historiador andaluz, o que se pode saber sobre suas obras de mais concreto?
A frase “Lisboa é uma cidade antiga, situada à beira-mar, quebrando-se as ondas na sua muralha (…) de construção admirável e imponente” é do geógrafo al-Bakrí e pode-se ler parede do lado direito do piso térreo da Casa dos Bicos. A nossa história passa pelo pensamento destes antepassados?
A nossa história é comum e esse Património (não só o material, mas sobretudo o imaterial) são o testemunho desse passado, que indubitavelmente influenciou aquilo que somos hoje
Precisamos de investir mais no conhecimento do tal património imaterial comum Portugal ou mesmo Ibérico -Marrocos. Aproveitem para ouvir a apresentação do próximo espectáculo do projeto Al-Mu’tamid Poeta Rei do Al-Andalus no https://vimeo.com/126210333