Um barqueiro no Rio Um er-Rbia (ou Rio Morbeia) em Azamor
Este artigo relata a extraordinária aventura de Estêvão de Azamor, desde que foi levado da sua cidade em Marrocos, até que chegou à aldeia de Hawikuh, no actual Estado Norte-Americano do Novo México.
Durante a sua viagem, iniciada no dia 27 de Junho de 1527 em Sanlúcar de Barrameda, integrado na expedição de Pánfilo Narvaez para a conquista da Florida, e terminada em Maio de 1539 na aldeia de Hawikuh, em busca das míticas Sete Cidades de Cíbola, acompanhando a expedição de Frei Marcos de Niza, Estevanico foi escravo, curandeiro, intérprete, guia e um sedutor incorrigível.
O final desta aventura está envolto em mistério, não se sabendo se foi morto pelos índios Zuni, ou se simulou a sua morte para desfrutar com eles a liberdade com que sempre sonhou, desde fora escravizado pelos portugueses na Praça-Forte de Azamor.

Uma barcaça para atravessar o Rio Um er-Rbia (ou Rio Morbeia) em Azamor, num postal antigo
Azamor cidade de comércio e de escravosDesde o ano de 1486 que Azamor era um importante centro de comércio em mãos portuguesas na costa atlântica de Marrocos, situação legitimada por um acordo de vassalagem que permitia a Portugal manter na cidade uma feitoria. Aí afluíam comerciantes de várias origens, com destaque para genoveses e italianos, e claro, portugueses, que comerciavam um sem fim de produtos como trigo, cevada, milho, cavalos, burros, camelos, carneiros, têxteis, cera, lã, anil, alquicés, pescado, mel, manteiga, e, sobretudo, ouro e escravos. O carácter cosmopolita dessas relações comerciais deixou para sempre a sua marca na cidade, com os motivos dos bordados de Azamor, de influência oriental, como o dragão, que ainda hoje se utiliza.
Esse acordo de suserania previa que, para além de garantirem a existência da feitoria, os habitantes de Azamor pagariam um tributo de 10.000 sáveis à Coroa Portuguesa, peixe muito abundante no Rio Morbeia, que banha a cidade, e, em troca, poderiam circular e comerciar livremente por todos os domínios sob administração portuguesa. (LOPES 1989: 36)
Mas em 1504 o acordo foi quebrado pelos habitantes de Azamor e alguns portugueses que residiam na cidade foram perseguidos e expulsos. Em 1508 os portugueses aproveitam-se de discórdias no seio dos moradores para tentarem ocupar a cidade pela força, encarregando um armador de Tavira, de nome Sebastião Rodrigues Bérrio, de reunir uma pequena armada para o efeito, composta de 50 navios. De acordo com Damião de Góis, “na armada iam quatrocentas lanças, em que entravam alguns acobertados (cavalos protegidos com peças de couro ou metal) e dois mil espingardeiros, e outros soldados, todos de ordenança, fora bombardeiros e gente do mar”. (GÓIS, 1566-1567, II Parte, fl. 45)
Na noite de 12 de Agosto a armada entrou pela barra do Rio Morbeia e aproximou-se das muralhas da cidade. No dia seguinte iniciaram-se os bombardeamentos de lado a lado, e os mouros “fazendo grandes alaridos, gritas, e algazarras, como têm de costume toda a gente daquela província, lançando pelo rio abaixo balsas de lenha, canas, palha, estopa, tudo aceso com fogo de alcatrão, de que se defendiam com muito trabalho, além de que saíam muitos à praia a escaramuçar”. (GÓIS, 1566-1567, II Parte, fl. 46)
Muitos portugueses desembarcaram e travaram-se vários combates com mortos e feridos de ambos os lados, tendo os mouros entrado na cidade e fechado as portas. Os portugueses perderam vários navios e respectivas tripulações, fosse pelo fogo ateado pelos mouros, fosse por terem ficado encalhados sem possibilidade de fuga. (GÓIS, 1566-1567, II Parte, fl. 46)
Os portugueses decidiram então bater em retirada. Segundo David Lopes, os moradores terão então zombado de Bérrio, dados os escassos meios de ataque de que dispunha, gritando-lhe do cimo das muralhas: “Então Bérrio, com quatro caravelas quereis tomar Azamor?” Seria daqui que veio o ditado referido por Padre António Vieira, “Tomar Azamor com uma caravelinha”, quando alguém pretende fazer alguma coisa sem ter para tal os meios necessários. (LOPES 1989: 37)
Parece que D. Manuel não gostou da graça e terá dito que se “as 50 velas tinham feito rir a gente de Azamor, ele mandaria 500, com que a faria chorar”. (LOPES 1989: 37)
Pescadores no Rio Um er-Rbia em Azamor, num postal antigo
E assim foi. Em 1513, uma poderosa armada, comandada por D. Jaime, Duque de Bragança, composta por 500 navios, 13.000 homens a pé e mais 2.000 a cavalo, aporta no extremo Poente da Praia de Haouzia, no local da futura Cidadela de Mazagão, evitando a barra traiçoeira do Rio Morbeia. O exército percorre por terra os cerca de 15 quilómetros até à cidade, que encontra deserta. Damião de Góis conta que o alcaide de Azamor ainda se dirigiu ao local onde os portugueses desembarcaram “com cinco mil de cavalo, e sete mil de pé, com intenção de darem batalha, mas vendo o arraial, e a boa ordem que o Duque tinha nele, voltaram para a cidade, onde deram tais novas, que logo se começou a despejar das pessoas que não eram para a poderem defender”. (GÓIS, 1566-1567, III Parte, fl. 88)
Segundo Pedro Dias, a cidade foi conquistada no seguimento de combates, já que “durante o assédio, os muros foram submetidos a trabalho de sapa, para os enfraquecer, tendo os nossos militares levantado as tradicionais mantas, para poderem picar as paredes a salvo dos projécteis que os azamorenses lhes arremessavam”. Dias acrescenta que após a conquista “a população muçulmana abandonou as suas casas, ficando apenas a comunidade judaica, à qual se juntaram mouros de outras zonas, colonos idos do Continente, de Castela, e, sobretudo, da ilha da Madeira”. (DIAS 2004: 126)
Com a cidade nas mãos dos portugueses, Azamor transforma-se num importante mercado de escravos. A cidade encontrava-se entre os principais destinos da exportação de escravos negros através do Sahara. (SCHROETER 1992: 185)
Aí afluíam não só caravanas que traziam os chamados mouros pretos da África subsariana, mas também os mouros negros de Marrocos, aprisionados na chamada guerra guerreada que se desenvolvia ao redor da Praça. (MAESTRI 2006: 116)
Muitos dos mouros negros eram arrebanhados pelos portugueses nas aldeias vizinhas pelos almogávares, força inspirada nos corpos militares criados pelas coroas de Aragão, Valencia, Castela e Portugal durante a conquista cristã da Península, com o mesmo nome, composta por indivíduos recrutados entre os camponeses, pastores e lenhadores das zonas de fronteira. O termo vem do Árabe al-mighuar (pl. al-maghauir), que significa corajoso. Os almogávares portugueses da guerra de Marrocos eram uma força de elite, composta pelos mais moços e briosos, que tinham por missão fazer incursões em território inimigo, destruindo colheitas, roubando gado e fazendo cativos, com o objectivo de pacificar as populações ou afastá-las para áreas mais remotas, para além de combater os guerrilheiros, ao serviço do rei de Fez. As suas acções tinham o nome de almogavérias, entradas ou correrias, e destinavam-se sobretudo a evitar que a partir das aldeias vizinhas às praças surgissem ataques conta as mesmas. Eram comandados por um almocadém, do árabe al-muqqadam, que significa o que precede, o que vai à frente.
Gravura de Azamor no séc. XVI da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg, 1572
A fama de Azamor como mercado de escravos era bem conhecida em Marrocos, como nos relata Bernardo Rodrigues, morador em Arzila, que no ano de 1521, ano em que graçou uma grande miséria de fome e de peste na Duquela, o comércio de escravos generalizou-se ao ponto de os pais venderem os seus filhos para sobreviverem.
Nesse ano, Bernardo Rodrigues foi a Azamor comprar escravas, como conta:
“Depois que vindo nova a Arzila que de Çafim e de Azamor vinham muitos navios carregados de mouros e mouras formosas, o conde com Jorge Lopes, mercador e muito seu, ordenaram mandar uma caravela a Azamor a comprar escravos, a qual caravela era do mesmo Jorge Lopes e de Rodrigo Afonso, de Tavira, que, por andar na carreira de Tavira a Arzila, a trazia com quatro berços e um feixe de lanças e uma dúzia de peitos de almazém (corpos de armas), e por capitão e comprador mandaram a Duarte Rodrigues, mercador, e, como homem honrado, aconselhou a minha mãe, viúva, que me mandasse em sua companhia e podia trazer um par de escravas e lhe podia ficar uma de proveito; e com este conselho me embarquei com quarenta cruzados e dois sacos de biscoito e alfarroba: trouxe cinco peças de muito boas escravas.” (RODRIGUES 1915: 327-328)
Mais à frente, acrescenta:“A requesta e demanda era muito grande e Azamor estava cheio de mercadores e de dinheiro, e o rio cheio de navios, uns carregados e outros partidos, e não compravam senão mulheres moças de dez ou doze anos até vinte cinco; e estas, as mais formosas e bem assombradas, valiam até quarenta tostões, que outra moeda de ouro não queriam senão tostões e reais de prata, e desta moeda de prata havia tanta que um dobrão não queriam por sete tostões.” (RODRIGUES 1915: 328)
E concretiza a sua compra:“Eu comprei, dentro de Azamor, de um morador uma moura, moça de menos de vinte cinco anos, muito alva e formosa, e mais alta de corpo que eu, com um filho de seis anos, por quarenta tostões, e me a teve em casa até a embarcar, dando-lhe eu de comer, que, como minha ida era buscar uma boa escrava, achando esta, não curei de mais regatear. Esta levou a peste, sendo já cristã, chamando-se Lianor Rodrigues; o filho se criou em casa do doutor meu irmão e se fez bom cavaleiro, e o mataram os mouros com o capitão Luís de Loureiro, dando mostra de bom cristão; depois foi cativo e resgatado e, por isto, se chamou António Rodrigues mouro santo. Também andei nos aduares com os meus companheiros, e neles comprei, de um senhor de uma alhaima ou tenda, uma filha e uma neta, assaz bem assombradas, a filha por trinta e dois tostões, a neta por vinte oito; e, acabando de lhe contar sessenta tostões por duas moças, que ambas não passavam de vinte cinco anos, me quis convidar com uma pouca de carne de camelo assada, que em tassalhos (nacos) tinha, a qual eu não ousei comer; e comprei um moço, muito gentil homem, por dezasseis tostões. Por estas compras se pode ver a fome e necessidade que esta gente passou neste ano.” (RODRIGUES 1915: 328-329)
Nesse ano foi vendido como escravo um jovem negro chamado Mustafá. Não se sabe ao certo se nasceu na cidade ou se foi trazido de fora. Tinha os seus 18 anos, boas maneiras, era bem constituído e falava o árabe, o tamazight (ou língua berbere) e o português, o que faz supor que trabalhasse anteriormente na casa de algum rico comerciante azamorense. O moço foi levado para Lisboa.

Lisboa no final do século XVI, in Atlas “Civitates Orbis Terrarum” de Braun e Hogenberg
LisboaNos meados do século XVI, Lisboa era uma cidade em transformação, com uma riqueza comercial próspera, resultado do intenso comércio que os Descobrimentos proporcionaram. Estima-se que a população residente se aproximasse dos 85.000 habitantes, e que todos os dias entrassem e saíssem da cidade cerca de 2.000 pessoas, maioritariamente agricultores, que abasteciam os mercados de carne e de hortaliças.
A vida comercial e administrativa concentrava-se na zona ribeirinha, sobretudo entre a Ribeira das Naus e o Chafariz d’el Rei, onde se instalara o Paço Real, e consequentemente diversos edifícios ligados à administração — a alfândega nova, o arsenal, o celeiro público, a Casa da Índia ou a Misericórdia — originando o aparecimento de várias artérias importantes como a Rua Nova d’el Rei e a Rua Nova dos Mercadores, ladeadas de belíssimos edifícios, onde fervilhava uma enorme actividade comercial e artesanal.
Na Ribeira instalaram-se várias famílias nobres e comerciantes, entre os quais muitos mercadores estrangeiros, e trabalhavam servidores régios, funcionários públicos e religiosos, artífices, trabalhadores não qualificados, carpinteiros ligados à construção naval, marinheiros e escravos.
Lisboa era a cidade europeia com maior número de escravos africanos, estimando-se que representassem cerca de 10% da população, o que levou o flamengo Nicolaus Clenardus a fazer esta afirmação exagerada:
“Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase em crer que só em Lisboa há mais escravos e escravas do que portugueses de condição”. (SAUNDERS 1994: 21)
Para alimentar toda esta gente, foi criado um sistema de “street food”, que não só dava resposta às centenas de não residentes na cidade, mas também àqueles que, trabalhando na baixa, não se deslocavam ás suas casas para comer.
As viandas (como se designavam os alimentos na época) eram servidas em inúmeras tendas ou alpendres de telha verde, e nas cerca de três centenas de tabernas estabelecidas.
O peixe era vendido na praça, fresco, seco ou salgado, amanhado no rio por escamadeiras, e servido frito ou assado, sobretudo sardinhas. A carne, comprada no açougue, servia-se em sopas, uma espécie de açordas de caldo de carne com pão e legumes. As tripas e restantes miudezas cozidas eram muito apreciadas. Dezenas de mulheres transportavam á cabeça grandes panelões de arroz cozido, cuscuz e chícharos, que serviam em tijelas de barro. Para além destes alimentos, existia um sem número de vendedores de alféloas e fartens, doces feitos com massa de açúcar (ou melaço) e amêndoas, aletria e fruta de açúcar.
O vinho tinha um papel importante, fosse puro ou engessado (vinho de má qualidade misturado com gesso para melhorar o sabor e aparência), estimando-se que diariamente se consumissem na zona mais de 70 pipas.
Nesta vida de rua, que se prolongava pela noite dentro, juntavam-se umas centenas de mulheres de má fama que faziam companhia aos muitos homens frequentadores das tabernas.
O comércio de escravos contribuía grandemente para esta actividade comercial, fossem pretos, mestiços, índios, indianos, mouros ou brancos, originários sobretudo dos portos de Luanda, Benguela e Massangano em Angola, de Cabo Verde, da Índia, de Marrocos, trazidos das praças de Azamor, Mazagão, Safim e Tânger, da Guiné e do Gana. O negócio estava nas mãos de vários correctores e mercadores, que os vendiam na praça pública através da Casa dos Escravos, sem contar com os muitos escravos desembarcados clandestinamente em Cascais ou na Praia das Maçãs, para fugir aos impostos. Os desgraçados desfilavam quase nus conduzidos por um pregoeiro, que anunciava o seu preço, e depois os colocava na Rua Nova, onde os mercadores se encontravam.
Grande parte estava em trânsito, com destino às Américas ou aos mercados europeus, outros eram vendidos para o trabalho nos campos e, os mais afortunados, eram vendidos para o trabalho doméstico — como foi o caso do nosso Mustafá, comprado por um fidalgo espanhol de Béjar del Castañar, chamado Andrés Dorantes de Carranza.
A compra de Mustafá por Dorantes terá ocorrido pouco tempo depois da chegada do negro a Lisboa. Dorantes baptizou Mustafá com o nome Estêvão (Esteban) e apelido Dorantes, seguindo a tradição de atribuir ao escravo o apelido do seu senhor. Estêvão, a quem Dorantes chamava Estebanico, aprendeu o castelhano e as “boas maneiras” da educação europeia, e ao longo dos anos a relação entre ambos criou laços de amizade, sem, no entanto, quebrar o registo do amo e do escravo. Estevanico era um criado, mas também uma espécie de guarda-costas de Dorantes, situação para a qual contribuiu a sua elevada estatura e apreciável corpulência.

Sevilha no século XVI, in Atlas “Civitates Orbis Terrarum” de Braun & Hogenberg
SevilhaDorantes era um homem bem relacionado na sua cidade natal, privando com a família dos Zúñiga, principal família de Béjar del Castañar, que tinha fortes ligações à Coroa Espanhola. Era amigo de D. Álvaro II de Zúñiga y Pérez de Guzmán, segundo Duque de Béjar e Plasencia, primeiro Conde de Bañares e primeiro Marquês de Gibraleón, nascido em Sevilha e residente nessa cidade, onde era alcaide-mor, para além de pertencer ao primeiro conselho de estado criado pelo imperador Carlos V.
O relacionamento de Dorantes com o Duque de Béjar permitiu-lhe mudar-se para Sevilha, acompanhado de Estevanico, servindo na casa de D. Álvaro, o Palácio Zúñiga ou Palácio Altamira, um majestoso edifício de inspiração mudéjar situado na calle Santa Maria la Blanca, a dois passos da Catedral e dos Reais Alcazares.
Sevilha era a Porta da América, com os seus 85.000 habitantes, dos quais 6.5000 eram escravos. A cidade atraía gente de toda a Espanha e de toda a Europa, em busca das riquezas do Novo Mundo, e de Sevilha partiam para as Américas milhares de homens, ao ponto de o embaixador de Itália ter afirmado em 1526 que “saem tantas pessoas para o Novo Mundo [leia-se homens] que a cidade está pouco habitada e quase em poder de mulheres. Todo o vinho e trigo que aqui se cria é enviado para as Índias, e também se enviam gibões, camisas, calças e coisas semelhantes que, até agora não se fazem lá e que dão grandes lucros”. (GÓNGORA VENEGAS, PARDILLA MARCOS e ACOSTA BONO 2004: 19)
Os bairros ribeirinhos de Triana e Arenal fervilhavam de actividade comercial e vida boémia, onde se concentravam pessoas e animais, mercadores e astutos rufiões, mulheres da vida e escravos. Na grande praia do Guadalquivir apinhavam-se carroças e animais de carga que transportavam baús, fardos, toneis e todo o tipo de mercadorias, prontas a embarcar em dezenas de navios com destino ao Novo Mundo.
Na casa de D. Álvaro preparava-se uma expedição para tomar posse de La Florida, tendo o imperador Carlos V assinado um acordo com Pánfilo de Narvaez, que o nomeava adelantado e lhe concedia o direito de descobrir, conquistar e povoar todo o território desde o Rio de las Palmas (no México), até à Florida. (CABEZA DE VACA 2015: 11, da Introdução de Trinidad Barrera López)
Pánfilo era um guerreiro experimentado, um veterano das guerras das Américas, famoso pela sua crueldade em relação aos nativos. De cabelos ruivos e com um só olho, usava uma pala ao jeito dos piratas para cobrir o lugar do olho que lhe faltava. Começou como soldado na conquista da Jamaica e posteriormente acompanhou Diego Velázquez de Cuéllar na conquista de Cuba. Por ordem de Cuéllar, fora enviado para o México, para pôr termo à expedição não autorizada de Hernán Cortez, mas, apesar de comandar um exército três vezes superior ao do seu oponente, foi derrotado e passou um par de anos prisioneiro. A investidura como adelantado em 1526 foi o coroar da sua carreira militar, em que se revelou um líder medíocre e desastrado, como viria a ser a expedição para que fora nomeado.
Aliás, desde que em 1512 Don Juan Ponce de León descobriu a Florida, até à expedição de Hernando de Soto, que regressaria destroçada ao México em 1542, todas foram marcadas pelo fracasso. Os cronistas da época estão de acordo em considerar que a expedição dirigida por Pánfilo de Narvaez foi exemplar quanto à insensatez, imprudência e má liderança.
Provável itinerário da expedição de Pánfilo Narvaez
A expedição de Pánfilo de NarvaezSete meses depois da assinatura do acordo entre Carlos V e Pánfilo Narvaez, a 17 de junho de 1527, a dita expedição partia do porto de Sanlúcar de Barrameda, com cinco navios mal equipados, seiscentos homens e quarenta cavalos. A tripulação incluía também algumas mulheres e uns quantos religiosos. Os homens eram sobretudo militares e marinheiros, para além de uns poucos carpinteiros, calafates, ferreiros, cozinheiros e outras profissões necessárias à empresa, a maioria espanhóis, e alguns portugueses, italianos e gregos.
Para além de Pánfilo Narvaez, Andrés Dorantes e Estevanico, outros dois homens merecem uma referência especial pelo papel que teriam na expedição: Alvar Nuñez Cabeza de Vaca e Alonso del Castillo.
Álvar Nuñez era natural de Jerez de la Frontera, e o apelido Cabeza de Vaca, herdado da mãe, tinha origem na participação destacada que um antepassado seu, um pastor chamado Martín Alhaja, tivera na Batalha de Navas de Tolosa de 1212. O nome vinha do facto de ter assinalado uma passagem nas montanhas com o crânio de uma vaca para indicar o caminho às tropas cristãs que iam combater os mouros. No dizer de Mestre Juan de Ocampo, Álvar era determinado, nobre, arrogante, de cabelos louros e vivos olhos azuis, barba comprida e crespa. Um cavaleiro e capitão vistoso, por quem as moças do Duero se apaixonavam e cuja espada os homens temiam. (CABEZA DE VACA 2015: 15, da Introdução de Trinidad Barrera López)
Quanto a Castillo, era originário de uma família da baixa nobreza de Salamanca, filho de um médico, que partiu na expedição com o intuito de fazer fortuna.

Capa da Relación de Alvar Nuñez Cabeça de Vaca
Álvar Nuñez Cabeça de Vaca, que tinha na expedição o cargo de tesoureiro e meirinho-mor, escreveu a crónica da viagem, na obra Naufrágios, republicação da obra original de Álvar Nuñez Cabeza de Vaca com o título La relación y comentarios del gobernador Alvar Núñez Cabeza de Vaca, de los acaescido en las jornadas que hizo a las Indias, publicada em Valladolid no ano de 1555 e que teve uma segunda edição no ano de 1906 pela Librería General de Victoriano Suárez de Madrid com o título Relación de los naufragios y comentarios de Alvar Núñez Cabeza de Vaca. A obra de Álvar Nuñez é criticada por vários autores, que colocam em causa a veracidade dos relatos que contém, como é o caso de M. Serrano y Sanz, patente nesta passagem:
“Tal é a verídica pintura que dos índios do Novo México e dos da Florida que nos deixou D. Juan de Villagutierre e Sotomayor, e que torna suspeita a veracidade de muitos detalhes descritos por Alvar Nuñez nos seus Naufrágios, filhos, acaso, da sua imaginação andaluza e do desejo de aumentar com circunstâncias novelescas a sua expedição, que de qualquer modo foi uma das mais curiosas, apesar de infrutífera, das empreendidas na América na primeira metade do século XVI”. (CABEZA DE VACA 1906: XIX, da Advertência de M. Serrano y Sanz)
Juan Francisco Maura interroga se a obra Naufrágios é uma crónica ou um guião teatral, e considera-a como uma obra panfletária, que manipula a realidade em benefício próprio do autor. Alvar Nuñez é enaltecido por si próprio pelas suas capacidades de localizar e explorar o potencial económico do território e de evangelizar os nativos. Chega ao ponto de se apresentar como uma espécie de santo nas suas relações com os indígenas, capaz de se transformar no “outro”, um mártir e um milagreiro. Esta retórica foi realizada em troca de fama, poder e riqueza, concretamente numa série de privilégios e títulos que adquiriu posteriormente, como Adelantado, Governador e Capitão-Geral do Rio de la Plata. (MAURA 2008: 16 e 19)
Mas os Naufrágios não foram apenas isso. Foram também um instrumento de propaganda do mito do El Dourado ou das Sete Cidades de Cíbola, que incutiram na mente de muitos espanhóis a ilusão da busca pelo ouro das Américas, como refere Trinidad Barrera López:
“Os Naufrágios foram uma das obras que contribuíram para difundir o mito das sete cidades. A partir da sua propagação, na Nova Espanha generaliza-se a ideia de que a norte da rota seguida pelos expedicionários existiam sete cidades fundadas por sete bispos fugitivos dos árabes. Dois franciscanos tentaram chegar até ali: Frei Juan de Olmedo e Frei Marcos de Niza. A expedição de Frei Marcos, financiada pelo Vice-Rei da Nova Espanha, Dom António de Mendoza (1539), contou com a participação do negro Estebanico, que ali encontro a morte. No seu regresso, Frei Marcos conta ter visto ao longe Cíbola, uma das sete fantásticas cidades.” (CABEZA DE VACA 2015: 48-49, da Introdução de Trinidad Barrera López)

A Ilha da Hispaniola em 1639, Johannes Vickenboons, Library of USA Congress
La Hispaniola
A primeira escala foi em Agosto em Santo Domingo, na Ilha de Hispaniola, epicentro das Antilhas e chave de todas as Índias, descoberta por Colombo em 1492, e tornada capital do Caribe. A ilha era rica em ouro e as duas principais minas, La Buenaventura e La Concepción, fundiam anualmente quantidades apreciáveis do metal precioso. Outra produção rentável era a de sal, bem como a plantação de cana-de-açúcar.
A par destas riquezas, os colonos produziam tabaco, gengibre e café, e criavam gado.
Os índios opuseram forte resistência à ocupação espanhola e foram totalmente dizimados, mais pelas doenças, sobretudo a varíola, do que pelas batalhas travadas com o ocupante. A política colonial, inicialmente de escravidão e conversão dos índios não resultaria, e importou-se massivamente mão-de-obra escrava africana, dando origem a uma população mulata, maioritária na ilha.
Os negros eram mais imunes às doenças dos europeus e facilmente “domesticáveis”, pelo facto de se encontrarem desenraizados do seu meio. O cruzamento das raças resultava sobretudo da violação das escravas negras pelos brancos, e, em muito menor escala, da violação de índias ou do cruzamento entre índios e negros (a prova é que 90% dos mulatos caribenhos têm descendência negra por via materna).
Quando a expedição chegou à ilha, não existiam propriamente cidades, mas amontoados de casas de madeira plantadas em ruas de traçado irregular, funcionando como refúgio para fazer face às intempéries e aos ataques dos índios e dos corsários. A capital, Santo Domingo, não era mais do que um conjunto de construções de madeira agrupadas ao longo de uma rua, a Calle Damas. Tinha na altura umas poucas dezenas de habitantes.
Só a partir de 1526 se produziram regras que estabeleceram como se deviam debuxar as vilas e cidades coloniais, com cordel e régua, começando pela Praça Maior, e definindo o traçado das ruas e quarteirões a partir dela. Os edifícios públicos, administrativos ou religiosos, degradavam-se rapidamente porque os telhados de madeira apodreciam com a humidade, situação que só se resolveu com a chegada de pedreiros que construíram edifícios cobertos com abóbadas. As fortificações desta época eram também precárias — em estilo medieval, constituídas por paliçadas de madeira e torres de baixa altura para resistirem aos muitos furações que assolavam a ilha.

Gravura da Ilha da Tartaruga, autor desconhecido, Édouard Guillon, Histoire des colonies françaises, Paris : Charavay, Mantoux & Martin
O lado Norte da Hispaniola tornou-se pouco a pouco um reduto de contrabando e de pirataria, sobretudo na Ilha de Tortuga ou Tartaruga (assim chamada pela sua configuração), onde se estabeleceram muitos piratas e corsários.
Os piratas tanto atacavam e saqueavam os navios da Carreira das Índias, como comerciavam ilegalmente com os habitantes da ilha, com a conivência das autoridades, estabelecendo uma espécie de paraísos fiscais nas bases que criavam. A situação era bem aceite pelos colonos, pois tinham disponíveis os produtos de que necessitavam a preços mais baratos, por não estarem sujeitos aos pesados impostos.
Foi este ambiente que encontraram os homens de Pánfilo Narvaez, onde permaneceram 45 dias, e onde sofreram as primeiras baixas, já que 140 membros da armada desertaram — ouviam-se rumores sobres os perigos das expedições anteriores, e os locais fizeram-lhes promessas de uma vida tranquila, desejosos de terem mais colonos para fazerem face às ameaças do índios. Para além disso, a riqueza fácil, a pirataria, as mulheres e o muito rum, eram uma alternativa atraente face às perspectivas de uma expedição arriscada.

Mapa de Cuba em 1639, Johannes Vickenboons, Library of USA Congress
CubaNo final de Setembro chegaram a Cuba, fazendo uma primeira paragem em Santiago, a capital, e depois em Trinidad. A estadia em Cuba foi marcada por várias tempestades que os obrigaram a permanecer na ilha durante cinco meses. Numa dessas tempestades perderam 60 homens, 20 cavalos e um navio.
Cuba, a maior ilha das Caraíbas, era escassamente habitada. Santiago tinha uma população de 20 vizinhos (ou habitações), e Trinidad apenas de 12. As reservas de ouro existentes tinham sido rapidamente esgotadas e os colonos, espalhados pela ilha em fazendas, dedicavam-se à criação de gado, colocando nos circuitos comerciais coloniais carne salgada e couros, e, posteriormente, açúcar.
Os ataques dos corsários e dos piratas eram constantes, sobretudo dos franceses e ingleses, que saqueavam as igrejas e raptavam mulheres e escravos.
Tal como na Hispaniola, as doenças e os maus-tratos dizimaram rapidamente os índios, que foram substituídos pela mão-de-obra dos negros africanos, criando a população crioula que hoje é maioritária.
As doenças eram de todo o tipo — anemias, infecções devido a feridas, papeira, sarampo, tuberculose, gripe, varíola e, com a chegada de muitas prostitutas, a sífilis.
A medicina tradicional índia, com base em plantas, nos vómitos e nos laxantes, era ineficaz contra estas novas doenças e os próprios índios evitavam praticá-la junto dos espanhóis para não lhes transmitirem os seus conhecimentos. Os espanhóis não tinham médicos, mas apenas alguns “curadores de feridas” — homens ignorantes, fossem soldados, barbeiros, boticários ou astrólogos, que “embalsamavam” ferimentos. Os escravos negros traziam consigo a tradição dos curandeiros e da magia, e praticavam-na neste cenário epidémico.
Foi neste tempo de escassa ciência, de rezas e de curandeiros, que o nosso Estevanico foi aprendendo as “artes” da medicina, que seriam decisivas para a sua sobrevivência, como adiante se verá.Finalmente, no dia 28 de Fevereiro de 1528, os navios de Pánfilo zarparam rumo a La Florida, mas novas tempestades fizeram-nos deambular pelas águas do Golfo do México durante quase um mês e meio.

A expedição de Pánfilo Narvaez. Da Baía de Sarasota à Ilha do Mau Fado

A chegada de Pánfilo Narvaez a Tampa. Autor desconhecido
Da Baía de Sarasota à Ilha do Mau FadoChegaram à Florida a 12 de Abril, a uma baía (actual Baía de Sarasota), com 400 dos 600 homens que tinham iniciado a viagem em Espanha, onde Pánfilo Narvaez tomou oficialmente posse do território.
“O governador levantou pendões por Vossa Majestade, tomou posse da terra no seu Real nome, apresentou os seus mandamentos e foi investido como governador como Vossa Majestade lhe ordenou.” (CABEZA DE VACA 2015: 90)
Posteriormente, fizeram uma pequena incursão terrestre, chegando a uma outra baía muito grande (actual Baía de Tampa), regressando no dia seguinte ao local onde estavam os navios. Interrogaram os índios sobre a existência de ouro, recebendo a informação de que havia muito, mais para Norte, na região de Apalache.
Pánfilo decidiu então enviar os navios com 100 homens para o seu destino final, Pánuco (actual Támpico, no México), enquanto ele seguiria com os restantes homens por terra.
A expedição terrestre partiu no dia 1 de Maio. Era composta por 40 homens a cavalo e 260 a pé. Dirigiram-se para Apalache (onde hoje se encontra a cidade de Talahasse), em busca do ouro pretendido, encontrando algumas aldeias de palhotas e uns poucos campos de milho, e sofrendo ataques esporádicos de índios hostis.
Apalache não era a cidade que pensavam encontrar, mas uma simples aldeia semelhante às que tinham cruzado anteriormente, de dimensão um pouco maior, com cerca de 40 palhotas. Ocuparam-na e revistaram-na, mas tiveram a desilusão de não encontrar ouro ou qualquer outra riqueza. Na aldeia apenas estavam mulheres e crianças, e a forma hostil como entraram provocou a chegada repentina dos homens, que os atacaram com salvas de flechas. No seguimento dos combates, os índios fugiram, mas um cacique ficou refém dos espanhóis, o que provocou ataques continuados dos índios com flechas incendiárias.
Pánfilo rapidamente percebeu o erro que cometera ao decidir-se por uma expedição terrestre — o clima era extremamente adverso, com altas temperaturas e muita humidade; o terreno de difícil transposição, pantanoso e atravessado por rios caudalosos; os animais eram um perigo constante, desde crocodilos a serpentes, passando por uma infinidade de insectos; os alimentos e a água potável escasseavam; todos estes factores contribuíam para o alastrar de doenças, como febres e disenterias; e acresciam os ataques constantes dos índios, que causavam mortos e ferimentos de difícil cura. A deficiente liderança de Pánfilo originou ameaças de motins, levando o governador a decidir regressar à costa, na esperança de encontrar os navios que tinha mandado partir.

“Perdidas sus Naves” (Panfilo de Narvaez). Litografia original de J.J. Martinez (século XIX)
Por volta do dia 4 de Agosto chegaram ao mar, mas dos navios não havia sinal. Construíram cinco jangadas rudimentares, utilizando as crinas dos cavalos (que iam comendo) como cordas, e a pele das patas para fazerem reservatórios para transportar água doce. Com as roupas que traziam vestidas fabricaram velas.
No dia 22 de Setembro, um total de 242 homens (dos 300 que tinham chegado a Sarasota), embarcaram nas jangadas. Dos 40 cavalos já só restava um. Os restantes tinham sido comidos nesse local, que, por essa razão, ficou conhecido como Baía dos Cavalos (identificada como a Baía de Apalache ou de São Marcos).
Durante o trajecto por mar faziam frequentes idas a terra em busca de água e de alimentos, e a sede era tanta, que chegaram a beber água salgada. Muitos mais homens morreram. Fizeram paragens na zona das actuais cidades de Pensacola e de Mobile, onde os ataques dos índios se sucederam.
No Delta do Mississipi uma grande tempestade empurrou duas das jangadas para o alto mar. Nunca mais foram vistas. Numa delas ia o governador Pánfilo Narvaez, que encontrou a morte.
A 6 de Novembro de 1528, 80 sobreviventes chegaram em duas jangadas à Ilha do Mau Fado, também apelidada Ilha das Desgraças (actual Ilha de Galveston, a Sul da cidade de Houston no Texas).
Os índios Karankawas, que a habitavam, foram inicialmente amigáveis, mas rapidamente tornaram-se agressivos, fazendo-os prisioneiros e escravos, e dispersando-os por várias tribos. Em pouco tempo, a grande maioria dos homens morreu de frio, fome, doenças, afogamentos, ferimentos, e violência dos índios, restando apenas 14 sobreviventes. Alguns deles chegaram a praticar canibalismo, comendo os próprios companheiros mortos, tal foi o desespero.

Le Nouveau-Mexique et la Floride, 1656, de Nicolas Sanson. Bibliothèque nationale de France
No ano de 1533 já só restavam quatro homens (dispersos pelas chamadas Texas Barrier Islands) — Cabeça de Vaca estava isolado na Ilha de Galveston; Dorantes foi encarcerado pelos índios Mariames na Ilha de Matagorda; Estevanico e Castilho foram aprisionados pelos Iguaces na Ilha de Mustang (na zona da actual cidade de Corpus Christi).
Durante o cativeiro, Estevanico ganhou grande notoriedade e desenvolveu uma relação particular com os índios. Desde logo uma aculturação, que o “indianizou” em termos de adornos e pinturas que usava (os sobreviventes já andavam nus desde a sua chegada às ilhas); aprendeu a sua língua; tornou-se “comerciante”, fazendo com eles trocas de conchas, pedras e peles de animais; e assumiu um papel de sedutor incorrigível, fazendo-se acompanhar permanentemente por várias índias, procurando sempre que possível ganhar os seus favores sexuais.
A esta aculturação de Estevanico (e em certa medida dos restantes sobreviventes), juntou-se um outro papel que desempenharam e que seria determinante no seu relacionamento com os indígenas durantes o resto da expedição — o de curandeiros ou xamãs.

“The Maker of Peace”. Escultura de um índio xamã de Bill Worrell, Seminole Canyon State Park, Texas
Curandeiros ou xamãsDurante uma epidemia de disenteria os sobreviventes foram obrigados a ser curandeiros, sendo-lhes retirados os alimentos como forma de os pressionarem a tal. Segundo Cabeça de Vaca, Castillo foi o primeiro que praticou e foi bem-sucedido. Seguiram-se Dorantes, Cabeza de Vaca e Estebanico. A notícia espalhou-se e acorriam índios das aldeias vizinhas para serem curados. As curas que faziam eram uma mescla de rezas cristãs com rituais índios e tratamentos à base de sangrias, muitos deles seguindo os próprios métodos de cura dos indígenas:
“O que o médico faz é fazer uns golpes onde têm a dor e chupa ao seu redor. Dão cautérios de fogo, que é uma coisa entre eles tida como muito proveitosa, e eu experimentei e funcionou. O modo como nós curamos é com benzeduras e soprar na carne e rezar Padres Nossos e Avé Marias, e rogar a Deus Nosso Senhor que lhes desse saúde, exalar sobre eles que nos fizessem um bom tratamento.” (CABEZA DE VACA 2015: 131)
Cabeça de Vaca começa a situar-se como xamã, devido a lhe atribuírem dotes de médico/físico, e por físico entenda-se “médicos/xamãs”. O termo xamã utiliza-se para designar indivíduos com dotes mágico-religiosos, a quem se atribui a capacidade de sanar e fazer milagres e dentro das comunidades representa um alto nível de hierarquia, pelo qual contam com benefícios e poder. (SÁNCHEZ FONSECA 2024: 71)
Este protagonismo de Cabeça de Vaca é contestado por Robert Goodwin, que remete para os anos 1533 e 1534 o início das curas, realizadas primeiramente por Castillo, filho de um médico, e posteriormente por Estevanico. Segundo ele, Cabeça de Vaca e Dorantes ignoraram o sucesso dos seus dois companheiros, que aprenderam técnicas de cura com os índios Iguaces, que aliaram aos conhecimentos médicos de Castillo e à cultura Afro-Mourisca de Estêvão. (GOODWIN 2023: 421-423)
Segundo Aurélia Martín Casares, os Afro-Ibéricos eram portadores de uma amálgama cultural que se manifestava na “adopção de elementos de diferentes religiões e crenças, que incluíam rezas, cantos, danças, curas, profecias, práticas de comunicação com os mortos, a realização de feitiços e preparação de poções”. Essas práticas eram acompanhadas da utilização de ervas, óleos, álcool, animais e da alquimia e astrologia. (MARTÍN CASARES 2000: 413-415)
Estevanico teria certamente acesso a alguns desses conhecimentos que o ajudaram a praticar as curas que realizou juntamente com Castillo, que levaram os índios a chamar-lhes “filhos do sol”. Estevanico teria também tirado partido da sua pigmentação face aos companheiros, que o individualizou e realçou a sua figura, já de si singular por ser um indivíduo corpulento e de grande estatura. Um chefe índio afirmou que o primeiro homem branco que viu era preto.

A expedição de Pánfilo Narvaez. Da Ilha do Mau Fado à Cidade do México
Da Ilha do Mau Fado à Cidade do MéxicoEm Setembro de 1534, aproveitando a distração dos índios, Estevanico, Castillo, Dorantes, e Cabeça de Vaca conseguem fugir e entram numa outra realidade cultural, a dos índios das “tepees” ou tendas de peles, habitantes das pradarias do Texas.
Ao entrarem nas pradarias, o papel de liderança de Estevanico tornou-se mais evidente, caminhando à frente do grupo e estabelecendo o contacto com os índios com os seus conhecimentos de seis dos seus dialectos, fazendo-se acompanhar por grupos de nativos, sobretudo de mulheres.
A fama de curandeiros passava de tribo para tribo, e eram recebidos com oferendas quando chegavam às aldeias. Das oferendas faziam parte chocalhos e cabaças, símbolos de poder.

O figo da Índia
A alimentação dos quatro sobreviventes, quando não recebiam oferendas dos índios, era muitas vezes à base de figo da índia, opuntia ficus-indica, um cacto originário desta região, cujos frutos eram muito apreciados e ricos em fibras e minerais. Quando a planta não tinha frutos, comiam as folhas ou raquetes, geralmente grelhadas. O fruto é chamado figo da índia, figo do diabo, figo palmeira ou tuna. Esta última designação é que Cabeça de Vaca utiliza na sua crónica. É interessante que em Marrocos, o fruto é chamado kermouss nsara ou figo cristão, em oposição ao figo comum que é chamado kermouss muslimin ou figo muçulmano. Na Europa é também conhecido pelo nome figo da barbária.
Ao chegarem perto da Sierra Madre, a Oeste do Rio Grande, inflectiram para Sul, mas, de certa forma inexplicavelmente, voltaram para Norte. A explicação mais plausível está no facto de terem ganho medo aos povos da costa, depois da má experiência com os Karakawa, mas também por pressão de Estevanico, que sabia que o regresso à sociedade espanhola lhe traria de novo a condição de escravo.
A Norte da Sierra de Glória deu-se um acontecimento que fez aumentar a reputação dos sobreviventes aos olhos dos índios. Um homem veio pedir ajuda para curarem um guerreiro que tinha uma ponta de flecha dentro do corpo, acima do coração. Cabeça de Vaca fez a operação com recurso a uma faca. Abriu-lhe o peito, tirou a ponta de flecha e coseu a ferida, que sarou como que miraculosamente.

Cabeça de Vaca atravessando o deserto americano numa gravura antiga
Continuaram para Norte, deixando as pradarias férteis, e entrando numa zona desértica e desabitada. Na zona da Sierra del Carmen decidiram virar para Oeste, enviando à frente duas índias para contactarem as tribos que habitavam a região e que eram potencialmente hostis, mas a discórdia instalou-se no grupo e dividiram-se. Esteban e Castillo seguiram com as mulheres para Noroeste em busca dos caçadores de bisontes, enquanto Cabeça de Vaca e Dorantes seguiram para Oeste.
Esteban e Castillo chegaram então à aldeia de uma dessas índias, cujo pai era o chefe, um local paradisíaco com casas, habitado por índios que praticavam a agricultura e que são descritos como sofisticados e com bastantes conhecimentos. O local é identificado por Robert Goodwin como sendo o Santa Elena Canyon. (GOODWIN 2014: 476)
Castillo foi em busca de Dorantes e Cabeça de Vaca, que se juntaram a ele, prosseguindo de novo juntos, mas Estevanico tinha ficado com índios, desfrutando da sensação de liberdade daquele paraíso na terra e praticando a sua medicina. Alguns dias depois juntou-se aos companheiros, que encontrou esfomeados. Foi recebido como um herói, dando-lhes água e comida, e consolidando o seu papel de líder.

O peiote
Robert Goodwin faz referência ao peiote ou mescal, como alucinogénio, redutor da fome e com propriedades curativas, que certamente os nossos amigos curandeiros utilizaram, sobretudo nesta zona que é o considerada o país do peiote, a terra dos índios Jumanos.
O peiote, Lophophora williamsii, é conhecido por suas propriedades psicoativas quando ingerido, tendo uma longa história de uso ritualístico e medicinal por povos indígenas norte-americanos. Contém o alucinógeno mescalina, que leva a um estado de introspecção profundo, de uma natureza espiritual, utilizado num contexto cerimonial conduzida por um “peiotero”, homem similar a um xamã. Para além do uso psicoativo, algumas tribos nativas americanas usam a planta pelas suas propriedades curativas, para tratar doenças como dores de dentes, dores no parto, febre, problemas de pele, reumatismo, resfriados e cegueira.
Chegados à região das actuais cidades de El Paso e Ciudad Juárez dirigiram-se para Oeste, acompanhados pelo seu pequeno exército de índios e o seu séquito de belas mulheres.
Desceram o Vale do Rio Sonora, habitado por uma população com hábitos sedentários, com as suas aldeias com casas permanentes e os campos irrigados. A cidade de Arizpe, com as suas 600 casas, pareceu-lhes uma grande metrópole.
Chegaram à cidade de Ures, à qual chamaram Cidade dos Corações, porque os seus habitantes ofereceram-lhes 600 corações de veados secos.
À medida que se dirigiam para Sul ouviram relatos de índios assustados, com medo de viver nas suas aldeias e plantar as suas terras. Contaram que estrangeiros invadiram as suas terras, destruíram e queimaram as suas aldeias. Traziam “paus de fogo” e montavam “enormes veados”. Levaram com eles homens, mulheres e crianças amarrados uns aos outros como coelhos.
Esteban e Cabeça de Vaca seguiram o rasto dos esclavagistas e encontraram-nos. Eram comandados por um tal Diego de Alcaraz. Para Estevanico, foi um regresso ao passado, o reencontro com a escravatura e com os europeus. Os espanhóis admiraram-se de os verem vestidos como estavam e acompanhados de índios. Juntaram-se-lhes Dorantes e Castillo, que traziam com eles os 600 índios que tinham fugido dos espanhóis para as montanhas.
Seguiram para San Miguel de Culiacán, escoltados pelos espanhóis, onde se encontraram com o alcaide Melchior Diaz, que disse aos índios que se se convertessem ao cristianismo seriam libertados, mas não cumpriu a sua promessa.
Passaram por Compostela e finalmente chegaram à Cidade do México.
Cabeça de Vaca termina a narração dos Naufrágios com a referência aos sobreviventes da expedição:
“E depois de ter dado relação dos navios, será bem que diga quem e de que lugar destes reinos são os que Nosso Senhor foi servido de escapar destes trabalhos. O primeiro é Alonso del Castillo Maldonado, natural de Salamanca, filho do doutor Castillo e de dona Aldonça Maldonado. O segundo é Andrés Dorantes, filho de Pablo Dorantes, natural de Béjar e morador em Gibraleón. O terceiro é Álvar Núñez Cabeça de Vaca, filho de Francisco de Vera e neto de Pedro de Vera que ganhou a Canaria, e a sua mãe chamava-se dona Teresa Cabeça de Vaca, natural de Jerez de la Frontera. O quarto chama-se Estevanico; é negro alárabe, natural de Azamor.” (CABEZA DE VACA 2015: 212-213)

Mapa da cidade do México à data da conquista pelos espanhóis. Autor desconhecido
Cidade do MéxicoNo dia 24 de Julho de 1536 foram recebidos na Cidade do México com fanfarra pelo Vice-Rei da Nova Espanha, António de Mendoza.
Mendoza tentou convencer os sobreviventes a empreenderem uma nova expedição de descoberta e conquista por terra, mas estes declinam a oferta.
Cabeça de Vaca regressou a Espanha onde seria empossado Adelantado do Rio de la Plata e Paraguai, regressando para restabelecer o assentamento de Buenos Aires em 1540. Foi mandado regressar a Espanha em 1545 e preso por má administração.
Alonso del Castillo regressou a Espanha por um breve período, voltando às Américas como Tesoureiro da Guatemala.
Andrés Dorantes vendeu o seu escravo Estevanico ao Vice-Rei António de Mendoza e regressou a Espanha, de onde nunca mais voltou.
Quanto ao nosso Estevanico, tornara-se uma figura conhecida nas ruas da Cidade do México e esse facto não passou despercebido ao Vice-Rei, que, aliado ao seu papel na expedição de Pánfilo Narvaez, influenciou a sua compra a Dorantes e posterior nomeação como interprete da expedição de Frei Marcos de Niza à fronteira Norte de Nueva España para encontrar as Sete Cidades de Cíbola.

Mapa de Tenochtitlan de Ferdinadi Cortesi , 1524. Na praça central da cidade ainda são representados os templos e edifícios Azetecas
A Cidade do México tinha sido conquistada em 1519 por Hernán Cortez. Situava-se numa ilha no meio do Lago Texcoco e chamava-se na altura Tenochtitlan. Os espanhóis arrasaram os seus edifícios, mantendo a estrutura viária e procederam à sua reconstrução, durante a qual a administração foi instalada numa pequena cidade situada nas margens do lago, chamada Coyoacán, ou o lugar dos coiotes. Coyoacán é hoje um dos bairros centrais da Cidade do México, onde se concentra muita da vida nocturna e equipamentos culturais.
O conquistador Bernal Díaz del Castillo escreveu sobre a cidade que encontrou:
“Ficamos estupefactos e dissemos que Tenochtitlan era como as cidades encantadas que nos contavam nas lendas de Amadis, pelas suas grandes torres e edifícios que nascem na água e todos construídos em alvenaria. Todas essas maravilhas que eu testemunhei, hoje [1568] foram derrubadas e perdidas, nada ficou em pé.” (DIAZ DEL CASTILLO 1996: 190-191)
Mapa da Cidade do México em 1535, da obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg de 1572. Na praça central da cidade já estão representados os edifícios coloniais Espanhóis
A presença de Estevanico na Cidade do México coincidiu com o período em que a cidade colonial já estava praticamente reconstruída, como testemunha a planta de 1535 incluída na obra Civitates Orbis Terrarum de Braun e Hogenberg publicada em 1572.
“Esteban terá visto o palácio do Vice-Rei, que substituiu o Grande Templo e foi construído com as mesmas pedras e dimensões semelhantes. Para além de ser a residência de Mendoza, também albergava um conjunto de atarefados artesãos, um posto de correio com escribas para ajudar os iletrados a escrever as suas cartas e documentos, e um Tribunal. Esteban também terá visto a Catedral Católica construída com pedra dos edifícios cerimoniais Aztecas.” (HERRICK 2018: 147)
Estêvão adquire então, temporariamente, uma certa liberdade de movimentos, tornando-se numa figura carismática das ruas da cidade do México, um “habitué” dos ambientes boémios e de prazer. Era um bom-vivant, com a sua figura singular de negro indianizado que seduzia as mulheres com o seu aspecto exótico.
Mas a situação política do momento era complexa e difícil para os escravos, os índios e os negros. O governo espanhol criou uma série de leis de reprimiam o cruzamento entre negros e índios e que facilitava o seu julgamento, prisão e execução. O problema residia no facto de que estes cruzamentos raciais tinham um efeito negativo na propagação da fé cristã, porque resultavam na criação de famílias com religiões politeístas e adversas à evangelização.
O Verão de 1537 foi particularmente violento, com motins e repressão. Estevanico, que voltara a ser um simples escravo, viu na expedição que o seu amo queria organizar a Cíbola uma oportunidade para voltar a disfrutar da liberdade que tivera durante a aventura entra a Florida e o México.
Mapa de Zuane Pizzigano de 1424 com a localização da Antilha em cor vermelha

Mapa de Bartolomeo Pareto de 1455, com a representação da Antilha, do lado esquerdo da imagem, em cor azul
O Eldourado ou as Sete Cidades de CíbolaA busca pelo famoso Eldourado, as Sete Cidades do Ouro ou Sete Cidades de Cíbola, marcou invariavelmente as expedições integradas na conquista espanhola do Novo Mundo.
O mito das Sete Cidades de Cíbola foi criado por volta do ano 1150, segundo o qual, em 714, sete bispos visigodos embarcaram com as suas relíquias sagradas e as suas congregações para o Oceano Atlântico, desembarcando numa ilha onde fundaram sete cidades. Em muitos escritos, sobretudo cartas náuticas, a lenda refere que o Arcebispo do Porto terá fugido para o Novo Mundo, fundando sete cidades, Aira, Anhuib, Ansalli, Ansesseli, Ansodi, Ansolli e Com, que acumularam grandes riquezas.
Inicialmente a sua localização era conectada com uma ilha situada no Atlântico Norte, a Antilha (Ante-Ilha ou Anti-Ilha), que se encontra representada em vários portulanos do século XV (cartas náuticas com localização dos principais portos europeus e africanos), com uma forma rectangular e na qual se localizam as ditas Sete Cidades. Tem uma dimensão aproximada à de Portugal e localiza-se cerca de 200 milhas a Oeste dos Açores. Nesses portulanos existem referências escritas que descrevem a ilha.

O Globo de Martin Benhaim de 1492, Hemisfério Ocidental
No Globo de Martin Behaim de 1492 está escrito:“No ano de 734 d.C., quando toda a Espanha foi ocupada pelos infiéis de África, esta Ilha de Antilia, também chamada a Ilha das Sete Cidades, foi povoada pelo Arcebispo do Porto e por outros seis bispos, e alguns companheiros, homens e mulheres, que foram de Espanha com o seu gado e pertences. No ano de 1414, um barco Espanhol aproximou-se desta ilha.”

A Antilha num detalhe do Mapa de Albino de Canepa de 1489, com a indicação das suas sete cidades
O navegador espanhol Pedro de Medina escreveu que a ilha tem as dimensões de 87 léguas de comprimento e 28 léguas de largura, com muitos portos e rios, está situada à mesma latitude que Gibraltar e que marinheiros a observaram à distância, mas quando se aproximaram ela desapareceu. (BEAZLY 1897: 234)
O navegador português António Galvão referiu que em 1447 um navio português aportou na ilha e encontraram os seus habitantes, que falavam português, que lhes disseram que se tinham ali instalado no tempo do Rei Rodrigo e perguntaram se os Mouros ainda dominavam a Espanha. (GALVÃO 1862: 72)
Manuel de Faria e Sousa, numa viagem que fez para as Canárias, encontrou uma ilha no meio do oceano, povoada por portugueses, que tinha sete cidades, que se avista desde a Ilha da Madeira, mas que quando alguém se aproxima dela, desaparece. (SOUSA 2015: 136)

As Sete Cidades de Cíbola no Atlas de Joan Martines, 1556-1590
Após a descoberta das Caraíbas, os espanhóis deram a essas ilhas o nome de ilhas Antilhas e verificaram que nenhuma delas correspondia às descrições contidas nos mapas e que as sete cidades não se localizavam aí.
Surgiu então a lenda de que as Sete Cidades de Cíbola se situavam a Norte da Nova Espanha, no actual território Sudoeste dos Estados Unidos.
No Atlas de Joan Martines, no mapa Oceano Pacífico Norte, incluindo as costas do México, Califórnia, Asia, e Japão, encontram-se representadas as Sete Cidades de Cíbola.

Esteban o Mouro, gravura de José Cisneros, 1987
A expedição de Estevanico a CíbolaA nomeação de Francisco Vázquez de Coronado como governador dos territórios da Nova Galiza, no Norte do México, foi determinante para a decisão de realizar uma expedição terrestre em busca das Sete Cidades. Para tal nomeou Frei Marcos de Niza como seu comandante e Estêvão Dorantes como seu intérprete e guia.
Frei Marcos era um religioso franciscano nascido em Nice. Antes de chegar ao México, tinha participado na conquista e evangelização do Peru e do Equador.
“Misssionário, pregador, defensor dos índios, historiador, explorador e abençoado, de acordo com alguns, impostor, mentiroso, pobre de espírito ou cego por miragens de ouro, segundo outros, era assim que Frei Marcos era qualificado.” (NALLINO 2012: 16)
Coronado acompanhou Frei Marcos e Estevanico até San Miguel de Culiacán, nos arredores da qual se encontravam os índios que Estêvão trouxera do Norte e que os deviam acompanhar. Eram na sua maioria das tribos Pima, Iaquis, Opatas e Mayos.
Para garantir a confiança dos índios, o Vice-Rei António Mendoza tinha dado instruções precisas:
Em Culiacán, última cidade controlada pelos espanhóis, deveriam exortar os colonos a não maltratar nem escravizar os índios. Levar Estevanico e garantir a sua obediência. Viajar em harmonia com os índios. Observar o território, em termos de geografia, clima e fauna. Deixar nos promontórios marcos visíveis desde o mar. Manter os resultados da expedição no maior dos segredos. (NALLINO 2012: 77)

Hernando de Alarcón descreveu a partida de Estebanico da cidade de San Miguel de Culiacán a 7 de Março de 1539, com uma comitiva de índios e de frades, incluído Frei Marcos e Honorato, usando pequenos sinos e penas nas pernas e braços, e entre dois galgos espanhóis, cães descendentes dos egípcios salukis, que se crê serem portadores da baraka (bênção).
Pedro de Castañeda, que acompanhou o governador de Nova Galiza, Vázquez de Coronado numa expedição subsequente, referiu:
“Parece que, depois de que os frades que mencionei e o negro partiram, o negro não se deu bem com os frades, porque eles tiraram-lhe as mulheres que lhe tinham sido dadas e as turquesas. Para além disso, os Índios desses lugares por onde foram passando davam-se melhor com o negro, porque já o conheciam. Esta foi a razão pela qual ele foi mandado adiante para abrir caminho e pacificar os Índios, para que quando os outros chegassem não tivessem nada que fazer excepto anotar as coisas que iam vendo.” (CASTAÑEDA 1907: 288)
Esta situação descrita por Castañeda pode também ter outro significado, que era o de que o negro fez questão de ir à frente porque queria ter liberdade de movimentos e apenas transmitir aos frades as informações que pretendia, através de emissários índios da sua confiança, como aconteceu, podendo manipular o seu conteúdo.
Castañeda acrescenta que “desde que Esteban deixou os frades, pensou que podia guardar toda a reputação e honras para si, e que devia descobrir sozinho essas aldeias com casas altas tão famosas, e seria considerado como audacioso e corajoso. Assim, avançou com a gente que o tinha seguido, e tentou atravessar o território selvagem que existe entre o país que passara e Cíbola. Ele estava tão longe dos frades, quando estes chegaram a Chichilticalli, que está no limite do território despovoado, ele já estava em Cíbola, que se encontra 80 léguas mais longe. Existem 220 léguas entre Culiacán e o limite do território despovoado, e 80 através desse deserto, o que soma 300 léguas, podemos dizer que com uma margem de erro de 10 léguas. Esteban chegou a Cíbola com uma grande quantidade de turquesas que lhe tinham sido dadas, e acompanhado de várias belas mulheres que os índios que transportavam as suas bagagens lhe tinham dado.” (CASTAÑEDA 1907: 289)
Ross Holland comenta desta forma a aparência e atitudes de Estevanico:
“Esteban era um extravagante, indivíduo confiante com um ar afectado pela sua superioridade e usando penas e chocalhos nos pulsos e tornozelos e uma coroa de plumas na cabeça. Quando a expedição partiu para Norte o negro aceitou oferendas de coral e turquesas e bonitas donzelas dos índios. Marcos ficou chocado com este comportamento, e o seu desgosto aumentou quando o séquito de mulheres de Esteban se tornou maior. A conduta de Esteban ultrapassou o que o padre podia suportar, e ele ordenou ao Negro, apenas com 60 léguas de trajecto juntos, que explorasse o território à sua frente e o informasse do que ia encontrando.” (HOLLAND: 7-8)

Itinerário da expedição de Frei Marcos de Niza
A narração contida na Relación de Frei Marcos começa assim:“Com a ajuda e favor da Santíssima Virgem Maria, Nossa Senhora e do devoto pai São Francisco, eu frei Marcos de Niza, frade professor da ordem de São Francisco, em cumprimento das instruções acima contidas, do Ilustríssimo senhor Dom António de Mendoza, Vice-Rei e Governador por Sua Majestade da Nova Espanha, parti da Vila de San Miguel, da província de Culiacán, sexta-feira dia 7 do mês de Março de 1539, levando por companheiro o padre frei Onorato e levando comigo Esteban Dorantes, negro, e alguns índios, dos que o dito senhor Vice-Rei comprou para este efeito, os quais me entregou Francisco Vázquez de Coronado, Governador da Nova Galiza, e com outra quantidade de índios de Petatean, e da aldeia chamada Cuchillo, que está a cinquenta léguas da dita vila. Os quais viera do vale de Culuacán, significando grande alegria, por terem sido certificados índios libertados, que o dito Governador fez saber anteriormente da sua liberdade e que seriam feitos escravos nem lhes seria feita guerra nem maus tratos, dizendo-lhes que assim quer e manda Sua Majestade.” (CRADDOCK 2013: 83-84)
Voltamos a referir que parte destes índios, concretamente o grupo que acompanhava Estevanico, eram os mesmos que tinham vindo com ele da expedição de Pánfilo Narvaez, e que se tinham instalado na zona a Norte de Culiacán.
Sobre esta expedição a Cíbola, não há que ter dúvidas de que Estêvão sabia perfeitamente que era um embuste, que não existiam nenhumas cidades do ouro, porque já lá tinha estado. A sua concordância em participar como guia era com o intuito de voltar a ser livre no seio das comunidades índias que o consideravam como um ser superior.
Passaram por Petatlán, onde foram calorosamente recebidos, e onde Frei Honorato adoeceu e não seguiu caminho. Seguiu-se a Cidade dos Corações, actual Ures, e depois Vacapa.
A chegada a Vacapa a 21 de Abril de 1539 é um marco na expedição, porque a partir daqui nenhum europeu volta a ver Estevanico. Em Vacapa, Frei Marcos enviou alguns índios até ao mar, que ficava a 40 léguas, para obter informações, e enviou Estevanico para Norte.
As ordens que deu a Estevanico eram claras. Devia caminhar cerca de 50-60 léguas, “para ver se por aquele caminho poderia haver uma relação com alguma coisa das que procuravam e se encontrasse alguma terra rica e povoada que fosse coisa grande, que não continuasse, mas que voltasse pessoalmente ou lhe enviasse índios com esta indicação: se a coisa fosse razoável lhe enviasse uma cruz branca de um palmo; se a coisa fosse grande, a enviasse com dois palmos; e se fosse coisa maior e melhor qua a Nova Espanha, lhe enviasse uma grande cruz”. (CRADDOCK 2013: 85)
Estevanico partiu no Domingo da Paixão, que seria o dia 23 de Março. Quatro dias depois, chegaram os índios com uma grande cruz, do tamanho de um homem, e uma mensagem de Esteban que lhe pedia que se juntasse a ele porque tinha encontrado uns índios que lhe tinham dado relação da existência da “melhor coisa do mundo”. Com estes índios vinha um outro que dizia ter lá estado. Disse que a 30 jornadas do local onde estava Esteban ficava a primeira cidade chamada Cíbola. Acrescentou que nessa região há sete grandes cidades, governadas por um Senhor, com casas de pedra e cal. As mais pequenas são casas térreas, outras têm dois andares e a do chefe tem quatro andares. E as portas das casas são decoradas com pedras turquesas, que ali existem em grande abundância. E os habitantes dessas cidades vestem-se muito bem. (CRADDOCK 2013: 85-86)
Frei marcos conta que saiu de Vacapa a 7 de Abril de 1539 com alguns índios, seguindo o caminho percorrido antes por Estevanico, no seguimento de ter recebido outra mensagem acompanhada de uma cruz do mesmo tamanho da primeira, que confirmava o teor da mensagem anterior.
Chegou a outra aldeia onde encontrou outra cruz idêntica às anteriores e uma mensagem de Estevanico que dizia que o esperava no final do primeiro deserto.

Ilustração da expedição de Coronado, realizada um ano após a de Frei Marcos, por Frederic Remington
Antes de chegar ao deserto, frei Marcos encontrou uma aldeia num lugar fresco e irrigado, cujos habitantes se vestiam de algodão e usavam adreços de pedras turquesas. Deram-lhe muitos alimentos, sobretudo carne e milho.
A travessia do deserto durou quatro dias, após os quais frei Marcos entrou no fértil Vale de Sonora. Aí conheceu um homem que lhe disse ser natural de Cíbola e que adiantou que a sua cidade era muito grande, com muitos habitantes e edifícios que atingiam os 10 andares! As casas eram decoradas com turquesas.
No Vale de Sonora recebeu novas mensagens de Estevanico, que diziam que estava a atravessar o último deserto e confirmando as informações anteriormente dadas sobre Cíbola. Estevanico transmitiu a informação de que o povo que habitava a região se chamava Shiwi, cuja semelhança com Cíbola confirmava a veracidade dos relatos.
A cerca de três jornadas de Cíbola, chegou o filho de um chefe que tinha acompanhado Estevanico. Vinha muito triste e contou que Estevanico, um dia antes de chegar a Cíbola enviou um emissário à cidade com a sua cabaça e duas penas, uma branca e outra de cor, para a entregar ao chefe local. O chefe ficou enfurecido, atirou a cabaça ao chão e mandou-os embora, e disse que sabia de que gente se tratava e que se tentassem entrar na cidade seriam todos mortos.
Contaram o sucedido a Estêvão, que não deu grande importância e disse que iria à cidade e certamente seria bem recebido. Quando lá chegou, com os seus companheiros, não os deixaram entrar e roubaram-lhes tudo o que tinham (turquesas e oferendas), sendo obrigados a dormir numa casa no exterior da cidade, sem nada para comer ou beber. No dia seguinte, o índio que narrou a história, disse que viu Estevanico e os seus companheiros a fugir e muitos a serem mortos, pelo que fugiu e regressou.
Frei Marcos conta que seguiu viagem e a uma jornada de Cíbola vieram ter com ele dois índios cobertos de sangue e a chorar, dizendo que os 300 homens e as numerosas mulheres que acompanhavam Estevanico tinham sido todos mortos. Repetiram a história que tinha sido contado pelo outro índio e acrescentaram que não viram mais Estêvão, mas pensam que foi morto.
Um dos índios que acompanhava Frei Marcos disse-lhe o seguinte:
“Padre, eles decidiram matar-te, porque dizem que por tua causa Esteban e os seus parentes foram mortos, e que não vai ficar de entre eles nenhum homem ou mulher que não morra.” (FREI MARCOS DE NIZA 1539: fl, 8v)

A visão de Cíbola por Coronado em 1540, de William Hartmann
Frei Marcos terá decidido partir, mas só depois de ver Cíbola. Foram com ele dois chefes índios e é esta a descrição do que (supostamente) viu:
“Continuei o meu caminho até avistar Cíbola, que está situada sobre uma colina, no flanco duma colina redonda. A cidade tem muito bom aspecto, o melhor que vi nestes territórios; as casas são como os índios me descreveram, todas de pedra, com os seus sótãos e os seus terraços, como me pareceu desde a colina em que me coloquei. Vendo-a. a cidade é maior que a cidade do México; várias vezes, fui tentado a aí chegar, porque apenas punha em risco a minha vida, e tinha-a oferecido a Deus, no dia em que iniciei a viagem; finalmente, tive medo, considerando o perigo, que se eu morresse, não poderia fazer a relação desta terra, que na minha opinião é a melhor e a maior de todas as descobertas.” (FREI MARCOS DE NIZA 1539: fl, 8v)
Frei Marcos regressou à Cidade do México e a sua narração encorajou a expedição que Coronado liderou no ano seguinte e na qual o padre participou, mas não se saiu bem, já que as descrições que fez de Cíbola não corresponderam ao que encontraram. Foi considerado um vigarista e caiu em desgraça, acabando os seus dias num mosteiro na Cidade do México.
Os exageros da sua narrativa estão bem patentes numa publicação de Giovanni Battista Ramusio que diz o seguinte:
“Cíbola excede 20.000 habitações. A população é quase branca. Usam roupas e dormem em camas. Possuem muitas esmeraldas e outras jóias, mas não as valorizam, apenas as turquesas. Com estas decoram as paredes e as portas das suas casas, as roupas, e os copos onde bebem. São utilizadas como moeda em todo o seu país. Vestem-se de algodão e peles de bisonte. O algodão é mais valorizado e apreciado como roupa. Usam copos feitos de ouro e prata, porque não têm outros metais. Utilizam mais o ouro e a prata do que no Peru.” (RAMUSIO 1554: 228-229)
Vários autores colocam em causa não só a veracidade da descrição de Cíbola por Frei Marcos, como inclusivamente a veracidade do percurso que diz ter percorrido, já que parece pouco provável que tenha podido realizar essa viagem no tempo descrito, ou seja, as distâncias e os tempos não parecem fazer sentido, pela rapidez com que refere ter realizado. Alguns autores dizem mesmo que Frei Marcos nunca terá saído de Vacapa, tendo inventado a história que narra.
“Cortés foi o primeiro a chamar mentiroso a Frei Marcos, inclusivamente antes de se demonstrar a falsidade do seu testemunho. Cortés afirma que Niza nunca esteve próximo das Sete Cidades e que o que soube sobre elas foi obtido pelo próprio Cortés.” (MAURA 2022: 417-418)
Michel Nallino pensa que Frei Marcos recebeu ordens de António Mendoza para omitir vários acontecimentos, para não deixar pistas para os conquistadores seus rivais, concretamente Cortés, Alvarado ou de Soto. (NALLINO 2012: 211)

Reconstituição de Hawikuh por Dennis R. Holloway architects
Sobre HawikuhA primeira cidade de Cíbola que Frei Marcos encontrou, e que descreveu é a aldeia dos índios Pueblo da tribo Zuni chamada Hawikuh, no Novo México, a cerca de 200 quilómetros a Oeste de Albuquerque.
Era uma aldeia com cerca de 700 habitantes, situada no cimo de uma colina, com casas feitas em adobe com um a três pisos, disposta de forma a criar vários espaços abertos entre elas.
Quanto a Hawikuh, foi conquistada em 1540 por Francisco Vásquez de Coronado, onde nunca encontrou o procurado ouro. No entanto, e para quem pensa que os índios Zuni eram um povo selvagem, é interessante esta descrição da aldeia feita por Coronado:
“Pelo que me é dado a ver, os índios veneram a água, porque ela faz crescer o milho e sustem as suas vidas. Apesar de as suas casas não serem decoradas com turquesas, nem feitas de cal e bons tijolos, são, no entanto, muito boas casas, com três, quatro e cinco andares, onde existem muito bons apartamentos…e algumas têm muito bons quartos subterrâneos, pavimentados, usados no Inverno, e têm casas de banho com água quente”. (HOLLAND 1969: 50)

A “mesa” Dowa Yalanne numa foto de DarinAZ
Após a conquista de Coronado, os índios Zuni fugiram para a “mesa” Dowa Yalanne, a Montanha do Milho, onde construíram uma aldeia com 48 casas.
Em 1629 os espanhóis estabeleceram uma missão em Hawikuh, chamada Mission de la Purissima Concepción de Hawikuh, com uma igreja e três padres residentes. A missão foi arrasada pelos Apaches no ano de 1672 e a aldeia abandonada.
Em 1680, durante a chamada Guerra de Tiguex, os Pueblos foram os primeiros índios a conseguir travar o avanço dos espanhóis em direcção a Norte.

Estevanico. Autor desconhecido
Morte ou libertação?Quanto ao nosso Estevanico, as opiniões dividem-se sobre se terá de facto sido morto ou se a sua morte foi apenas uma encenação para ganhar a liberdade que tanto desejava.
As crónicas referem a versão descrita na Relación de Frei Marcos, de que Estavanico foi morto pelos índios Zunis. Vários autores defendem esta teoria.
A generalidade dos autores interpreta a morte de Estevanico pela forma como este se apresenta em Cíbola, de forma imprudente e algo arrogante, subestimando a cultura dos Zuni, já que Estêvão não deixa de encarnar a figura do curandeiro, deslocando-se de aldeia em aldeia exercendo a sua medicina em troca de comida e de prazeres de alcova. Ao chegar à aldeia de Hawikuh, o chefe local nega-lhe a entrada porque Estêvão comete a “gafe” de lhe oferecer uma cabaça ornamentada com penas de mocho, que para os zunis é presságio de morte. Para além disso terá exigido turquesas e mulheres em troca da sua medicina. Durante três dias permanece fora da aldeia, sem água nem comida, enquanto o conselho de anciãos discute o seu futuro. Finalmente a decisão chega. Estêvão deveria partir imediatamente ou seria morto. O negro precipita-se então, desesperado, para o rio, não resistindo mais à sede e é atingido por várias flechas zuni.
Pedro de Castañeda refere na sua Narrativa da Expedição de Coronado publicada em 1596:
“Como as pessoas deste país (o autor refere-se a Cíbola) eram mais inteligentes dos que seguiam Esteban, meteram-no numa pequena casa que tinham fora da sua aldeia, e os anciãos e os chefes ouviram a sua história e tentaram perceber a razão pela qual ele tinha vindo ao seu país. Durante três dias foi interrogado. A informação que o Negro lhes deu, de que dois homens brancos o seguiam, enviados por um grande senhor, que sabiam as coisas que existem no céu, e como eles vinham instrui-los sobre assuntos divinos, fizeram-lhes acreditar que ele devia ser um espião ou um guia de outras nações que os queriam conquistar, porque parecia inverosímil que as pessoas de onde ele vinha eram brancas, e tinham enviado um negro. Para além destas razões, pensaram que era brutal da sua parte pedirem-lhes turquesas e mulheres, e então decidiram matá-lo. Foi o que fizeram, mas não mataram nenhum dos que o acompanhavam, guardando como prisioneiros alguns homens mais jovens, e deixaram os restantes, cerca de 60 pessoas, voltar livremente para as suas casas.” (CASTAÑEDA 1907: 289-290)
Coronado inclusivamente disse ao Vice-rei António Mendoza que Estevanico foi morto devido às suas crueldades e assédio às mulheres índias.
Hernando de Alarcón escreveu que a razão principal para que Estevanico tivesse sido morto pelos Zunis, foi o facto de lhes ter dito que muitos espanhóis que o acompanhavam estavam próximos de Hawikuh e bem armados, pelo que os chefes decidiram matá-lo para que não lhes pudesse dar informações sobre a sua aldeia. “Por esta razão mataram-no, e cortaram-no em vários pedaços, que foram divididos pelos principais chefes, para se assegurarem de que estava realmente morto”. Depois mataram também o seu cão. (ELSASSER 1979: 25)

Mulher Zuni. Foto de Edward S. Curtis
Mas para outros autores, como Simour, Ilahiane, Goodwin, Herrick ou Maura, o final da história pode ter sido bastante mais feliz: Estêvão foi recebido de braços abertos em Hawikuh e simulou a sua morte para finalmente poder viver em liberdade, no seio dos índios.
Refere Juan Francisco Maura que na viagem a Cíbola, Esteban nunca obedeceu a Frei Marcos e só recebia de Frei Marcos ameaças se não cumprisse o que o seu novo dono lhe mandava. Caminhando frente ao grupo dos frades com os seus amigos índios com uma vantagem de quatro dias, pôde facilmente encenar a sua morte e ser finalmente livre. Todas as supostas referências à sua morte são ilegítimas, já que resultam das declarações dos índios seus amigos a Frei Marcos. A própria visão de Frei Marcos das cidades de Cíbola foi um embuste para que Frei Marcos não seguisse caminho e voltasse para trás, pela descrição do seu tamanho, dos animais ferozes que aí viviam e da hostilidade dos índios. (MAURA 2008: 277-280)
Sobre as mensagens enviadas por Estevanico a Frei Marcos pelos seus índios, Maura não tem dúvidas:
“Esteban enviou nesta ocasião um índio para dizer ‘mentiras’, e voltará a fazê-lo um pouco mais tarde enviando outro índio amigo com a história da sua morte.” (MAURA 2022: 415)
Dennis Herrick enfatiza o facto de nenhum dos índios ter afirmado que viu Estevanico morto. Acrescenta que, quando Coronado conquistou Hawikuh, foram-lhe mostradas roupas de Esteban, mas nenhuma prova que de facto fora morto. Herrick acrescenta que Coronado nunca subiu à Montanha do Milho (Dowa Yalanne), onde os Zuni se refugiaram dos conquistadores espanhóis, e onde possivelmente Estevanico se encontraria. (HERRICK 2018: 185)

Katsina Chákwaina, o grande homem negro. (É interessante verificar que o negro tem os dentes cinzelados ou esculpidos de forma pontiaguda ou em “V” invertido, costume que é comum em diversas regiões africanas, o que, fazendo fé na explicação de que Katsina Chákwaina representa de facto Estevanico, poderá indiciar que a sua origem não era Azamorense, mas sim um escravo trazido da África subsariana para Azamor, ainda muito arreigado às suas tradições tribais)
ImortalidadeUm Katsina pode ser o espírito de um antepassado ou de um animal, que é venerado em cerimónias dos índios Pueblo, caso dos Zuni. Não são considerados deuses, mas correspondem grosso modo aos santos da religião cristã. Os katsina são representados em imagens que são presentes nessas cerimónias religiosas.
“Vários antropólogos e historiadores acreditam que os Hopi, Zuni, e alguns índios Pueblo do Rio Grande imortalizaram Esteban criando um espírito katsina chamado Chákwaina. Era sempre pintado de preto e referido como o katsina negro.” (HERRICK 2018: 5)
Danças cerimoniais utilizavam Chákwaina para comemorar a chegada de Estevanico em 1539, nas quais os índios pintavam a cara de preto e usavam uma pele de carneiro preto para representar o seu cabelo encaracolado.
Outro katsina, menos conhecido, chamado Nepokwa’i, também é identificado com Estêvão, venerado pelos Pueblo de Hano, sob a forma de uma figura cilíndrica pintada de preto a que chamam o “grande homem negro”.
Num documentário da televisão transmitido em 1992 com o título Surviving Columbus: The Story of the Pueblo People, um índio Zuni contou a seguinte lenda, que poderá ter uma relação com a chegada de Estevanico a Hawikuh:
“O povo que vivia nas fontes fumegantes tinha um gigante que os dirigia, que caminhava à sua frente como seu guia. E o povo de Hanihipinnkya tinha os deuses gémeos da guerra como seus chefes. O Pai Sol sabia que o gigante não podia ser morto, por isso quando trouxeram as armas aos deuses gémeos da guerra trespassaram-nos com flechas, mas o gigante não morreu…o Pai Sol disse: ‘O seu coração está no chocalho de cabaça. O chocalho é o seu coração, e se o destruírem matam-no, e o vosso caminho será clarificado’. O jovem deus da guerra deu um passo em frente e atingiu o chocalho. O gigante caiu e toda a sua gente fugiu.” (MORSE e OWEN 2002: 9)
Em Azamor, Estevanico também se tornou imortal, fazendo parte da história da cidade, sendo assumido pelos Azamorenses como um herói, que lhe dedicaram uma estátua erigida junto ao Rio Um er-Rbia (o Rio Morbeia dos portugueses) na saída da antiga porta da Ribeira.










































































































































































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