O que resta do Memorial a D. Sebastião em Douar Souaken, no local onde se convencionou ter ocorrido a Batalha de Alcácer Quibir
“O verdadeiro renegado era um pobre diabo que apenas ocupava empregos subalternos, que era enviado para todas as expedições perigosas e que, muito raramente, saboreava os prazeres sem luxo do repouso numa qualquer Casbah. Morrer num combate, tornar-se num desordeiro, arriscar a tortura para conseguir fugir, eram estas as suas hipóteses de futuro”. (TERRASSE, 1926, p. 191-192)
Esta afirmação de Henri Terrasse espelha a realidade da generalidade dos renegados, que, enquanto indivíduos convertidos ao islão e integrados na sociedade marroquina, não usufruíam regra geral dos direitos dos cidadãos comuns, mantendo-se num estado de semi-captividade. Não é difícil compreender porquê, já que na sua grande maioria mudavam de campo por razões de sobrevivência, com extrema reserva mental, comparáveis aquelas que os cristãos-novos tiveram quando se converteram ao cristianismo, ou seja, quando tinham que escolher entre ser cativos ou homens livres.
Mas a regra geral tinha muitas variantes, como adiante se verá.
O local da Batalha de Alcácer Quibir, junto à confluência dos rios Lucos e Moacazím (Oued Loukos e Oued El Makhazin)
Em primeiro lugar convém definir objectivamente o que era um renegado ou elche, palavra derivada do árabe Ilj ou estrangeiro. Não se tratava de alguém que simplesmente mudava de campo, colaborando com o inimigo, mas de alguém que negava a sua fé, neste caso a fé cristã, e se convertia ao islão.
António Saldanha tem esta frase na Crónica de Almançor, Sultão de Marrocos sobre a designação elche, na qual refere que esse é o nome pelo qual se tratavam entre si:
“El-rei se meteu entre a soldadesca que estava distinta por suas nações: andaluses, turcos, xarquis e arrenegados (que entre si se chamam elches), afrontando-se muito de que os cristãos lhe chamem arrenegados.” (SALDANHA, 1997, p. 63)
Convém também esclarecer a razão pela qual a fronteira entre o cativo e o renegado era muitas vezes de difícil definição, dando razão à afirmação de Henri Terrasse. Se bem que a diferença objectiva era a conversão ou não conversão, de facto, uma conversão forçada ou resultado de uma opção com fortes condicionamentos, ou seja, uma aparente alteração de valores realizada em indivíduos de personalidade formada e crenças enraizadas, não era de modo algum tranquilizadora para as autoridades de Marrocos, que os vigiavam e condicionavam os seus movimentos, já que frequentemente tentavam a fuga.
A identificação dos elches também não era fácil, já que mudavam o seu nome para um nome árabe, vestiam-se como os locais e falavam o árabe. Normalmente eram identificados quando se dirigiam aos cativos, ou aos missionários que realizavam resgates de cativos, nas suas línguas maternas, ou pelo facto de normalmente adoptarem um prenome árabe e um nome de família indicativo da sua origem, como por exemplo Mami Corso (da Córsega) ou Hassan Ginoes (de Génova) ou ainda Abdelmalik Albortoqali (o Português). A partir da segunda geração, o único vestígio de elche estava apenas no seu nome de família, quando adoptava o da sua terra natal.
A Habs Qara ou Prisão Cara em Meknès, principal local de concentração de cativos europeus em Marrocos no século XVII
A esmagadora maioria dos renegados eram assim cativos que, de forma voluntária ou forçada, acabavam por se converter, transformando um futuro sem perspectivas numa vida em sociedade. A decisão de conversão ao islão tinha como causa principal a incapacidade de comprarem a sua liberdade, já que, apenas os nobres eram resgatados pelas suas famílias pagando somas avultadas de dinheiro. Outros, uma minoria, eram fugitivos europeus condenados por crimes nos seus países de origem, que em Marrocos tinham a possibilidade de refazer as suas vidas, ou aventureiros em busca de fama e de enriquecimento fácil.
Para Marc-André Nolet, “os renegados tinham em comum dois elementos chave: eram todos europeus de origem, e cristãos. A sua conversão ao Islão podia, contudo, ser voluntária ou não, mas em todos os casos acabavam por trabalhar para as autoridades marroquinas. O desenraizamento social destes novos convertidos criava aliás uma nova individualidade”. (NOLET, 2008, p. 19)
Os cativos eram convencidos à conversão ao Islão, conversão da qual tiravam inúmeros benefícios, já que deixavam de viver na prisão, passavam a ter um trabalho para o Makhzen, ou Estado marroquino, como militares, se não tivessem outro ofício, mas normalmente segundo as suas antigas profissões, e podiam casar-se. Muitos eram convencidos pela tortura, mas a grande maioria fazia a conversão de livre vontade, que era festejada efusivamente pelo sultão, com desfiles nas ruas das cidades.
“Eram tratados com grande pompa, desfilando na cidade a cavalo de uma forma triunfal, ao som de tambores e trompetas.” (MILTON, 2006, p. 91)
A Casbah de Boulaouane, umas das muitas onde os renegados cumpriam funções militares
Dois factores marcavam decisivamente a forma como os renegados eram reconhecidos como cidadãos de pleno direito. Um deles era a especialização do seu trabalho e consequente utilidade para o Estado marroquino. Outro era a forma voluntária como chegavam a Marrocos e se dispunham a colaborar com o poder do sultão.
Mas a condição de renegados não significava serem livres, já que continuavam prisioneiros da tutela do Sultão. O seu número não era conhecido com exactidão, dado não figurarem nas listagens dos prisioneiros, e os governos europeus abandonavam-nos à sua sorte por terem renunciado à sua fé cristã, apesar de muitos o fazerem para sobreviver.
A grande maioria ingressava no exército, em destacamentos específicos, e eram frequentemente colocados nas franjas do território, em Casbahs longínquas de onde não podiam sair livremente.
O inglês Tomas Pellow, após a sua conversão e casamento, foi colocado numa Casbah em Temsna, com 600 outros renegados, franceses, espanhóis, portugueses e italianos, e posteriormente, num grupo de 3.200 pessoas, homens e mulheres, na Casbah de Tanisna. (PELLOW, 1890, p. 80-81)
As Masmorras de Tetuan. foto Mhammad Benaboud
O português Rui Gomes, homem de 35 anos natural de Serpa e morador em Beja, apresentou-se no ano de 1606 na Casa do Despacho da Santa Inquisição de Lisboa, onde contou que, tendo 14 anos decidiu partir para Tanger. Na travessia do Estreito de Gibraltar foi feito cativo com alguns companheiros e levado para Tetuan e depois para Fez. Em Fez foram espancados para se tornarem mouros, ao que Rui Gomes acabou por aceder.
“Disse que queria ser mouro e o vestirão em trajos de mouro e lhe poserão nome Abdalá e disse as palavras que os mouros em tais actos costumam dizer, que são: ‘ley ley Alah, Maomet la sol la la’, que quer dizer Deus grande e Mafoma he o seu profeta, e logo foi retalhado. E do ditto tempo em diante se tratava como mouro, posto que não fazia o sallá. E por alguas vezes jejuava o jejum do Ramedão e por dissimular e secretamente comia em alguns deles, mas no dia da Paschoa do Ramedão se vestia de brocado, e vestidos de festa. E por confiar dele declarante el-rey Muley Amete o fez alcaide de hua terra que chamam Quiteo e lhe deu outros officios muitos e lhe deu tudo o que podia mas que na verdade elle confitente nunqua em seu coração foi mouro nem lhe pareceu que a ditta secta de Mafamede era boa para a salvação d’alma nem que se podia salvar nella (…) e comunicava em todo o ditto tempo que esteve nas ditas partes de Africa com os christãos que lá avia aos quaes dezia que era christão e os ajudava, como dirão Pero César e António de Saldanha e os mais christãos que agora vieram de Africa por via do embaixador de Alemanha, procurando sempre por todas as vias achar algua ocasião para fugir para terra de christãos, e não a ouve porquanto a elle o casarão em Fez com duas molheres, o ditto rey, de hua das quais teve um filho e de outra hua filha que será de cinco anos e o menino de quatro; e também por ser alcaide que sempre tinha debaixo do seu poder muitos soldados, não pode haver a ditta ocasião mais cedo”. (SALDANHA, 1997, p. 595-596)
A inquisição quis saber se conhecia pessoas que se fizeram elches e residiam em Portugal. Rui Gomes denunciou um tal Gaspar que “segundo sua lembrança e foi cativo em Tanger sendo atalaia e levado a Fez aonde esteve por muito tempo cristão e tem para si que é português e ele o conheceu cristão em casa d’el-rei de Fez e depois se tornou mouro e se chamava Abdaramão Cavalinho e serviu a ele declarante de seu soldado e por mouro se publicava sendo casado com uma moura e fazia o que os mais mouros faziam”. (SALDANHA, 1997, p. 598)
A Porta do Campo de Safim, capital portuguesa da Duquela
Os primeiros renegados em Marrocos foram sobretudo portugueses e também espanhóis, por diversas razões: a proximidade geográfica e frequentes razias de corsários mouros nas costas da Península Ibérica, onde eram feitos inúmeros cativos, a guerra do corso, enquanto fonte de aprisionamento de muitos marinheiros, mercadores e viajantes, as deserções de portugueses das Praças de Marrocos devido à fome e à clausura, o aprisionamento de soldados portugueses nas almogavérias ou nos trabalhos em redor das Praças e, é claro, a Batalha de Alcácer Quibir, pela quantidade invulgar de cativos a que deu origem.
D. Rodrigo de Castro, Governador de Safim, numa carta a D. João III, fala do perigo de que a fome nas Praças portuguesas constituía em termos de deserções nas suas tropas:
“Muitas vezes escrevi a Vossa Alteza a grande necessidade que tínhamos de mantimentos, e como não havia nenhum na cidade, e que como todo o pó do biscoito do celeiro era comido e assim por nossos pecados não houvera nenhum trigo nem cevada (…) Faço tudo saber a Vossa Alteza e porque, se nos não vier mantimento de hoje em vinte dias, a maior parte da gente não poderá deixar morrer à fome, ou desamparar a cidade, porque se irão para Azamor, e outros para terra de Mouros, o que já começam a fazer.” (RICARD, 1948, p. 249)
Os Cherifes Sádidas já utilizavam os renegados em grande escala antes de Alcácer Quibir e inclusivamente na batalha a tropa de elite do Sultão era constituída por elches. Diego de Torrés refere que o sultão tinha uma guarda pessoal composta por 2.000 renegados e turcos a cavalo e munidos de arcabuzes. (TORRES, 1636, p. 319)
Este período de conversões de europeus ao islão é precedido por um outro de sinal contrário, já posterior ao advento da conversão forçada de mouros e judeus na Península, correspondendo ao tempo da ocupação de várias cidades da costa Atlântica de Marrocos por Portugal e da impotência da Dinastia Oatácida em lhe fazer face. Nesta altura, e tendo Portugal consciência da impossibilidade de ocupação do território de Marrocos, incentiva a criação de áreas de Mouros de Pazes ou Mouros de Sinal, alguns dos quais, muito poucos, diga-se em abono da verdade, se convertem ao cristianismo. A tomada do poder pelos Sádidas e consequente reunificação de Marrocos reduz a presença portuguesa às praças de Ceuta, Tânger e Mazagão, acaba com a ilusão de um reino português em Marrocos e com a influência já de si restrita do cristianismo no país.
Cavaleiros da Duquela
Para Marc-André Nolet, o período de grande influência dos renegados em Marrocos situa-se entre os anos de 1578 e de 1727, subdividindo-o em três partes: ascensão, apogeu e declínio. A ascensão começa precisamente com a Batalha de Alcácer Quibir, quando cerca de 16.000 portugueses são feitos prisioneiros e muitos deles vêm a ocupar importantes lugares no aparelho de estado, fosse como generais, fosse como conselheiros do Sultão Ahmed El Mansur. O apogeu inicia-se em 1603 com a morte de Ahmed El Mansur e período subsequente de jogos internos pelo poder, em que os elches têm um papel decisivo nas lideranças das várias facções em disputa. O declínio é determinado pela tomada do poder pela Dinastia Alauíta em 1664, que considera que os renegados tinham demasiada influência em Marrocos. Com a morte de Mulai Ismail em 1727, os elches perdem toda a sua influência, passando a ser utilizados como simples carne para canhão. (NOLET, 2008, p. 22)
No entanto, a existência de renegados em Marrocos vem em crescendo desde o advento da expulsão dos mouriscos e judeus, e Alcácer Quibir é já um marco em que o próprio exército marroquino inclui milhares de renegados, muitos deles com funções no topo da hierarquia. Segundo Luís Costa e Sousa, o número de elches no exército marroquino seria de cerca de 2.500. (SOUSA, 2009, p. 70)
A Bab Es Seba’ ou Bab Dekaken em Fez Jedid, local de acesso à Daracana
D. Pedro de Meneses, Capitão de Ceuta informa D. João III numa carta datada de 1550 da existência de renegados e de turcos trabalhando nas fundições de Fez:
“Artilharia funde muita em Fez, porque tem muito metal e grandes artífices dela, e por pecados nossos os mais cristãos arrenegados e alguns turcos.” (RICARD, 1951, p. 401)
O sector do armamento, sobretudo da artilharia, foi desde sempre um dos principais campos em que os renegados colaboraram com as autoridades de Marrocos.
“O cônsul francês Jean Baptiste Estelle referiu que as forças de Mulai Ismail contavam com quarenta mil mosqueteiros, em grande parte renegados”. Para além disso, o trabalho dos europeus na Daracana de Fez, uma espécie de prisão-fábrica de armamento, produzia “quatrocentos canhões por mês, muito belos e de grande qualidade”. (MILTON, 2006, p. 145)
O irlandês Carr, fundidor de profissão, ficou célebre pelos canhões que fabricava. Mulai Ismail ofereceu-lhe cinco mulheres, muitas riquezas, chegou a nomeá-lo Qaid, ou General, e mesmo governador de uma das fronteiras com a Guiné. Outro renegado do tempo de Mulai Ismail foi um cirurgião espanhol chamado Laureano, que mudou o nome para Sidi Ahmed, que se tornou no físico particular do sultão e que nutria um ódio muito especial aos escravos cristãos. (BUSNOT, [1714] 2017, p. 48-49). Refira-se aliás que muitas das atrocidades cometidas contra os escravos europeus eram da responsabilidade dos renegados, fosse para “mostrar trabalho”, fosse por uma questão de contrariar o sentimento de culpa que tinham por terem traído os seus. (MILTON, 2006, p. 145-146)
Deste comportamento dos renegados vem designação depreciativa dada pelos cativos aos torcionários, sobretudo aos femininos, larifa com um motrete de cuscus à cabeça, significando pessoa de pouco valor encarregada de serviço fácil, como chicotear, espancar, torturar ou enforcar. (SALDANHA, 1997, p. 522)
Ainda hoje Laarifa, a que sabe ou que conhece, termo derivado do verbo ‘arafa, saber ou conhecer, é uma figura tenebrosa existente na sociedade marroquina. Um misto de coscuvilheira, intriguista e informadora da polícia, que, usando um véu que esconde a sua identidade, passa o tempo nos locais públicos a ouvir as conversas, a semear a discórdia no seio das famílias e a encorajar os divórcios. Para além de informadora da polícia, é utilizada pelas autoridades para entrar nas casas particulares, por exemplo em acções de despejos, já que os agentes masculinos não podem entrar nos domicílios onde hajam mulheres.
Combatente Rifenho das tropas de Abdelkrim Khatabi
No próprio século XX, mais propriamente durante a Guerra do Rif, o papel dos renegados mantinha-se, se bem que com a devida amplitude. A Guerra do Rif criou também os seus renegados. Soldados espanhóis que desertavam e se convertiam ao Islão, passando a viver com os rifenhos. Alguns deles, sobretudo os mais politizados, lutariam ao lado de Abdelkrim. É famoso o caso de um alemão de nome Josef Klemps, conhecido como o Peregrino Alemão, um artilheiro desertor da Legião Estrangeira francesa. Convertido e casado com quatro mulheres, este aventureiro romântico torna-se o chefe da artilharia de Abdelkrim, que lhe chama o meu grande artilheiro. Apesar de difamado pela imprensa ocidental, a verdade é que Klemps ficou na história como um homem que evitou muitas torturas e mutilações a prisioneiros espanhóis. Acabou por ser capturado e enviado para o presídio da Ilha do Diabo, onde esteve o famoso Papillon. (LEGUINECHE, 1996, p. 286)
O aproveitamento dos conhecimentos europeus em termos de armamento era mesmo aplicado às armas neurobalísticas, como se percebe neste trecho de uma carta enviada por António Leitão de Gamboa, Capitão de Santa Cruz do Cabo Guer, a D. João III:
“Prouve a Nosso Senhor que um Cristão português, de nome Alexandre Gonçalves que no tempo de Simão Gonçalves se foi tornar mouro, besteiro e homem manhoso que lá fazia bestas, ao qual eu tinha mandado seguro rogando-lhe que se viesse, e estando na cilada com eles duas horas ante manhã, considerando o risco que esta vila e eu corria de tão manhoso ardil, deliberou fugir e fazer este serviço a Deus e Vossa Alteza, que certo foi grande, como adiante direi (…) Como pela manhã acharam o dito Alexandre menos, por trazer todas as nozes (a noz era uma peça de marfim ou de corno que servia para segurar a corda de uma besta) das bestas dos seus besteiros, porquanto era quadrilheiro deles, houveram-se por sentidos e desarmaram-se do seu propósito.” (CENIVAL, 1939, p. 337-338)
O local da Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer em Agadir
No período inicial, que Nolet chama de ascensão, os elches aumentam exponencialmente em número, mas a sua influência política não é ainda marcante, salvo raras excepções, como por exemplo os casos de Reduan e Jaoudar Pacha:
“No período de 1578 a 1603, da vitória na Batalha dos Três Reis (Alcácer Quibir) à morte de Ahmed al-Mansur, indica uma subida em força dos renegados. Ora este período, qualificado de ascensão dos renegados, caracterizou-se acima de tudo por um grande número de renegados. Ultrapassando os 20.000 indivíduos, eles constituíam uma nova casta de elite muito importante para a modernização do país.” (NOLET, 2008, p. 71)
É o período do seu aproveitamento para a modernização de Marrocos com fins militares, de construção de infraestruturas e fortificações, de desenvolvimentos das técnicas de navegação e de construção naval.
No domínio da construção, o seu papel foi de grande importância. Desde logo nas infraestruturas militares, com a construção de fortificações, como a das muralhas de Rabat atribuídas ao renegado inglês Ahmed El-Inglizi, e as de Salé, a construção de vários fortes, de pontes e estradas, muitos das quais da responsabilidade de portugueses.
A “Skala” de Salé
Após a morte de Ahmed El Mansur em 1603 entramos no chamado apogeu dos renegados, como Nolet o designa.
Neste período, Marrocos mergulha numa guerra civil, na qual os renegados têm um papel decisivo em termos de influência política sobre os vários campos em disputa pelo poder. O contributo nesta fase já não é o da simples modernização das técnicas militares, navais ou de construção de fortificações, mas de um contributo intelectual, sobretudo para a instrução das próprias elites marroquinas e de influência palaciana.
“O último ponto da contribuição para a construção do Marrocos moderno durante a guerra civil é o do estabelecimento de uma elite intelectual. A idade de ouro dos renegados foi (…) uma época em que os renegados tinham estabelecido uma rede de conhecimentos. Nesta linhagem, os renegados tinham já contribuído muito com os seus conhecimentos tecnológicos sob o período de Ahmed al-Mansur, continuaram a contribuir para a modernização de Marrocos, sobretudo pela instrução.” (NOLET, 2008, p. 87)
Henri Roberts, agente inglês em Marrocos, descreve as forças do Sultão numa carta escrita em 1603, como sendo compostas por 4.000 Renegados, os seus melhores soldados, 4.000 Andaluzes, 1.500 Zouaoua, Turcos e outros soldados, todos formando um efectivo de 40.000 homens, aos quais podemos juntar 200.000 Árabes, “tropa na qual não se pode contar”. (CASTRIES, 1925, p. 222)
A Casbah Oudaia em Rabat
Este período é também o da idade de ouro para os corsários e o trafico de cativos, coincidindo com a criação de uma república independente em Rabat-Salé, que tomou o nome de República de Salé, República das Duas Margens ou República Corsária de Bouregreg, nome do rio que divide as cidades de Salé e Rabat, e que vigorou durante 41 anos a partir de 1627.
Entre 1614 e 1619 os destinos da Casbah são dirigidos pelo hornachero Ibrahim Vargas, seu primeiro governador, e entre 1619 e 1627 pelo aventureiro holandês convertido ao Islão Murad Rais, investido pelo Sultão Mulai Zidane em 1624 no cargo de Grande Almirante. Para muitos autores foi o primeiro presidente da República de Bouregreg, entre 1624 e 1627, mas para a maioria a fundação da República só se consumaria após a morte do Sultão Mulai Zidane em 1627, já que a nomeação de Murad como Almirante deu-lhe autonomia, mas não independência. O título de Almirante era geralmente atribuído aos presidentes eleitos, mas no caso de Murad Rais terá sido encarado apenas como uma promoção.
Jan Janszoon nasceu em 1575 em Haarlem na Holanda e aí viveu durante a ocupação espanhola da Flandres, tendo adquirido carta de corso dos holandeses para fazer a guerra aos espanhóis. Como o corso na Flandres era pouco lucrativo, mudou-se para os ninhos de corsários da costa de Marrocos, usando a bandeira holandesa para atacar os navios espanhóis e a bandeira otomana para atacar os navios de outras nacionalidades. Em 1618 foi capturado por piratas argelinos nas Canárias e levado para Argel, onde se converteu ao Islão, tomando o nome de Murad Rais. Pertenceu ao bando do célebre Sulayman Rais ou Seliman Reis, comandando uma frota de 18 dos seus xavecos. Em 1619, após a morte de Sulayman com um tiro de canhão, instala-se na Casbah, sendo o único não-hornachero a ter assento no Diwan, ou conselho. Em 1627, no seguimento de conflitos internos, abandona Salé e regressa a Argel, voltando a Marrocos em 1640 como governador de Oualidia.
Jan Janszoon van Haarlem, Jan Jansz, John Barber ou Capitão John, aliás Murad Rais, Murato Arraes, o Novo, “o Grande Almirante”, primeiro presidente da República de Bouregreg
António Saldanha descreve um episódio de um raid à costa do Algarve envolvendo Murad Rais:
“Passou Murato Arraes por a costa do Algarve e inda que levava intento de saquear Faro por o meterem nisso dous arrenegados naturais daquela vila e casados com duas filhas suas (…) quis primeiro amanhecer no cabo de S. Vicente e ver o que ali havia. O adelantado que tinha suas vigias e sabia que o cossário havia desembocado o Estreito (…) lhe fizeram sinal as vigias do cabo que para ele vinham cinco galeotas e, dobrando as sentinelas, com os remos nas mãos, esperavam que o mesmo cossário se lhe viesse meter nelas.” (SALDANHA, 1997, p. 185)
No final Murad Rais pressentiu o perigo e fugiu, metendo-se mar adentro, mas é relevante que levava consigo dois elches naturais de Faro como guias.
Salé vista da Casbah Oudaia em Rabat
Apesar do seu carácter de república marginal, o Bouregreg foi de facto um estado instituído, tendo sido reconhecido como tal por várias potências europeias, que mantinham relações diplomáticas com presença de consulados. Ainda hoje subsiste na Medina de Rabat a Rua dos Cônsules, designação proveniente desse período. Foi tolerado e inclusivamente utilizado pelo Sultão de Fez como alavanca ou arma de chantagem para conseguir pagamentos das potências europeias, com o argumento de minimizar os ataques aos seus navios. A Inglaterra e a Holanda foram os países que mantiveram relações mais fortes com a República de Salé, aliado seu na guerra contra Espanha.
A guerra do corso envolvia montantes astronómicos. Estima-se que só o corso de Salé empregasse nas tripulações da sua armada cerca de 4.000 homens, ou seja, 20% do total da população da cidade, e que o volume de bens apresados e número de cativos fosse enorme. Só entre 1618 e 1624 terão feito 6.000 cativos, atacado mais de 1.000 navios e pilhado 15 milhões de libras de mercadorias num total equivalente a cerca de três mil milhões de euros em moeda actual. (DUMPER, 2007, p. 306)
Os resgates atingiam preços exorbitantes, sobretudo os das mulheres. Um comerciante inglês de nome Edmund Cason foi enviado a Argel para resgatar mulheres e “pagou 800 libras por Sarah Ripley, de Londres, 1.100 por Alice Hayes de Edimburgo, e a soma exorbitante de 1.392 libras por Mary Bruster, de Youthgal, mais de 36 vezes o preço médio” (MILTON, 2006, p. 41). O próprio Milton esclarece que na época o salário anual médio de um lojista em Londres era de 10 libras! Se esse salário anual fosse hoje apenas de 12.000 euros (que não será), então o resgate de Mary Bruster terá tido o valor aproximado de 1.500.000 euros! Por aqui se vê como os lucros da escravatura eram incomparavelmente superiores aos das mercadorias, no quadro da guerra do corso.
A masmorra da Casbah de Boulaouane, destino para muitos cativos europeus
Com a queda da Dinastia Sádida e a tomada do poder pelos Alauítas, entramos no período do declínio dos renegados, já que o seu poder político cai, mas a sua influência no país mantém-se à custa do controle económico sobre sectores chave, como por exemplo o do resgate de cativos.
“Apesar de os renegados terem regredido na estrutura administrativa do novo estado marroquino, parece que continuaram a participar na sua evolução com a ajuda de uma nova ‘arma’, a economia. É verdade que os renegados contribuíram por vezes para gerar dinheiro aos soberanos marroquinos nos períodos precedentes, sobretudo durante a guerra civil posterior à morte de Ahmed El-Mansur em 1603. O seu novo papel sob os Alauítas era sobretudo o de comerciantes. Graças aos seus conhecimentos das línguas e dos costumes europeus, puderam apoderar-se de um lugar chave no sector comercial em grande progressão, o comércio de cativos.” (NOLET, 2008, p. 103)
Com a publicação do Dahir (Decreto Real) de 1682, todos os escravos passavam a ser propriedade do Makhzen (Estado), “não sendo mais vendidos nos mercados como escravos e não sendo mais assim designados; passam a chamar-se cativos e prisioneiros de guerra ou El-Ansara e não escravos”. (MAZIANE, 2002, p. 5)
A publicação deste decreto teve também como consequência que o resgate dos cativos se começou a processar através de negociações Estado a Estado, incluindo trocas de prisioneiros, pagamentos e indeminizações por mercadorias aprisionadas, as ordens religiosas cristãs passaram a ser autorizadas a prestar apoio aos prisioneiros nas prisões e cada nação passou a ter o seu espaço definido, que geria à sua maneira. Esta medida inseria-se na política de grandes construções levada a cabo por Mulai Ismail.
Para os escravos em si, esta mudança trouxe-lhes uma substancial melhoria, já que passaram a ficar concentrados em Meknés e, em vez de serem encerrados na masmorra subterrânea, a Habs Qara, foi criado em 1695 um bairro de escravos, o Canut ou Canot onde os cativos eram dispostos em vários sectores, um para cada nacionalidade. O termo Canut teria como significado pequenas casas ou celas.
Os Celeiros de Mulai Ismail em Meknés ou Heri Souani
O Padre Nolasque Néant descreve assim o “Canot”:
“Durantes todas estas negociações fomos várias vezes visitar os Escravos Franceses doentes, no lugar onde os Escravos Cristãos se retiram todas as noites quando o seu trabalho acaba. Esse lugar, que eles chamam o “Canot”, era antigamente a Judiaria (…) Cada Nação tem o seu bairro à parte, e no meio há uma pequena Capela (…) Encontrámos aí dois Religiosos Beneditinos Portugueses, que tinham sido feitos escravos quando regressavam do Brasil, e que tinham a liberdade de dizer a Missa todos os dias, e de fazer todas as suas funções, como se estivessem no seu Convento. É preciso dizer que este Príncipe, bárbaro como é, tem esta consideração pelos Padres e os Religiosos Escravos, que deixa viver tranquilamente sem os obrigar a trabalhar, e com a autorização de usar os seus hábitos, e de exercer as funções dos seus ministérios.” (NÉANT, 1724, p. 99-100)
Para além disso, cada Nação tinha a sua enfermaria e seus enfermeiros, excepto os espanhóis que tratavam os seus doentes no Convento dos Franciscanos que existia na cidade. No Canot os escravos adquiriram direitos que não tinham até então. Um dos direitos era poder fabricar o seu próprio vinho, que se revelou um factor de melhoria da sua saúde e robustez.
A Skala da Casbah e, ao fundo, a Skala do Porto de Essaouira
Planta de Essaouira de 1767 de Théodore Cornut, Bibliothèque Nationale de France
Já no reinado do Sultão Sidi Mohamed ben Abdellah, a criação de infraestruturas portuárias e suas defesas, as Skalas, casos das de Essaouira e Casablanca, e ainda do próprio traçado urbano das cidades modernas, cujo exemplo principal é o desenho do renegado francês Théodore Cornut para a cidade de Essaouira, reflectem a abertura comercial e diplomática que Marrocos conhece no final do século XVIII, iniciando um processo de instalação de empresas comerciais estrangeiras e de estabelecimento de relações diplomáticas com os principais países europeus, patente na criação do bairro dos consulados nesta cidade.
Outro campo importante foi o da espionagem e contraespionagem militar, fundamental na preparação de ataques e de eficácia na organização das defesas. Os próprios conceitos de estruturação das forças armadas, das técnicas de cerco, como foi exemplo a do cerco de Mazagão em 1769 com a utilização do avanço de trincheiras com aproches, ou as técnicas de minagem das fundações das fortificações.
Representação da casa do alcaide Ibrahim Sufiani, onde o corpo de D. Sebastião esteve sepultado durante 5 semanas após a batalha à guarda do fidalgo português Belchior do Amaral
Voltemos ao ano de 1578, à Batalha de Alcácer Quibir, e ao papel dos renegados portugueses na sociedade marroquina.
Alcácer Quibir é um marco no aproveitamento dos renegados, que Ahmed El Mansur soube explorar de forma brilhante. Do contingente português capturado, apenas os cavaleiros, a sua minoria, tinham possibilidade de serem resgatados. Os restantes elementos, soldados de infantaria, escudeiros, bagageiros, cozinheiros, carpinteiros, ferreiros, etc, etc, não tinham qualquer hipótese de resgate. A sua conversão ao islão, para além de ser religiosamente um acto de piedade, era uma forma de reestruturar os exércitos Sádidas, substituindo os janízeros turcos pelos soldados portugueses, afastando o perigo que os Otomanos representavam para a independência de Marrocos.
“Uma vez convertidos, estes homens não tinham qualquer esperança de retorno, já que o Papa e a Inquisição condenavam os apóstatas e julgavam-nos no seu regresso ao país, se os conseguissem capturar.” (NOLET, 2008, p. 54)
António Borges Coelho, na sua obra “Inquisição de Évora 1533-1668” relata vários casos de soldados aprisionados em Alcácer Quibir que foram julgados pela inquisição de Évora.
“Nos autos de 1624 e 1625 saíram a queimar dois soldados de Alcácer Quibir, respectivamente Pero Gonçalves Tovar (o Pão Mole) e Luís Álvares Matias.” (COELHO, [1987] 2018, p. 245)
Outro foi caso de um sapateiro de Faro chamado Brás Fernandes que foi para a batalha com 26 anos. Esteve três anos na prisão em Fez, de onde tentou duas fugas frustradas. Foi levado para Argel, onde foi vendido a um renegado espanhol chamado Mustafá que o torturou para o converter, o que acabou por acontecer. Na cerimónia da conversão percorreu as ruas de Argel montado num cavalo, com uma flecha na mão, após o que foi circuncisado. Um ano depois conseguiu fugir com outro espanhol chamado António Ruiz. Chegados a Múrcia, foram presentes à Inquisição Espanhola, que enviou Brás Fernandes à Inquisição de Évora. Borges Coelho refere que “Brás Fernandes não é o único sobrevivente renegado de Alcácer Quibir. Acompanharam-no, por exemplo, Domingos Fernandes, 25 anos, de Mértola, e centenas se não milhares de outros”. (COELHO, [1987] 2018, p. 262)
A “ponte velha” sobre o Oued El Makhazen (o Rio Mocazím das crónicas) junto da qual o exército português atravessou o rio
O antecessor de Ahmed El Mansur, Mulai Abdelmalik (o Maluco das crónicas portuguesas) tinha como braço direito um português de nome Reduan ou Reduão, que tomou o seu lugar durante a Batalha de Alcácer Quibir no seguimento da sua morte por envenenamento. Queiroz Velloso refere-se a Reduan da seguinte forma, quando Abdelmalek se ausenta de Marraquexe para dar luta ao seu sobrinho Mohamed El Mutawakil e confia a Reduan o poder:
“Abdelmalek saiu de Marraquexe, deixando por governador o alcaide Reduão, um renegado português, inteligente e corajoso, que trouxera de Argel, e a quem dera o alto cargo palaciano de camarista, como homem de sua plena confiança”. (VELLOSO, 1935, p. 327-328)
Na narrativa de Queiroz Velloso existe uma referência às cartas que Abdelmalek terá escrito a D. Sebastião tentando dissuadi-lo de travar a batalha, e afirma inclusivamente que “num ponto estão de acordo os cronistas: após a derrota, aos fidalgos cativos em Fez, afirmou o alcaide Reduão, português renegado e grande valido do defunto Xerife, que o amo teria cumprido todas as suas promessas.” (VELLOSO, 1935, p. 326)
Sobre o papel de Reduan na batalha, escreve Queiroz Velloso que segundo o historiador marroquino Alofrani “o falecimento e Abd Almálique foi ocultado pelo seu camarista, o renegado português Reduão, que nunca deixou de transmitir fingidas instruções do soberano”. (VELLOSO, 1935, p. 382)
O Memorial a Abdelmalek em Douar Souaken
Eloufrani descreve assim na sua obra Histoire de la Dynastie Saadienne au Maroc (1511-1670) o episódio que envolve o português Reduan:
“No próprio momento do primeiro choque, quando o combate se iniciava, que a luta começava e que o fogo da guerra se acendia, Abdelmalek que estava doente morreu na sua liteira. Mas na sua admirável previdência, Deus quis que a morte do sultão fosse ignorada por todos à excepção do seu camareiro, Redhouan o renegado. Este ocultou a morte e foi de tenda em tenda dizendo: ‘O sultão ordena a uma tal pessoa que se dirija a um tal lugar, a uma tal pessoa que fique junto da bandeira, a uma tal pessoa que se coloca à frente, a uma tal pessoa que se coloque atrás, etc.’
O comentador da Zahra dá-nos a seguinte narrativa: Quando Abdelmalek morreu, o escudeiro encarregado da sua liteira não deu a conhecer a morte do seu soberano; continuou a fazer avançar a hoste na direcção do inimigo gritando aos soldados: ‘O sultão ordena-vos de marchar em frente contra os infiéis’. Apenas Elmansour conheceu igualmente a triste notícia, mas também a escondeu.” (ELOUFRANI, 1889, p. 134)
Na Jornada de Africa del Rey D. Sebastian de 1630, Reduan é chamado Manzorrico, na seguinte passagem da obra:
“O Maluco, que estava a cavalo, vendo a sua vanguarda desbaratada, e os Árabes a fugir, suspeitou que tinha havido traição, que era o que mais se temia; e como o veneno tivera efeito, arrebatou-lhe uma dor tão veemente, que caiu morto com o dedo posto na boca. Mostrou valor neste ponto, pois advertiu com sinal tão mudo, que menosprezava a vida, e não temia a morte, para que a sua honra permanecesse. Mostafá Pique, Alcaide da sua guarda, cobriu-lhe o rosto, e entrou na liteira onde podia andar, fingindo ter-lhe dado um desmaio: e esta antecipada diligência, quis dizer que a deixou mandada. Ficou à guarda do corpo um Elche chamado Manzorrico, o qual recebia as ordens dos que vinham, e a elas respondia; dando a entender serem do Maluco: e se alguém vinha perguntar alguma coisa, metia a cabeça dentro da liteira, e logo dizia, o Xerife manda, que se faça tal, e tal coisa: isto era com tanta destreza, que os da sua guarda entendiam ser assim.” (MESA, 1630, p. 73)
Reduan é referido por Sebastian de Mesa num episódio no qual Ahmed El Mansur é aclamado Sultão, que escreve:
“Estava Mulay Hamet bem alheio de ser senhor de Africa, pelo pouco que foi tido e estimado em vida do irmão; testemunha Reduan Elche, Renegado Português, que lhe deu uma bofetada, de que nunca se fez caso, nem dela se fez repreensão.” (MESA, 1630, p. 88)
O Rio Makhazin no seu leito original à data da batalha
As referências aos vários alcaides renegados que constituíam a corte de Ahmed El Mansur são contraditórias, podendo inclusivamente ter existido alcaides com o mesmo nome, sendo pessoas diferentes.
Para além de Reduan, o exército marroquino incluía outros renegados portugueses ocupando altos cargos, caso do Alcaide Tabibe, que serviu de intérprete do Cherife nos interrogatórios aos nobres portugueses cativos na batalha. (VELLOSO, 1935, p. 398)
Em relação a Almanzorico, Henry de Castries diz que o seu nome provavelmente seria a forma como os cristãos lhe chamavam e corresponderia a uma colagem de duas palavras, Almansor + rico. “Almanzorico era o mais poderoso dos Qaids, chegando a ser nomeado Vice-rei do Sudão”. Era também chamado Qaid Monsor Abderahman ou Monsor Rico, como refere Castries. (CASTRIES, 1925, p. 84)
Após Alcácer Quibir, Ahmed El Mansur começou a dar aos alcaides renegados lugares de maior “confiança”, promovendo “o alcaide Ruduão, castelhano, e o alcaide Mansorico, o alcaide Jaudar, natural de Tanger, o alcaide Solimão, seu estribeiro-mor, e o alcaide Mamut Zarcon.” (SALDANHA, 1997, p. 25)
Na sua chegada a Fez, o Xerife decide aceitar resgatar 80 fidalgos portugueses e “buscar todos os moços que se acharam da batalha d’el-rei D. Sebastião de quinze anos para baxo, e os mandou circuncidar e vestir à mourisca e ordenando-lhe muitas vantagens deixou em Fez trezentos moços e levou consigo a demasia pera Marrocos (Marraquexe) pera servirem das portas adentro e confiar deles sua pessoa. E fez alcaide destes moços Jaudar, e de sua casa o alcaide Brahen Sufiane com o título de alcaide dos alcaides, homem que foi benemérito de todos os lugares por sua boa natureza e foi grande amigo dos fidalgos e geralmente de todos os cristãos.” (SALDANHA, 1997, p. 27)
A Kutubyia de Marraquexe
Deixando em Fez o seu filho herdeiro Mulay Cheikh, partiu para Marraquexe onde foram resgatados por uma embaixada portuguesa os 80 nobres já “cortados” (cujo resgate já estava negociado).
“E a seu filho mais velho, Mulei Xeque, fez jurar por seu herdeiro, e lhe deixou dous mil arrenegados, quatro mil azuagos e quatro mil xarquis e mil spahis, que é gente de cavalo, estes mui bem pagos e contentes.” (SALDANHA, 1997, p. 31)
“E deixando o alcaide Amet em Alcacere e o alcaide Acem Batuera em Tetuam se partiu pera Marrocos onde entrou já no ano de setenta e nove. E foi recebido com grandes festas levando consigo dous mil e quinhentos cristãos cativos, e os moços pera o serviço de sua casa, e quatro mil andaluses, dous mil turcos, quatro mil azuagos e outros tantos xarquis, e dous mil espahis com suas espingardas, tudo gente paga e mui exercitada nas armas de sua profissão que são escopetas grandes como mosquetes e que tiram onça e mea de bala, e dous mil arrenegados, mui boa gente, e, por serem de mais confiança, os ia antepondo a toda a mais soldadesca e não ficava a guarda da sua casa senão deles.” (SALDANHA, 1997, p. 33)
Cabe aqui um esclarecimento sobre estas nações de tropas de Ahmed El Mansour e a nota de que os renegados eram sem dúvida nenhuma aqueles em quem mais confiava, ao ponto de os nomear para a sua guarda pessoal:
Os Andaluses eram mouros portugueses e espanhóis expulsos da Península, os Azuagos eram membros de tribos oriundas da área a Oriente da Tunisia, os Espahis atiradores marroquinos a cavalo, os Xarquis eram tropas berberes da Argélia e os Gazula, Berberes oriundos do Atlas.
O reservatório da Menara em Marraquexe
O sultão sentia-se inclusivamente mais tranquilo com a sua guarda de renegados, já que eram indivíduos desenraizados, totalmente fiéis, para quem a vida era o exército.
Ahmed El Mansur organizou o seu exército de forma a satisfazer as necessidades e gostos das várias comunidades que o compunham, com particular cuidado para a sua elite, os renegados. Sendo a alimentação um dos aspectos fundamentais, tinha como responsável pela cozinha e transporte de víveres um português cativo de Alcácer Quibir, de nome Bakhtiar. Os soldados estrangeiros do exército estavam divididos em seis corpos, dos quais era o “4º os chancharya, especialmente encarregados da alimentação e do transporte de víveres; o seu chefe Bakhtiar era dos prisioneiros feitos na Batalha de Oued El Makhazin (Alcácer Quibir)”. (ELOUFRANI, 1889, p. 196-197)
Converteram-se assim milhares de portugueses, que, juntamente com o dinheiro dos resgates dos nobres aprisionados, permitiram a Ahmed El Mansur criar um exército poderoso, com o qual invadiu de seguida o Mali.
Saldanha tem esta descrição dos estrangeiros que ingressavam nos corpos de elite de Ahmed El Mansur:
“Estes eram andaluzes, azuagos que eram de Tunes a levante, xarquis que eram de Tunes até Fez, turcos que eram dous mil e não se aceitava nenhum outro, e arrenegados portugueses e espanhóis que iam em grande crecimento, e estes ia o xerife acariciando muito.“ (SALDANHA, 1997, p. 49)
Otmane Mansouri fala deste exército e do seu comandante, Jaoudar Pacha:
“Numerosos soldados portugueses foram feitos prisioneiros durante as batalhas contra os exércitos reais portugueses. Tendo em conta o seu número, os portugueses apenas resgatavam os cativos mais nobres. Os que ficavam tornavam-se escravos. Entre esses soldados, havia homens que obtiveram responsabilidades graças às suas competências, que se converteram ao Islão. Um deles, Jaoudar Pacha, célebre oficial do exército Sádida, foi inclusivamente enviado para conquistar o império Songhai do Mali para explorar o ouro do Níger.” (MANSOURI, 2011, p. 33)
Jaoudar, Jaudar ou Jawdara era de facto um castellano que comandou um exército maioritariamente composto por renegados portugueses na conquista do ouro e do sal do Mali.
Um alcaide português influente era Abdalá Sincos, elche que tinha oitocentos soldados sob o seu comando. “Era português e posto que casado e com filhos e mui rico.” (SALDANHA, 1997, p. 431)
Outro elche português que se distinguiu como militar foi Amu Beja, conhecido como Hamou Bijou ou Hamet ben Jau. (SALDANHA, 1997, p. 513)
O Borj Nord ou Borj An-Nar (Forte do Fogo) de Fez, vendo-se do lado direito o canhão maimuna utilizado pelos turcos na Batalha de Alcácer Quibir
O reinado de Ahmed El Mansour é especialmente rico em construções de infraestruturas militares, como muralhas e fortalezas, apoiando-se no grande incremento que os elches deram. Foi um reinado extremamente longo (1578-1603) e iniciou-se precisamente no dia da Batalha de Alcácer Quibir, no qual são feitos milhares de cativos, entre os quais homens de grande competência, apreendida grande quantidade de armamento e cobradas importantes somas em resgates.
O Borj Nord e o Borj Sud de Fez são dois fortes cuja construção foi iniciada por Abdelmalek e concluída por Ahmed El Mansour. (KAFAS, 2016, p. 212)
Estas fortificações, que defendem exteriormente Fès El Bali, a cidade velha, bem como as defesas da Fès Jdid, Fez Nova, foram terminadas após a Batalha de Alcácer Quibir e fortemente munidas de artilharia e soldados aí deixados por Ahmed El Mansur ao seu filho herdeiro Mulai Cheikh.
Sobre o Borj An-Nar, refere Kafas:
“É evidente que este edifício foi completamente concebido nos seus mais ínfimos detalhes antes da sua construção. Uma verdadeira obra saída da mão de um mestre que dispunha de um plano de execução preciso.” (KAFAS, 2016, p. 214)
É uma estrutura quadrangular com baluartes de orelhões em cunha nos seus cantos, um dos quais apoiado num impressionante alambor, dispondo de 56 canhoneiras e rodado de um fosso com altura de entre cinco e sete metros. A semelhança entre estes fortes e os que eram na época construídos na Europa, leva muitos autores a atribuir a sua construção a renegados europeus.
António Almagro coloca muitas reservas a esta posição, por dois motivos, seja o facto de Ahmed El Mansur ser fortemente influenciado pela experiência turca, mas principalmente porque “a impressão que estas fortificações dão é a de que os seus projectistas não tinham muita experiência relativamente a ataques realizados por exércitos munidos de artilharia pesada e que copiaram meramente modelos vistos noutros locais, sem pensarem muito na sua utilidade ou o risco que o desenho das suas defesas envolvia. É muito provável que a construção destas fortalezas tivesse, nalguns casos, um objectivo mais intimidatório e propagandístico do que eficiência militar.” (ALMAGRO, 2017, p. 118)
A Ponte Portuguesa de Khenifra
Pontes “Portuguesas” em Marrocos
No interior do território marroquino, sobretudo na zona de Fez-Meknés, existem várias pontes chamadas “dos portugueses”.
“Os postais coloniais que ilustram as antigas pontes marroquinas são categóricos. Os edifícios são obra dos Portugueses. Um contra-senso, já que a maior parte das pontes citadas situam-se nas regiões onde os Portugueses nunca puseram os pés!” (EL QADERY, 2015, obra citada)
No entanto, o mesmo autor reconhece que “não há fumo sem fogo” e que as referências aos portugueses não são totalmente infundadas, mas é necessário dar-lhes o devido enquadramento. A explicação mais plausível é a da utilização de trabalho escravo português. A teoria de que as pontes foram construídas por cativos portugueses é a mais lógica e não é nova. Convém não esquecer que só na Batalha de Alcácer-Quibir foram aprisionados 16.000 portugueses, existindo várias referências à sua utilização em trabalhos forçados. Os prisioneiros da guerra do corso eram sem dúvida alguma outra grande fonte de fornecimento de mão-de-obra para as empresas do Reino de Fez. A conotação das pontes com os portugueses poderá assim resultar da utilização de trabalho escravo português, mas também serem exemplos de um estilo importado da arquitectura portuguesa, ou seja, serem construídas à portuguesa.
Esta linha de construções à portuguesa ou à italiana, já que o modelo português era fortemente influenciado pelo modelo italiano do Renascimento, patente em fortes e pontes, terá com certeza uma relação com a utilização de tecnologia e trabalho europeus ou fortemente influenciada por ela.
O Hisn El-Fath ou Forte da Conquista, também chamado Forte de Laqbibat ou das Cúpulas, referido como fortaleza velha por António de Saldanha
O Hisn Na-Nasr ou Forte da Vitória, também chamado Laqaliq ou das Cegonhas, referido por António de Saldanha como a fortaleza nova
A planta de Larache de 1606 atribuída a João Matteo Benedetti, vendo-se a fortaleza “velha” na barra e a muralha da cidade, não se encontrando representada a fortaleza nova. Arquivo Nacional da Torre do Tombo
As duas fortalezas de Larache, o Castelo das Cúpulas (Hisn Laqbibat, Hisn El-Fath ou Castelo da Conquista, Castelo Português ou de San António, como lhe chamariam posteriormente os espanhóis) e o Castelo das Cegonhas (também conhecido como Hisn Laqáliq, Hisn El-Nasr ou Castelo da Vitória, Castillo de Santa Maria ou de Nuestra Señora de Africa), são atribuídas ao Sultão Ahmed El-Mansur, que terá supostamente utilizado como construtor um engenheiro militar italiano ao serviço de D. Sebastião, cativo na Batalha de Alcácer Quibir, chamado João Mateo Benedetti (BARATA, 2012, página electrónica citada), autor de uma Planta datada de 1607 e existente nos Arquivos da Torre do Tombo e publicada e comentada por António Dias Farinha (FARINHA, 1987, obra citada).
Na Planta de João Matteo Benedetti, o Forte das Cegonhas ainda não está representado, mas apenas o das Cúpulas, o que não deixa dúvidas em relação à maior antiguidade deste último. Aliás, o já referido Alcaide Mansorico surge na obra de António de Saldanha Cronica de Almançor Sultão de Marrocos como alcaide dos Andaluses e “natural de Cordova” (SALDANHA, [160-] 1997, p. 47), pessoa a quem é encomendada pelo Sultão Almançor a reparação de uma e a construção de outra, das duas fortalezas de Larache:
“E com toda a brevidade mandou ao alcaide Mansorico que fosse a Larache fazer a fortaleza nova e fortificar a velha que estava na barra, que tudo se fez em seis meses, e lhe deixou sessenta peças de artilharia de bronze e trezentos soldados de guarnição”. (SALDANHA, [160-] 1997, p. 105)
Fica a ideia de que o alcaide Mansorico teria sido uma espécie de intermediário entre o Sultão Ahmed El Mansour e Benedetti para esta obra, aceitando-se a autoria do italiano ao serviço de Portugal na sua construção.
Eloufrani também se refere às fortalezas de Ahmed El Mansur em Larache: “De entre as construções erigidas por Elmansour, podemos ainda citar os dois fortes construídos em Larache, e dos quais um tem o nome de Hisn-elfath; são duas magníficas e sólidas obras” (ELOUFRANI, 1889, p. 261).
Cruzando a informação de Saldanha e de Eloufrani, parece evidente que, tendo as duas a marca do Sultão Ahmed El-Mansur, uma foi reconstruída e modernizada e a outra construída de raiz, já que as duas apresentam traços de modernidade para a época, com os seus baluartes pentagonais providos de orelhões, muito ao gosto do estilo renascentista italiano.
A importância dos elches na sociedade marroquina ultrapassou largamente as esferas das técnicas militares, de construção naval ou de construções militares. Foi sobretudo um contributo de modernização, na organização do aparelho de Estado, da cobrança de impostos e de investimento no conhecimento e instrução. (NOLET, 2008, p. 21)
Nolet atribui uma importância capital aos renegados portugueses convertidos após a Batalha de Alcácer Quibir, afirmando que foram utilizados pelo Sultão Ahmed El Mansur na construção do Estado marroquino moderno e na própria garantia da independência de Marrocos face aos turcos e espanhóis:
“Ele utilizou renegados como funcionários, militares, governadores, enfim, como homens para todo o serviço no Estado. Os fundos de que dispôs graças à Batalha dos Três Reis, combinados ao grande número de cativos que resultaram dessa batalha e aos aprisionamentos feitos no mar pelos corsários, deram-lhe uma base sólida para atingir os seus fins. O Estado teve aliás algum sucesso e Marrocos resistiu, do século XV ao século XIX, tanto ao imenso Império Espanhol, como ao imenso Império Otomano. Nenhum dos dois titans conseguiu pôr a mão no país que estava, contudo, situado entre os dois rivais”. (NOLET, 2008, p. 109)
Excelente trabalho.
Obrigado
Olá Frederico, gostei muito do texto. Interessante, fascinante todo o teu blogue que encontrei por acaso. A influência da cultura islâmica na Península Ibérica sempre me interessou, e ultimamente tenha lido um bocado mais sobre o tema e foi assim que eu encontrei o teu blogue. Parabéns!
Há muitos anos que não te vejo e foi giro reencontrar-te assim. Bj Li.
Olá Li
Ainda bem que gostaste. É verdade que o tempo passa num instante. Já lá vão uns bons quarenta e tal anos que não nos vemos. Um beijo e até sempre
Faz algum sentido comparar esta figura do renegado, com as devidas diferenças, com a do cristão novo no mundo cristão?
A minha opinião está no texto. São dois exemplos de pessoas que mudam de religião e de identidade de forma coerciva ou de forma voluntária para poderem sobreviver. Essa mudança é feita com grande reserva mental e numa fase da vida dos indivíduos em que a sua personalidade e crenças já estão formadas. Se podemos chamar aos mouriscos cripto-muçulmanos, podemos chamar à generalidade dos renegados cripto-cristãos.
Excelente trabalho, caro Arquitecto. Ha muito que pesquizo sobre Reduao ou Ridwan, mas todas as fontes levam a sua morte as maos de Ahmed El Mansur, no palacio deste em Marraquexe e por Reduao ter atingido um estatuto e poder invejavel. O embaixador de Filipe II refere mesmo que Reduao teria o estatuto de “VisoRey” de El Mansur. E nessa condiçao conseguiu feitos assinalaveis a conter revoltas internas, na guerra e na diplomacia. Tenho muitas duvidas que nao haja confusao com “Manzorico” e duvido que seja originario de Cordoba, atendendo a varios relatos sobre a sua origem Portuguesa. Obrigatoriamente atendendo ao estatuto que atingiu junto de Abdelmalik e El Mansour teria de ser um nobre. Mas quem ? Ando ha anos de volta deste enigma. Obrigado pelos seus textos.
Obrigado caro Rui Pires
As “confusões” a que me refiro são contradições nas próprias fontes, que atribuem origens diferentes a determinadas pessoas, ou falam de pessoas diferentes com nomes semelhantes.
Quanto à identidade dos renegados, no caso concreto do nobre Reduan, é de facto um dos enigmas que envolvem muitos renegados…
Um abraço
Sim, tenho-me deparado com várias contradições, mas fontes Marroquinas e Portuguesas referem que Reduão terá sido capturado de uma embarcação no mediterrâneo. O grande problema de identificação da origem de muitos renegados, como sabe, é a mudança de nome a que eram obrigados após a conversão ao Islamismo, mas se noutros casos se conseguiu, neste o secretismo das próprias fontes e dos cronistas Árabes é enorme. Eu acho que é de extrema importância conseguir-se identificar-se Reduão, se é que tal poderá ser possível, tanto atendendo ao elevado estatuto que atingiu na sociedade Marroquina e até porque tal poderia ser importante para o esclarecimento de outros “mistérios” da nossa presença naquelas terras. Encontro-me em viagem, longe dos meus muitos apontamentos e pesquisa sobre este caso, mas oportunamente gostaria de trocar consigo informações mais concretas sobre este caso, sabendo-o uma das pessoas mais interessadas na história de Portugal em Marrocos, sou um seguidor fiel dos seus trabalhos. Um abraço de admiração.
(peço desculpa pelo mau português no último comentário, mas estava com um tablet sem acentuação)
Tem toda a razão em relação ao secretismo nas fontes Árabes. Parece-me que admitir o papel importante dos elches na própria condução dos assuntos do Makhzen era visto como uma manifestação de incapacidade dos próprios marroquinos em gerir os seus destinos. Os cronistas são regra geral muito parciais nas suas crónicas e muitos deles escreveram-nas fora de tempo, baseados noutros textos, no “disse que disse” ou inclusivamente escrevendo o que politicamente era pretendido. Por cá também, basta ler o Zurara e ver a falta de objectividade com que trata dos assuntos que envolvem o seu empregador, o infante D. Henrique.