
Mapa da presença portuguesa em Marrocos
No início do século XVI Portugal ocupava as quatro maiores cidades do chamado trapézio Norte de Marrocos ou Marrocos Verde (SANTOS 2009: 3), Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila e Tânger. Estas cidades, cuja importância era sobretudo estratégica, encontravam-se isoladas, sujeitas a um bloqueio terrestre imposto pelo poder centralizado do Reino de Fez e pela acção dos alcaides mouriscos que governavam as chamadas cidades Andalusinas (designação preferencial, para não se confundir com Andalusa, no sentido de se conotar com a actual Andalusia espanhola) , na área de influência do Bled El-Makhzen ou País da Lei (o termo Makhzen refere-se à área onde o Estado, neste caso o Reino de Fez, cobrava os seus impostos e exercia a sua Lei. O termo significa Armazém, no sentido de ser a entidade que armazenava os bens em tempos de abundância para os poder repartir em tempos de necessidades). Na zona Sul, no Marrocos Amarelo (SANTOS, 2009: 3), onde se fazia sentir um vazio de poder, resultado da existência da autonomia das várias tribos Berberes e Árabes, de um governo dos Emires Hintata confinado à Cidade de Marraquexe e da emergente influência dos Xarifes Sádidas a Sul do Atlas, o chamado Bled Es-Siba ou País do Caos (o Caos é assim conotado com as autonomias que escapavam ao poder do Makhzen), Portugal mantinha alguma presença com motivações essencialmente económicas, com base em duas cidades vassalas, Safim e Azamor.

Estats et royaumes de Fez et Maroc, Dahra et Segelmesse tirés de Sanuto, de Marmol, etc. Nicolas Sanson 1655. Bibliothèque nationale de France
OS PORTGUESES E O SUS
Existia uma contenda entre Portugal e Espanha em relação à posse do Sul de Marrocos que remontava aos meados do século XV, tendo-se sucedido algumas acções de parte a parte para a conquista da supremacia na região.
Nos meados dos anos 20 desse século, Portugal empreende uma acção para se apoderar das Ilhas Canárias. O plano era não só ocupar as ilhas de Lanzarote e Fuerteventura, onde os espanhóis já estavam instalados, como também as ilhas ainda sem ocupação, caso da Grande Canária. Esta tentativa não teve sucesso, mas o infante D. Henrique tentou a via diplomática, já que o direito de posse das ilhas pertencia a Maciot de Béthencourt, primo e sucessor do seu conquistador, Jean de Béthencourt, que havia vendido esses direitos à Coroa Espanhola. Face à recusa do Rei de Castela, D. Henrique tenta o apoio do Papa, mas em vão. (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934 : 205)
A 8 de Julho do ano de 1449 o Rei de Castela concede a Juan de Guzman, Duque de Medina Sidónia, a costa entre o Cabo Aguer e o Cabo Bojador, situação que a Coroa Portuguesa contesta no Tribunal de Roma, tendo o Papa Nicolau V emitido uma bula no ano de 1454 que declara “que Ceuta e outras aquisições portuguesas, realizadas ou a realizar, nos locais da sua vizinhança, assim como a costa de África, desde os cabos Bojador e Nam até à Guiné e para lá, pertencem à coroa de Portugal”. (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934 : 206)
O facto de Espanha estar instalada nas Ilhas Canárias e a não existência de um tratado político entre os dois países que definisse as suas áreas de influência nas costas marroquinas, que seria apenas estabelecido em 18 de Setembro 1509, com a assinatura do Tratado de Sintra (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 213-220 – Extracto do Tratado de Sintra, Arquivos da Torre do Tombo, gaveta 17, maço 3, nº2), favoreceram a construção de uma fortaleza espanhola nos finais do século XV entre as cidades de Tarfaia e Sidi Ifni, promovida pelo Adelantado de Tenerife (o termo Adelantado refere-se ao título concedido aos governadores das colónias espanholas), Alonso de Lugo, chamada Santa Cruz de la Mar Pequeña, que seria seguida de uma outra em Meça, mas as pressões dos portugueses evitaram que se concretizasse. Mesmo assim, Alonso não desistiu, e, com a ajuda da tribo dos Cacimas, ocupou um povoado no local da actual cidade de Agadir, onde essa tribo estava instalada, mas os portugueses, com o apoio dos seus aliados da tribo dos Meça, malograram essa ocupação. (LOPES [1937] 1989: 28 – Carta dos habitantes de Meça a D. Manuel I, Arquivos da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, parte 1, maço 3, n.º 19)
O Sus tinha uma importância económica muito relevante. Era rico em cereais, carne, pescado, mel, cera, courama e muitos outros produtos que ali chegavam da Guiné por terra, como o ouro e os escravos. (PEREIRA 1892: 34)
A instalação dos portugueses do Sus permitia-lhes apropriar-se destes bens e, ao mesmo tempo, intermediar o comércio local com as restantes potências europeias que aí faziam comércio, cobrando-lhes taxas.
![Carte_particulière_des_côtes_de_[...]_btv1b77594627](https://historiasdeportugalemarrocos.com/wp-content/uploads/2017/11/carte_particulic3a8re_des_cc3b4tes_de_-_btv1b77594627.jpg)
Carte particulière des côtes de l’Afrique qui comprend le royaume de Maroc, 1600-1699. Bibliothèque nationale de France
A INSTALAÇÃO DOS PORTUGUESES NO SUS
Portugal cria então no ano de 1497 uma feitoria em Meça (ou Massa), na foz do rio com o mesmo nome, e, em 1505, João Lopes Sequeira, um nobre da Casa Real, construiu uma fortaleza no local da actual cidade de Agadir “com o dote de sua mulher” (LOPES [1937] 1989: 28), mas “os arsenais do reino forneceram-lhe um castelo pré-fabricado em madeira, assim como as armas e a artilharia necessária, por um valor de 347.251 reis” (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 374-377 – Alvará de D. Manuel I, Arquivos da Torre do Tombo, gaveta 15, maço 5, n.º 18).
No local já existia uma fortaleza, um provável pequeno castelo indígena, segundo Pierre de Cénival (CÉNIVAL 1934: 20), que Duarte Pacheco Pereira assinalou no Esmeraldo de Situ Orbis, ao referir que o Rei ordenou a João Lopes de Sequeira de refazer essa fortaleza sobre novas fundações, não deixando de descrever os ataques permanentes que ocorreram durante a construção:
“Mas he couza muito para notar mandar vossa alteza fazer de novo fundamento esta fortaleza por Joham Lopes de Sequeira fidalgo de vossa caza em terra de barbaros inimiguos de nossa santa fee católica honde veio tanta multidam delles ao contrariar quanta se com trabalho poderia contar; & sendo feyta aallem do mar cento & sincoenta leguoas fora de Vossos Reynos antre tanta gente contra suas vontades ella se fez por força darmas”. (PEREIRA 1892: 33)
A construção da fortaleza de Santa Cruz encontra-se descrita na Crónica de Santa Cruz do Cabo de Gué (Tradução e anotação de um texto anónimo português do século XVI), publicada por Pierre de Cénival, cujo início reza o seguinte:
“Este he o origem e começo e cabo da villa de Santa Cruz do Cabo de Gué d’Agoa de Narba.
Primeiramente, no tempo d’el-Rei Dom Manoel, que Deus tenha em gloria, foi hum homem nobre, por nome João Lopez Girão, com huas caravelas d’armada, ter ao cabo de Gué, indo a descobrir terra por aquella parte. Desembarcando em terra, achou hua grande fonte de muito boa agoa mui excellente a junto da praya, da qual fonte manavão sete ou oito fontes na praya da mesma agoa, donde vinhão a beber muitos gados de toda a sorte até camelos, o qual gado era de hum Mouro grão senhor e de todos os seus subditos, o qual se chamava Ahames Narba, pella qual cauza chamavão a fonte d’agoa de Narba, per cauza do appellido do Mouro. E vendo João Lopez Girão a fonte de tão boa agoa, fez ali assento e armou ali hum castelo de páo que levava já ordenado e feito; pos-lhe artelharia e fez logo ao deredor do castelo outro muito forte de pedra e cal, em que se meteo a fonte dentro, e com artelharia defendia aos Mouros que Ihe não impedissem a obra. E tanto que o acabou, foi-sse fazer outro castelo, sobre hua rocha que estava apartada da terra de fronte de hua villa de Mouros que se chama Tamaraque, a qual rocha a rodeava e batia o mar, a qual chamavão Bem Mirão, o qual Ihe tomarão os Mouros por treição, e com esta paixão e enfadamento se veo a Portugal a el-Rey Dom Manoel e vendeo-lhe o castelo do Cabo de Gué d’Agoa de Narba.” (CENIVAL 1934: 20-24)

Localização das fortalezas de Santa Cruz do Cabo Guer e de Bem Mirão
O início do texto da Crónica anónima levanta desde logo várias questões que merecem um comentário:
O nobre da Casa Real que D. Manuel encarrega da construção da fortaleza não se chamava João Lopes Girão, mas João Lopes Sequeira, como aliás é referido em todos os restantes textos que abordam o tema, incluindo a crónica de Damião de Góis, que refere:
“Neste mesmo ano de MDV per consentimento, & vontade del Rei fez Joam Lopez de Sequeira hua fortaleza em Guadanabar do cabo de Guer pera dentro, contra Aguiló, a que pos nome de Santa Cruz, há qual fortaleza elle depois soltou a elRei, pola não poder soster, & elRei lhe fez por isto merçê.” (GOIS, 1566-1567: I parte, fl.96)
A fonte referida na Crónica está na origem do topónimo do local, e de várias formas. Desde logo porque no século XVI a fortaleza é chamada de “Guadanabar” ou “Água de Narba” porque, conforme a própria Crónica refere, a fonte pertencia a um Mouro “grão senhor” que se chamava Ahames Narba. Muito provavelmente a existência da fonte deu o nome ao próprio local, que ainda hoje se chama Founti, onde existiu um bairro destruído pelo terramoto de 1960, e onde actualmente fica o porto da cidade de Agadir. (SANTOS, SILVA e NADIR 2007: 214)
O texto da Crónica é claro ao afirmar que “fez logo ao redor do castelo outro muito forte de pedra e cal, em que se meteu a fonte dentro”, facto que é relevante para a localização precisa da Fortaleza, já que essa fonte ainda existia antes de 1960, data do terramoto que destruiu a cidade.
James Grey Jackson refere em 1809 que “a cidade chamada pelos Portugueses Fonte, ainda se implanta na base da montanha, e as armas dessa nação ainda são visíveis num edifício erigido sobre a nascente”. (JACKSON 1809: 113-114)
Estamos em crer que o referido edifício era a Torre de Menagem do Castelo, facto documentado em várias imagens colhidas por soldados franceses no ano de 1913.

Processo de construção de fortalezas pelos portugueses
A Crónica descreve o processo de construção da fortaleza, seguindo o método que os portugueses utilizavam normalmente, ou seja, a colocação de uma estrutura pré-fabricada de madeira para defesa inicial dos homens, víveres e materiais, ao redor da qual era construída a fortificação de pedra e cal, que utilizava também materiais trazidos de Portugal, como pedra de cantaria talhada, tábuas, pregos ou cal já preparada. Esta pré-construção implicava uma normalização dos próprios projectos. A Fortaleza localizava-se o mais próximo possível do mar, que batia nos seus muros. Esta dependência do mar para defesa e abastecimentos era comum a todas as construções portuguesas e este princípio está bem espelhado numa carta de D. João III a Miguel de Arruda datada de Abril de 1541, sobre a localização da futura cidadela de Mazagão, onde o Rei dá indicações ao coordenador do projecto, lembrando-lhe que “quanto esta força mais metida na água fosse tanto mais forte e defensável será”. (MOREIRA 2001: 99)
A Crónica chama à Fortaleza “a vila de Santa Cruz do Cabo de Gué d’Agoa de Narba”, designação que adiante se esclarece ao nível da utilização do termo Vila. No texto de Damião de Góis, o nome da Fortaleza era Santa Cruz e situava-se em Guadanabar do Cabo Guer, designação que tem origem no nome Amazigh ou Berbere do Cabo Ghir, termo que surge na maioria dos textos como Cabo de Gué. Os textos Árabes da época chamam ao local Agadir Laarba, ou celeiro da quarta feira, por se realizar aí um mercado todas as quartas-feiras (LES SOURCES…,CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 243). Nos documentos franceses, o nome é Sainte-Croix du Cap de Gué ou Maison des Chrétiens (Casa dos Cristãos), em Tamazight (Língua dos Amazigh) é Tiguemmi n’Irumin (Aldeia dos Cristãos) e em Árabe Dar n’Sara ou Dar Roumiya, que significa também Casa dos Cristãos (DARTOIS, TERRIER e ROUSSAFI, (–): página electrónica citada). O texto de Diego Torres reza o seguinte sobre este assunto:
“Ele (João Lopes Sequeira) chamou-lhe Castelo de Santa Cruz, e os Mouros chamaram-lhe Arrumia, que quer dizer Casa de Cristão”. (TORRES 1636: 67)
Neste texto adoptamos a designação Santa Cruz do Cabo Guer por ser aquela que mais se aproxima do topónimo local e que é também utilizada nos documentos da época, nomeadamente por Damião de Góis.

O Rochedo do Diabo em dia de festa numa foto antiga
O texto faz referência à construção de uma segunda fortaleza:
“E tanto que o acabou, foi-se fazer outro castelo, sobre uma rocha que estava apartada da terra de fronte de uma vila de Mouros que se chama Tamaraque, (…) a qual chamavam Bem Mirão”.
Essa rocha é o conhecido Rochedo do Diabo, situado cerca de 12 quilómetros a norte de Agadir, local envolto em lendas e mistérios, como se verá, e a designação dessa fortaleza com o nome de Bem Mirão resulta da adaptação do termo Amazigh Immourane, nome da praia onde o rochedo se situa. O Castelo de Bem Mirão não é referido em mais nenhum texto, como afirma Pierre de Cénival (LES SOURCES…,CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 135).
Nos vários textos consultados o nome da fortaleza surge escrito como Bem Mirão, Ben Mirao e Bom Mirão. Adoptamos o topónimo Bem Mirão por ser o único que é escrito em documentos da época, concretamente na Crónica. Acrescente-se em relação à sua origem no Amazigh Immourane, que este pode derivar do termo Mourane, antiga divindade Amazigh do amor, ou de Amourrane, que significa resistência, ou ainda derivar do plural de Imri, que significa amante no dialecto local. (MAP 2013: página electrónica citada)

Gravura de Santa Cruz da Berbéria de 1790 (?), de Martinus Lambrechts, Museu Marítimo Nacional de Amesterdão, vendo-se a Fortaleza de Santa Cruz junto ao mar e a Casbá Oufelá no cimo do Pico
Numa carta de João Lopes Sequeira a D. Manuel, escrita num dia 23 de Maio de entre os anos de 1507 a 1512, o nobre refere-se às “suas fortalezas”, o que prova que nesse espaço de tempo, que não podemos precisar, era proprietário das duas fortalezas em Agadir. (CÉNIVAL, 1934: 24 – Carta de João Lopes Sequeira ao Rei, Arquivos da Torre do Tombo, Cartas dos Governadores de África, n.º 3)
O último aspecto a referir deste início do texto da Crónica é o da venda de Santa Cruz por João Lopes Sequeira à Coroa Portuguesa, por não ter possibilidade de a manter na sua posse. A Crónica, referindo-se ao Castelo de Bem Mirão diz “o qual Ihe tomaram os Mouros à traição, e com esta paixão e enfadamento veio a Portugal a el-Rei Dom Manoel e vendeu-lhe o Castelo do Cabo de Gué d’Agoa de Narba”.
Corria o ano de 1513:
“No dia 25 de Janeiro de 1513, em Évora, João Lopes de Sequeira, munido de uma procuração de Dona Biatriz, sua mulher, vendeu ao Rei o castelo de Santa-Cruz do Cabo de Gué, recebendo uma soma de 5.000 cruzado em dinheiro, mais 1.000.000 de reis de pensão vitalícia para si, sua mulher e um dos seus filhos. O Rei ainda deduziu a soma de 347.251 reis, valor estimado para as armas, a pólvora, a artilharia e o castelo de madeira que ele tinha recebido dos arsenais reais aquando da fundação de Santa-Cruz.” (CÉNIVAL, 1934: 22 – Acto de venda de 25 de Janeiro de 1513, Arquivos da Torre do Tombo, gaveta 15, maço 5, n.º 18)
Quando João Lopes Sequeira vendeu a fortaleza à coroa portuguesa ainda existia o castelo de madeira pré-fabricado, já que fazia parte do rol dos bens vendidos.

Gravura de Agadir de 1779, de Peter Haas, incluída na obra Efterretninger om Marokos og Fes [1779] de Georg Horst, vendo-se a Fortaleza de Santa Cruz junto ao mar e a Casbá Oufelá no cimo do Pico
A queda de Bem Mirão e a venda de Santa Cruz terão certamente relação com os cercos de 1506 e 1511, levados a cabo pela tribo Haha com o apoio do Xarife, bem como todo o clima de guerra que dominou o governo de João Lopes Sequeira entre 1505 e 1513.
O ataque de 1506 é descrito por Léon l’Africain, que refere que as tribos Haha e Souss decidiram reaver a fortaleza de Guarguessem (Santa Cruz), ocupada pelos portugueses.
Para isso contaram com o apoio de um grande exército de infantaria e cavalaria comandado por um Xarife, tendo havido grande mortandade de um lado e do outro. (LÉON L’AFRICAIN 1896:176)

Santa Cruz de Berberia (Agadir) de Adriaen Matham de 1641, Biblioteca Nacional da Austria,vendo-se a Fortaleza de Santa Cruz junto ao mar e a Casbá Oufelá no cimo do Pico
Numa carta datada de 6 de Julho de 1510, os habitantes de Meça reafirmam a sua lealdade ao Rei D. Manuel e referem que morreram 25 nobres da sua tribo e muitos mais do povo nas guerras pelos portugueses. Falam do combate que deram aos Kssima para evitar que Alonso de Lugo se instalasse em Agadir e que por isso são objeto de retaliação e de raptos por parte dessa tribo, e de Árabes e Judeus, como os Ben Zamirou. (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 240-247 – Carta dos habitantes de Meça a D. Manuel I, Arquivos da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, parte 1, maço 3, n.º 19)
Em 18 de Agosto de 1511 a Fortaleza foi cercada durante vários dias, tendo sido mortos para cima de 100 mouros (CÉNIVAL, 1934: 24 – Carta de João Lopes Sequeira ao Rei, Arquivos da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, parte 1, maço 11, n.º 105).
Estamos em crer que terá sido num destes períodos de guerra que se dá a queda de Bem Mirão, que ocorreu entre 1508 e 1512, tendo em conta o conteúdo da Carta de João Lopes Sequeira ao Rei de 23 de maio e do Acto de Venda de 25 de janeiro de 1513.

Os grandes qaids do Sul
OS SÁDIDAS
Os Sádidas ou Banu Zaidan são uma dinastia de Chorfas (Chérifes em Árabe, Chorfas em dialecto marroquino, são nobres descendentes do Profeta por via dos netos da sua filha Fátima Zahra) vindos de Yanbo na Arábia Saudita durante o século XIV, instalam-se no início do século XVI em Tagmadert, próximo da actual Zagora, no Vale do Dra, ganhando alguma notoriedade na sua luta contra os portugueses instalados em Agadir desde 1505. Nessa luta procuram unir as várias tribos cuja dispersão favorecia a presença portuguesa, nomeadamente os Haha, os Regraga e os Chiadma, alargando o âmbito da sua acção para a zona de Safi e Mogador, onde se degladiam sem grande sucesso com os Mouros de Pazes aliados dos Portugueses, comandados por Yahya ben Tafuft.
Os Sádidas estabelecem a sua capital em Tarudante, cidade que fortificam e onde concentram cada vez mais adeptos da guerra santa contra os portugueses.
A morte de Lopo Barriga e as desavenças entre Tafuft e o capitão de Safim, Nuno Fernandes de Ataíde, põe fim ao chamado Protectorado Português da Duquela e o assassinato de Tafuft em 1518, encomendado pelo Xarife Mohamed Xeque, confinam os portuguesas às suas praças fortes, garantindo a supremacia Sádida na região. (ver PAULA, Frederico Mendes, As correrias de Nuno Fernandes de Ataíde, in Histórias de Portugal em Marrocos, página electrónica, disponível em https://historiasdeportugalemarrocos.com/2017/01/04/as-correrias-de-nuno-fernandes-de-ataide/)
Em 1524 os Xarifes Sádidas conquistam Marraquexe, até então na posse do Emir Hintata Nasir ben Chentouf e no ano seguinte o Xarife Ahmed Al-Aarej proclama-se rei de Marrakech, declarando circunstancialmente a sua vassalagem ao Rei de Fez, o Oatácida Ahmed “o português”. O seu irmão, o Xarife Mohamed Xeque, mantém-se como rei do Sus, na sua capital Tarudante. No texto da Crónica de Santa Cruz os dois Xarifes são denominados como Xarife de Marraquexe e Xarife do Sus.
Durante a década de 20 do século XVI, os Sádidas entram em guerra aberta contra os Oatácidas de Fez. Começa um período de lutas e tréguas entre Oatácidas, Sádidas e Portugueses, que culminará com a conquista de Santa Cruz por Mohamed Xeque em 1541. Inicia-se uma guerra fratricida entre os dois irmãos, culminado com conquista de Marraquexe por Mohamed Xeque nesse mesmo ano, e fuga do seu irmão para o Tafilalte.
Os exércitos Sádidas vão-se reforçando cada vez mais com o apoio Turco e com renegados, e em 1548 entram em Fez, tomando definitivamente a cidade aos Oatácidas em 1549, unificando Marrocos sob o seu poder. (TERRASSE (1847) 2016: 160-167)
As várias vitórias Sádidas, concretamente a tomada de Santa Cruz em 1541 e a tomada de Fez em 1549, obrigam a um recuo estratégico dos Portugueses e ao reformular da sua política expansionista em Marrocos.
SANTA CRUZ, POSSÍVEL RECRIAÇÃO

Construção da Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer
A escolha do local para a construção da Fortaleza de Santa Cruz baseou-se em dois aspectos: o facto de poder integrar a fonte de Água de Narba no seu interior, garantindo a sua autonomia em relação aos poços situados nas suas imediações, e o facto de ter excelentes condições de acostagem de navios de grande calado, como refere o autor do Esmeraldo de Situ Orbis:
“Em baixo na Ribeira está o Castello de Santa Cruz ho qual teem a dita angra em que pode pousar qualquer naao grande em fundo limpo & boa ancoraçam em quantas braças quiserem surgir segundo a grandeza do navio.” (PEREIRA 1892: 33)
No entanto, a vulnerabilidade da localização de Santa Cruz, pelo facto de se implantar “à sombra” de um monte, o Pico, era facto conhecido da Coroa Portuguesa, como referiu o próprio Rei D. João III após a sua queda em 1541:
“O que este lugar era vos o deveis de ter sabido; e semdo asy fraco, pela maa disposição do sitio onde se fez, por não aver naquela terra outra aguoa, parecia que estava seguro por ser amtre aquella gente de que se não podia crer o gramde poder que tem de artelharia e artelheiros e pólvora e todas monições de guerra.” (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: 361 – Carta de D. João III a Cristóvão de Sousa, Arquivos da Torre do Tombo, Colecção de S. Vicente, livro 1, fl. 99-103)
Consolidação da Fortaleza de Santa Cruz do Cabo Guer
A Fortaleza de João Lopes Sequeira era muito rudimentar, tendo apenas as estruturas defensivas indispensáveis e faltando-lhe condições de armazenamento e habitabilidade, por falta de telhados das suas construções, incluindo da Igreja, conforme relata o feitor Afonso Rodrigues numa carta escrita ao Rei D. Manuel em 24 de Dezembro de 1513. Nessa carta, o feitor aponta também para um reforço geral das defesas em termos de muralhas, baluartes e cava. (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 470-476 (Carta de Afonso Rodrigues e Francisco Fernandes a D. Manuel I, Arquivos da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, parte 1, maço 14, n.º 31)
Após a sua venda à Coroa Portuguesa em 1513, Santa Cruz evoluiu de Fortaleza para Vila ou Cidadela. D. Manuel nomeia D. Francisco de Castro governador, que inicia obras de fundo, conforme relata a Crónica:
“El-Rey Dom Manoel mandou logo a Dom Francisco de Castro por capitão, com muita gente e offîciaes, para fazer no castello hua boa villa \ como fez, muito forte e com sete cubelos ao redor dos muros, em os quaes estava muita artelharia grossa e de toda a sorte”. (CENIVAL 1934: 24)
A Cidadela de Santa Cruz do Cabo Guer em detalhes das gravuras Capp de Gell Shariffi in Barbaria de Hans Staden de1557, Santa Cruz de Berberia (Agadir) de Adriaen Matham de 1641, Santa Cruz da Berbéria de Martinus Lambrechts de 1790 (?) e Agadir de Peter Haas de 1779, sendo evidente a falta de realismo e uniformidade nas suas representações
As obras levadas a cabo por D. Francisco de Castro, o primeiro capitão de Santa Cruz (1513-1517 e 1517-1521), que transformam a fortaleza numa vila, têm como objectivo o controlo do comercio na região. D. Francisco de Castro foi também um activo empreendedor de surtidas para pacificar as tribos dos arredores, fazendo pilhagens e cativos.
“Os portugueses passaram a dominar o comércio atlântico através da baía de Agadir e também o Sahariano e Sudanês, bem como da região do Sus e de Dra, cuja riqueza era inesgotável. Os portugueses compravam cera, ouro, cobre e escravos. Pela sua posição, a praça de Agadir controlava o tráfico dos mercadores europeus que frequentavam a região, forçando-os a pagar os direitos comerciais,” (SANTOS, SILVA e NADIR 2007: 110)

De Fortaleza a Vila _ construção da Cidadela de Santa Cruz do Cabo Guer
A Cidadela forma-se e reforça-se, expandindo a área do Castelo para Nascente, reforçando as suas muralhas, com a introdução de cubelos e de um alambor na frente de mar, alteada a muralha do lado de terra, cujo adarve era constituído por andaimes de madeira, construída uma barbacã e chapeada a cava.
São construídas 30 casas para acolher mercadores, com sobrados de madeira para criar “lojas” em piso inferior para armazenar mercadorias.
A execução destes trabalhos é confirmada numa outra carta de Afonso Rodrigues ao Rei D. Manuel em 11 de Setembro de 1514. (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 611-618 – Carta de Afonso Rodrigues e Francisco Fernandes a D. Manuel I, Arquivos da Torre do Tombo, Corpo Cronológico, parte 1, maço 16, n.º 11)
A capela foi ampliada verticalmente e munida de ameias para colocação de artilharia “fazendo com a torre de menagem um conjunto defensivo do lado da serra.” (SANTOS, SILVA e NADIR 2007: 128)
Dentro do Castelo situavam-se os principais equipamentos, como a Igreja Paroquial de São Salvador, o Mosteiro Franciscano de São Sebastião e o Hospital da Misericórdia.
A Crónica refere que três portas serviam a Vila, quase sempre entaipadas devido aos ataques, duas delas situadas no muro que corria ao longo da praia, a porta do Castelo e a Porta do Mar, e uma terceira na Cava, de acesso ao campo e ao mar, a Porta da Traição.
No exterior é construído um bairro indígena, a Mouraria, para acolher a tribo dos Cassimas, agora aliados dos portugueses, no local identificado como Agadir Laarba, onde se realizava já um importante mercado às quartas-feiras, como o nome indica. É construída uma ponte de madeira sobre a cava, ligando a Vila a esse Bairro, o que pressupões a existência de uma quarta porta no pano Nascente da muralha.
No tempo da capitania de D. Francisco de Castro a guarnição da Vila era de 120 cavaleiros e 600 homens de pé, espingardeiros e besteiros (CENIVAL 1934: 24-26), num total de entre 700 e 1.400 habitantes, juntando-lhes os moradores e os comerciantes.
Durante as capitanias que se seguiram, a cargo de Simão Gonçalves da Costa, António Leitão Gamboa, Luís Sacoto, Simão Gonçalves da Câmara, e Rui Dias de Aguiar, a população da praça decresceu significativamente (CORREIA 2008: 328).
A capitania de Luís Sacoto foi especialmente desastrosa, marcada por um episódio trágico em que foram mortos 51 soldados portugueses o que lhe custou o cargo de capitão da praça. Corria o ano de 1529.
Na segunda capitania de Simão Gonçalves da Costa dá-se um acontecimento que põe em causa a posse portuguesa da praça, quando, no ano de 1533, os mouros infiltraram-se no seu interior, tendo assassinado o capitão que dormia a sesta na Torre de Menagem. Valeu a reacção imediata dos artilheiros da guarnição, que provocou a fuga dos assaltantes. (SANTOS, SILVA e NADIR 2007: 174)
Reforço das defesas
Com a capitania de Luís de Loureiro (1534-1538) e a crescente ameaça dos Xarifes Sádidas, iniciam-se novas obras de fortificação, baseadas na construção de baterias, de um grande baluarte maciço para artilharia grossa e de uma açoteia pegada com a Torre de Menagem, “por onde entraram os Mouros quando tomaram a vila”. (CENIVAL 1934: 86)
A capitania de Luís de Loureiro marcou uma pausa em duas capitanias de Guterre de Monroi (1533-1534 e 1538-1541), um castelhano ao serviço da Coroa Portuguesa, que foi o último governador da Praça. Neste período a população volta a aumentar para os níveis que já tivera, preparando-se para resistir à crescente ameaça dos Sádidas.
Foram conseguidas tréguas circunstanciais com o Xarife, mais preocupado em tomar Marraquexe aos Hintata e Fez aos Oatácidas, antes de se concentrar na expulsão definitiva dos portugueses de Santa Cruz.
Os esquemas de evolução da Vila Acastelada de Santa Cruz anteriormente apresentados são uma simulação aproximada, com contributos nas informações constantes nos trabalhos de Pierre de Cénival (CENIVAL, 1934: obra citada) (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: obra citada), de Robert Ricard (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: obra citada), de Santos, Silva e Nadir (SANTOS, SILVA e NADIR, 2007: 128, 130, 134 e 161), nas gravuras antigas existentes e nas fotos da primeira metade do século passado (DARTOIS, TERRIER e ROUSSAFI, (–): página electrónica citada e AGADIR D’ANTAN: página electrónica citada), já que o bairro de Founti foi totalmente arrasado pelo o terramoto de 1960, morrendo 15.000 dos seus habitantes e desaparecendo os vestígios da Cidadela de Santa Cruz, pelo que hoje em dia não é possível recolher essas informações.
O carácter experimental destes esquemas é inevitável, por falta de testemunhos edificados no local, pelas contradições existentes nos documentos coevos e pela falta de rigor dos elementos gráficos conhecidos.
SANTA CRUZ, INTERPRETAÇÃO DE IMAGENS

Identificação de elementos da Cidadela de Santa Cruz do Cabo Guer sobre uma foto de 1913 da Colecção Kaladgew
A implantação da Cidadela no local apontado resulta do facto de existir documentação que localiza com precisão a fonte, que a Crónica afirma ter sido colocada no interior da primitiva fortaleza construída por João Lopes Sequeira. Em algumas fotos é localizada a fonte no contexto do Bairro de Founti, permitindo determinar onde seria localizado o Castelo.

Identificação de elementos do Castelo de Santa Cruz do Cabo Guer sobre uma foto do início do século passado da Colecção Ballato
Sintetizamos aqui os principais elementos da Vila Acastelada:
Fortaleza ou Castelo, elemento inicial da fortificação, situada do seu lado Sudoeste, de forma quadrangular, possivelmente com baluartes nos seus cantos. A Fortaleza continha no seu interior uma Torre de Menagem e os três principais equipamentos _ a Igreja Paroquial de São Salvador (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 473), com cobertura de açoteia guarnecida de ameias e torre para colocação de artilharia do lado da serra (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 616), o Mosteiro Franciscano de São Sebastião e o Hospital da Misericórdia (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 375). A Torre de Menagem e a Torre do Sino, situada sobre a Igreja, reforçavam a defesa do lado do sertão (Norte). Junto ao Castelo ficava o porto ou angra (CENIVAL, 1934: 58). O Castelo tinha uma Couraça, “a torre onde batia o mar” (CENIVAL 1934: 64).
O interior do Castelo, vendo-se a Torre de Menagem, local da Fonte (James Grey Jackson refere em 1809 que “a cidade chamada pelos Portugueses Fonte, ainda se implanta na base da montanha, e as armas dessa nação ainda são visíveis num edifício erigido sobre a nascente”), numa foto da Colecção Pierre Perrot
Outros equipamentos existiriam para além dos referidos, como aquartelamentos para as tropas, estábulos para os cavalos e depósitos de armas.
Muralha encerrando a Vila e o Castelo, constituindo um rectângulo alongado paralelo ao mar, apresentando desse lado um forte alambor (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 474), guarnecida de sete baluartes ou cubelos, a saber _ de Tameráque “o que estava mais perto do Castelo” (CENIVAL, 1934: 66), conjunto Torre de Menagem/Torre do Sino ou “cubelinho sobre a Igreja do Castelo” (CENIVAL, 1934: 94), do Facho (CENIVAL, 1934: 66) e de São Simão (CENIVAL, 1934: 98), no pano Norte, e da Banda da Mouraria (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 616) (o baluarte maciço ainda existente nos meados do século passado), debaixo dos fornos de cal (CENIVAL 1934: 120), do Castelo e Couraça, no pano Sul.

Vista aérea com identificação dos elementos da Cidadela
Quatro portas davam acesso ao interior, apesar de se encontrarem entaipadas a maior parte do tempo _ do Castelo “na ponte por onde entravam no castelo” (CENIVAL 1934: 58) e do Mar (CENIVAL 1934: 112), no pano Sul, da Traição “do castelo a qual era na cava por onde iam à praia e ao campo” (CENIVAL 1934: 56), no pano Poente, e da Mouraria, no pano Nascente, esta última de acesso ao Bairro da Mouraria através de uma ponte de madeira (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: 567).
Cava ou Fosso seco, chapeada, envolvendo a cerca dos seus lados de contacto com a terra. (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 474)
Tranqueiras ou paliçadas, que constituíam uma primeira defesa de carácter precário: “Recolheu sua gente depressa às tranqueiras porque os mouros eram muitos.” (CENIVAL 1934: 84)
No interior da Vila existia uma feitoria (LES SOURCES…, CÉNIVAL, Pierre de, 1934: 616), para apoio à actividade comercial.

Imagem actual dos vestígios do Bairro de Founti
Também são de difícil interpretação os vestígios que ainda hoje existem no local. A falta de informação disponível que resulte de intervenções arqueológicas não permite uma identificação, no caso concreto, com elementos originais da Cidadela de Santa Cruz do Cabo Guer. Percorrendo a via que se encontra a Sul do local, onde na altura se situava a linha de costa, é possível verificar a existência de elementos de alvenaria de pedra, alguns com características que levam a crer tratar-se de restos de construções de apreciável solidez.
A QUEDA DE SANTA CRUZ

Capp de Gell Shariffi in Barbaria (Santa Cruz do Cabo Guer) de Hans Staden, publicada na obra Duas Viagens ao Brasil, [1557] (2007), L&PM Editores, Porto Alegre (Nota: a gravura encontra-se representada com o mar do lado direito,quando deveria estar do lado esquerdo)
Nos anos 30 do século XVI os Xerifes Sádidas já dominam Marraquexe e a Duquela, e estão em guerra aberta com o Rei Oatácida de Fez.
A diplomacia portuguesa tenta uma saída para a crise militar, mas apenas consegue adiar o inevitável. Por um lado, os portugueses tentam tréguas com os Xerifes para reforçar militarmente Santa Cruz, Safim e Azamor, tréguas que Luís de Loureiro assina por um período de seis anos.
Por outro lado, negoceiam um acordo com o Rei Oatácida para evitar a queda de Fez e o inevitável controlo de Marrocos pelos Sádidas. Para o Rei de Fez, a paz com Portugal era fundamental para se concentrar na guerra contra os Xarifes.
No ano de 1538 é assinado um Tratado de Paz entre D. João Coutinho, em representação de D. João III, e Mulei Ibrahim, representando Ahmed el-Wattassi, que estabelece os limites territoriais das Praças, determina que o comércio será livre entre as duas partes e que nenhuma delas acolherá navios estrangeiros nos seus portos. (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: 158-165)
Mas o Xarife Mohamed Xeque prepara a tomada de Santa Cruz, fazendo-se valer do apoio militar Turco e de renegados, e do apoio político e técnico dos mercadores estrangeiros, que o apoiavam no quadro da sua polícia de abertura económica ao comércio Atlântico. As tréguas assinadas com Luís de Loureiro não seriam renovadas. (CENIVAL 1934: 84-86)
No dia 26 de Setembro de 1540 começa a construção da Casbá no Pico, prenúncio da decisão Sádida de expulsar os portugueses do local. As obras ficam terminadas em dois meses e é colocada forte artilharia. As forças do Xarife posicionam-se nas encostas do Pico, de onde massacram as posições portuguesas com artilharia pesada, incluindo os célebres canhões turcos “maimuna”.

Esta gravura retrata a tomada da Cidadela de Santa Cruz do Cabo Guer pelo Xerife do Suss Mohammed ech-Cheik es-Saadi em 1541. É interessante observar a localização da Cidadela portuguesa junto ao mar (referenciada como Cap de Gell) e da Kasbah (hoje designada Kasba d’Agadir Ighir ou simplesmente Agadir Oufella) no cimo da colina do Pico. A gravura colorida, desenhada por Rui Carita, é uma versão recente que introduz uma legenda e corrige a orientação da gravura original de Hans Staden de 1557, publicada na obra Duas Viagens ao Brasil
“Ho Xarife rrei de Çuz mamdou seu filho Mollei Hamete com muita parte de sua jemte a fazer húa vila no Pico com a qual senhoreava o Gabo de Gue, a qual começou edificar a xxvi de setembro e foy acabada com húa torre mui forte em menos de dous meses, na quall fez muitas albaradas e bastiães muy fortes e lhe asemtou coremta ou cimquoemta peças d’artelharia grosas e meudas, com as quais davão demtro da vila e a combatião todolos dias”. (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: 341 – Relatório de D. Rodrigo de Castro sobre a perda de Santa Cruz do Cabo de Gué, Arquivos da Torre do Tombo, gaveta 18, maço 5, n.º 12)
A Vila esteve sob cerco durante seis meses, sujeita a bombardeamentos constantes (sete meses, se contarmos com os 22 dias de intensos ataques que culminaram com a sua conquista).
As forças em presença eram extremamente desiguais. O Xarife tinha um exército de mais de 100.000 homens, com muitos turcos e arrenegados:
“A multidâo de gente que estava sobre a vila naquelle cerquo, que passavão de vinte mil de cavalo, e quarenta mil espingardeiros e doze mil bésteiros, e mais sincoenta mil Budreiros, que erão os trabalhadores que trazião o entuIho com que entulharão a cava e cavavão; estes todos asima ditos vinhão por rol escrittos, afora grande multidão d’elles que vinhão fora de rol a ganhar alma, por fazer gazua a matar Cristãos, que até molheres e moços vinhão a isto, e ainda mal, porque tãobem fizerão a gazua tanto a sua vontade, como fizerão na tomada da villa”. (CENIVAL 1934: 96 e 98)
No Relatório de D. Rodrigo de Castro sobre a perda de Santa Cruz do Cabo de Gué (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: 340-343 – Relatório de D. Rodrigo de Castro sobre a perda de Santa Cruz do Cabo de Gué, Arquivos da Torre do Tombo, gaveta 18, maço 5, n.º 12), e numa carta de D. João III a Cristóvão de Sousa, Embaixador português na Santa Sé (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: 356-362 – Carta de D. João III a Cristóvão de Sousa, Arquivos da Torre do Tombo, Colecção de S. Vicente, livro 1, fl. 99-103), são descritos detalhes da conquista de Santa Cruz.
Gravura de Santa Cruz do Cabo de Gué de Hans Staden, (1525-1576?), in Verdadeira História e Descrição de um País na América, cujos habitantes são Canibais Selvagens, Nus e Sem Deus (Waerachtige Historie en beschrijvinge eens Landts in America gheleghen, wiens inwoonders Wilt, Naect, seer godtloos ende wreede Menschen eeters zijn) (1595), Biblioteca Nacional dos Países Baixos
A artilharia grossa do Xarife posicionada no Pico faz ruir a muralha em vários troços e três grandes explosões acontecem no interior da Vila. A praça foi tomada de assalto, tendo os assaltantes conseguido escalar a Torre de Menagem e aceder à sua açoteia.
A carnificina foi tal, que “corria d’arredor do muro o samgue como emxuro que vinha ter ao mar (…) Foi tão grande a matança que a artelharia nelles fazia e espingardas e bêstas e lanças e alcanzias que os asavão, que foi tanto o sangue que correo pela cava atopida que passou à praya e a mare estava cheia que andava a agoa vermelha ao redor do castello”. (CENIVAL 1934: 106 e 108)
Na batalha por Santa Cruz participam militares e moradores, entre os quais muitas mulheres “que morreram pelejando, e hua com a cruz amdava dizendo que morresem pela fe de Cristo” (LES SOURCES…, RICARD, Robert, 1948: 343).
Alguns moradores atiraram-se ao mar, para serem resgatados por dois navios ancorados ao largo. Muitos deles morreram afogados pelo estado de bravura do mar, outros mortos pelos Mouros:
“Morrerião na peleja, e na tomada da villa e no mar, como mil pessoas, homens, molheres, moços, moças, meninos, meninas, grandes e pequenos, porque quando se lansarão ao mar os que fizerão perder a vila, lançarão os Mouros as zambras que já atras disse, matando os Cristãos no mar.” (CENIVAL 1934: 144)
No dia 12 de Março de 1541 a praça é ocupada, após um ataque final cerrado de 22 dias.
OS CATIVOS
Como vimos, dos cerca de 1.600 portugueses que vivam em Santa Cruz, 1.000 foram mortos e 600 feitos prisioneiros, entre os quais o governador, D. Guterre de Monroi e os seus filhos. Os sobreviventes portugueses que conseguiram fugir para os barcos foram entre 50 e 60.
O destino dos 600 prisioneiros foi a cidade de Tarudante, onde estiveram encarcerados durante alguns anos. O último resgate de prisioneiros de Santa Cruz deu-se cinco anos após a conquista, no qual se incluiu o do autor da Crónica, conforme o mesmo relata:
“Enquanto ao que conto aserqua do cativeiro, tãobem passa assy, porque tãobem fui cativo, onde estive sinquo annos cativo, em Tarudante, reino de Sus, e vi passar tudo, porque eu vim do cativeiro no deradeiro resgate que la se fez, que fez Pero Fernandez, irmão da Sancta Mizericordia.“ (CENIVAL 1934: 158)
Alguns foram transferidos para Marraquexe, caso do Governador da praça e sua filha Dona Mécia.
D. Guterres estava encarcerado nas masmorras em Marraquexe e o Xarife foi ter com ele e libertou-o. Propôs-lhe ficar com ele como seu conselheiro, dando-lhe metade das suas rendas e permitindo-lhe construir uma igreja e mandar vir religiosos. D. Guterres recusou a proposta e o Xarife entregou-lhe os 12.000 cruzados que a Coroa Portuguesa tinha enviado para o resgatar. Ainda “ordenou de o mandar dar hua negra e hum negro que forão seus e cativarão com elle, e deu-lhe dous moços seus e hum homen seu e hua fermoza azemela carregada de boas peças e riquas e hum fermozo cavalo muy bem enyaezado e dinheiro. (CENIVAL 1934: 152 e 154)
O autor da Crónica comenta este facto da seguinte forma:
“Esta fineza fes este rey mouro, a qual ainda não ouvy que rey mouro outra tal fizesse em algum tempo, nem acontesesse outra tal como esta, que foi grande liberalidade para rey mouro ha hum Cristão”. (CENIVAL 1934: 154)
É indiscutível o interesse que os Sádidas tinham na angariação de renegados para as suas fileiras, os quais constituíam um grupo que lhes traziam inúmeras vantagens, não só em termos de conhecimentos, como de lealdade, pelo seu afastamento em relação às quezílias locais.
A sua filha, Dona Mecia, cujo marido tinha sido morto durante a o cerco, acabou por se casar com Mohamed Xeque, morrendo após dar à luz um filho seu, supostamente envenenada pelas outras mulheres do Xarife. A Crónica relata assim o facto:
“Fes-se moura por cauza que o demonio ordenou. Dona Mecia emprenhou e pario hua filha e do dia que naseo a oito dias morreo, e Dona Mecia da morte da filha a oito dias morreo. Dezião que mourera de feitiços que as outras molheres lhe fizerão pera a matarem, pello muito que el-Rey Ihe queria, e se esquecia d’ellas.” (CENIVAL 1934: 138 e 140)
O PÓS SANTA CRUZ
Planta da Cidadela de Mazagão de 1611 in Descrição e plantas da costa, dos castelos e fortalezas, desde o reino do Algarve até Cascais, da ilha Terceira, da praça de Mazagão, da ilha de Santa Helena, da fortaleza da Ponta do Palmar na entrada do rio de Goa, da cidade de Argel e de Larache, Casa de Cadaval, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
A queda de Santa Cruz desequilibrou a estrutura da rede de praças fortes que se desenvolvia desde Ceuta até ao Cabo Guer, e exigiu a sua reformulação, à luz de uma nova realidade e estratégia.
A dispersão das praças portuguesas em várias praças de média dimensão é alterada para a concentração em apenas três praças de grande dimensão, evacuando-se Safim e Azamor em 1542 e construída uma super-fortaleza em Mazagão, que concentra todas as defesas no Sul. Oito anos depois são abandonadas Arzila e Alcácer-Ceguer, ficando a presença no Norte reduzida às praças de Ceuta e Tânger.
A queda de Santa Cruz veio demonstrar que uma nova época se iniciara, com a ascensão da dinastia Sádida com o apoio dos Turco, que culminaria com a unificação de Marrocos sob o seu poder.
O autor da Crónica tem uma opinião curiosa, ao considerar Santa Cruz como a “chave de África” e a sua perda como a perda da própria África:
“Tolhia aly grandes males e temian-a muito, porque emquanto ela estava por Cristãos esteve Africa em pé como chave d’Africa que ella era, e como acabou, acabou-sse Africa, como se vê, e tudo se perdeo com a perdição d’ella; e testemunha d’isto, do dia da sua perdição a sinco meses, largarão Çafîm e Azamor e Alcasere Seger, e d’ahy a sinquo annos largarão Arzila, e nâo fîcou naquella mais que Mazagâo à parte de Marroquos, e na de Fes, Seta e Tangere. Por esta rezão se vê a verdade da vila de Santa Crus do Cabo de Gé d’Agoa de Narba ser a chave d’Africa e porta d’ella. (CENIVAL 1934: 156)
Uma correcção à citação anterior, já que, conforme foi anteriormente referido, Alcácer Ceguer é evacuada na mesma data que Arzila, ou seja, em 1550, oito anos após o abandono de Safim e Azamor.
SIDI BOUKNADEL

O morábito de Sidi Bouknadel
Sidi Bouknadel, o Santo das Candeias, é o protector dos pescadores e mareantes de Agadir.
Reza a lenda que um pescador de nome Awragh, homem piedoso e temente a Deus, não aceitando que os seus vizinhos se aproveitassem da desgraça alheia, entrou em rotura com eles. Sendo a navegação no local particularmente perigosa devido às correntes e aos rochedos, os habitantes da aldeia roubavam as mercadorias dos navios que naufragavam e matavam os sobreviventes para que não houvessem testemunhas do seu crime. Awragh socorria os náufragos e criticava publicamente o comportamento dos seus vizinhos. De tal forma os criticou, que uma noite, durante uma pescaria, lançaram-no ao mar. Mas Awragh não morreu e voltou. E a partir deste acontecimento tornou-se asceta, passando o tempo isolado ou a rezar na mesquita. Nas noites de tempestade subia ao cume do monte Agadir Oufella, o futuro Pico dos portugueses, e acendia um fogo que durava até o dia nascer, evitando que sucedessem mais naufrágios. Nunca ninguém conseguiu apagar esse fogo e nunca ninguém soube explicar como Awragh o alimentava, sem existir no local lenha suficiente para tal.
Muitos dos seus vizinhos seguiram-lhe o exemplo e começaram também a acender fogueiras nas noites de tempestade. E com o passar dos tempos começaram a afluir à aldeia pessoas agradecidas pelo facto de os seus habitantes salvarem tantas vidas com os seus fogos. Traziam ofertas e mercadorias, e a prosperidade instalou-se na comunidade.
Após a sua morte, Awragh passou a ser venerado. Construíram-lhe um mausoléu e chamaram-lhe Sidi Bouknadel, o Santo das Candeias. Na aldeia foi construído um farol para proteger a navegação. Todos os anos um carneiro é sacrificado em seu nome, ou um boi em anos de abundância, um tecido novo é colocado sobre o seu túmulo e uma grande festa é organizada. (TERRIER –: página electrónica citada)
Esta história de Sidi Bouknadel tem um aspecto interessante que é o de testemunhar a falta de madeira para lenha, que era um dos problemas que a guarnição portuguesa sentia no seu dia-a-dia.
BEM MIRÃO

O Rochedo do Diabo, local onde se situava a Fortaleza de Bem Mirão
Sobre Bem Mirão pouco se sabe. Não temos informações sobre a sua construção, guarnição, meios de que dispunha ou eventos ocorridos durante o seu tempo de vida. Podemos apenas conjeturar, com base na própria observação do local.
A construção desta fortaleza levanta alguma perplexidade, pelas condições deficientes da sua localização e pela eficácia duvidosa que teria no quadro da pacificação da população envolvente e de eventuais benefícios que traria, e que justificariam o seu investimento.


Localização dos vestígios da Fortaleza de Bem Mirão em fotografia aérea
A vista aérea indicia um perímetro de forma quadrangular com cerca de 35 metros de lado, implantado no extremo Poente do Rochedo do Diabo, observando-se vestígios de uma parede do lado Nascente, que liga o rochedo à terra na baixa mar, ligada um pequeno troço de outra do lado Sul. Na parede Nascente é notório o local da antiga porta de entrada, patente na pedra de soleira existente. Muito provavelmente não existiriam paredes na totalidade do perímetro, aproveitando a o declive acentuado da falésia que constitui ela própria uma muralha. Não se observam restos de qualquer edificação no seu interior, mas existiria sem dúvida um edifício com função de aquartelamento e armazém de víveres e munições.
Um facto curioso é o da métrica dos vestígios, já que era prática da época a construção de fortalezas normalizadas. O Castelo de Aguz tem precisamente os mesmos 35 metros de lado, o mesmo sucedendo com o antigo Castelo Real de São Jorge de Mazagão, cuja cisterna tem 34 metros de largura, significando que, contando com a espessura das paredes terá também numa largura próxima dos 35 metros.

Imagens dos vestígios da Fortaleza de Bem Mirão
Omar Hamouche, membro do Conselho Comunal de Tamraght, refere que o forte português estava equipado de canhões e armas de fogo para se defender da população local, que apoiava a guerra travada pelos Sádidas. (LIBÉRATION 2014: página electrónica citada)
Ahmed Saber, antigo reitor da Faculdade de Letras de Agadir, afirma que o Moussem de Immourane, que se realiza anualmente, marca a celebração pelas tribos locais da vitória sobre a ocupação portuguesa, “no seguimento de uma série de batalhas que se desenrolaram entre 1505 e 1506” (LIBÉRATION 2014: página electrónica citada). Na opinião de Saber, a presença portuguesa no Rochedo do Diabo teria sido de apenas um ano, o que contraria o conteúdo da já referida Carta de João Lopes Sequeira a D. Manuel, escrita entre 1507 e 1512 (CÉNIVAL 1934: 24 – Carta de João Lopes Sequeira ao Rei, Arquivos da Torre do Tombo, Cartas dos Governadores de África, n.º 3), na qual lhe fala das “suas fortalezas”. De acordo com esta carta, a vida de Bem Mirão em mãos portuguesas teria sido de entre dois a sete anos.
O MOUSSEM DE IMMOURANE

A praia de Imourane durante o moussem. foto Michel Terrier
Um Moussem é uma festa regional anual com uma componente pagã ligada à fertilidade e aos ciclos da agricultura, que associa uma celebração religiosa de um santo adorado localmente.
O Moussem de Immourane tem uma componente profana bastante interessante. Reza a lenda do Rochedo do Diabo que as raparigas virgens que o visitavam, ao aproximarem-se de um buraco existente na sua superfície, uma espécie de poço que comunica com o mar, eram atraídas de forma irresistível para o seu interior, o que as impelia a atirarem-se à água. O senso comum afirma que a realidade é que essas raparigas se suicidavam por ordem do diabo.
A lenda foi interiorizada pela sociedade local e deu origem a um costume, segundo o qual as virgens que forem colocadas dentro do buraco e esperarem que sete vagas passem sob os seus pés, encontrarão marido e terão felicidade e fertilidade na sua vida conjugal. São os próprios pais que levam as filhas em idade de casar ao chamado “buraco mágico” e as suspendem, esperando que as sete vagas passem sob os seus pés. Prática perigosa, já que muitos deles, por pudor, evitam os períodos em que há gente por perto, inviabilizando uma eventual ajuda em caso de acidente, o que acontece com alguma frequência.

O buraco mágico do Rochedo. foto Michel Terrier
Michel Terrier, no seu Blog d’Agadir, recolheu o testemunho de duas mulheres que descrevem esta prática:
“Majda Saber explica que desde há muito tempo, as mulheres tinham por hábito levar as suas filhas em idade de se casarem a esta ilhota. Vindo cedo de manhã e longe dos olhares, as mães escoltavam as suas filhas até um pequeno buraco situado num rochedo desta ilhota. O ritual era simples e ao mesmo tempo perigoso. Duas mulheres seguravam firmemente a rapariga pelos ombros enquanto ela era exposta à força das vagas desfeitas que saíam pelo buraco. Fadma, uma sexagenária, refere que as duas mulheres deviam segurar a rapariga com grande força para que ela não escorregasse pelo buraco. E era então que a rapariga expunha o seu corpo a sete vagas sucessivas sem falar nem se voltar. O resultado é garantido: várias raparigas casaram-se directamente após cumprirem este ritual. Porquê sete vagas? A pergunta parece não ter resposta e é assim porque simplesmente assim faziam os nossos antepassados. (TERRIER 2013: página electrónica citada)
O moussem, que se realiza no início de Setembro, integra-se no espírito dos grandes moussems do Souss marroquino, que celebram o final do ciclo anual da produção agrícola, afinal uma festa da fertilidade, na qual participam os membros das tribos vizinhas.

Os restos de muralha existentes e a face Norte do Rochedo do Diabo
Tradicionalmente, o carácter profano das festas ultrapassava o simples conceito de celebração do ciclo da natureza, cumprindo um papel social importante, já que “eram uma ocasião de reconciliação entre as tribos e ofereciam um espaço de trocas e de encontros entre os jovens das diferentes aldeias, que frequentemente selavam casamentos no final desta manifestação.” (MAP 2013: página electrónica citada)
A festa tem também um carácter religioso e inclui uma romaria ao mausoléu de Sidi Mohamed Cheikh Ait Yazza Ouihda Albakri, onde um carneiro é sacrificado e tem lugar uma vigília.
Mas o ponto alto do moussem é sem dúvida alguma o ritual que continua a atrair dezenas de raparigas casamenteiras ao buraco mágico. Cumprindo a tradição ancestral, essas raparigas, suspensas no seu interior, esperam que as sete vagas passem sob os seus pés, envolvendo-as numa nuvem de espuma e água pulverizada. Após este banho de frescura, são içadas e estão prontas para o esperado noivado.
CONCLUSÃO

Cronologia da ocupação da costa de Marrocos pelos portugueses
A ocupação da costa Marroquina por Portugal concretizou-se através de vários tipos de estruturas construídas, fosse a própria ocupação e fortificação de cidades existentes, caso de Ceuta, Alcácer Ceguer, Arzila, Tânger, Safim e Azamor, fosse a construção de fortalezas isoladas, funcionando como estruturas satélites das praças-fortes. A política de controlo o território com fortalezas isoladas revelou-se um verdadeiro desastre, já que, das que foram construídas, apenas demonstraram viabilidade as duas que evoluíram para cidadelas, Santa Cruz do Cabo Guer e o Castelo Real de São Jorge de Mazagão. As outras três, a Fortaleza de Bem Mirão, o Castelo Real de Mogador e o Castelo de Aguz, sobreviveram em mãos Portuguesas apenas uns escassos anos, pelo facto de não terem criado os necessários meios de relacionamento com o território envolvente, vivendo isoladas e totalmente dependentes dos abastecimentos do exterior.
BIBLIOGRAFIA
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MOREIRA, Rafael (2001). A construção de Mazagão. Cartas inéditas 1541-1542. Lisboa: IPPAR/CPML
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Li com gosto, o artigo que aprofunda os anteriores publicados, Obrigado
Obrigado. Grande abraço
Assalamu Alaikum
Cumprimento e felicito-o pela sua fidelidade e persistência na continuidade deste precioso trabalho .
Eu ainda por aqui ando porém com muito sofrimento e limitações devido à idade e falta de saúde e por desgostos profundos .
Tudo na vida nos vai fugindo quando se chega a este meu patamar perto do fim.
Mas ainda me congratulo pela sua fidelidade e conhecimento e sabedoria de alta competência e dedicação e de divulgação de questóes da nossa História tão mal conhecidas .
Marrocos e o Al Andaluz, minhas paixões !
Desejo-lhe as maiores felicidades , saúde e sucessos contínuos .
Saudações amigas …..de há tanto tempo !
Isabel Falcão / imfalcao@sapo.pt
Wa Salam
Muito obrigado e felicidades