
O Guadiana visto de Juromenha
Nos meados do século XII o Gharb al-Andalus vivia tempos conturbados. A ameaça do Reino de Portugal sobre os territórios muçulmanos era cada vez maior. Afonso Henriques conseguira fazer descer a fronteira para o Vale do Tejo. Transferira a sua base de operações para Coimbra, onde procurava granjear o apoio dos moçárabes e fazer no Alentejo uma guerra de desgaste com os seus cavaleiros-vilãos.
Do lado dos muçulmanos a unidade era difícil de alcançar, já que os recém-chegados almóadas enfrentavam bolsas de resistência almorávida e de reinos de taifas que se recusavam a aceitar a sua soberania, obrigando a uma constante dispersão de forças para garantir a unidade territorial do al-Andalus.
Os próprios reinos cristãos disputavam entre si os territórios conquistados aos muçulmanos, o que os colocava frequentemente em guerra aberta uns com os outros.
A guerra entre cristãos e muçulmanos tinha assim contornos que iam muito para além do campo religioso e cultural, e que, em termos estratégicos, ideológicos e mesmo espirituais, dava origem a alianças aparentemente pouco lógicas, mas facilmente explicáveis, como a que uniu em determinado momento os muridinos (movimento islâmico sufi do Gharb al-Andalus, que professava os ideais da cavalaria espiritual) de Ibn Qasi e os templários de Afonso Henriques ou a que uniu os almóadas de Abu Yaqub Yussul Al-Mansur ao Reino de Leão de Fernando “o Baboso”.
O Alentejo e a Extremadura Espanhola estavam no centro da disputa pelos territórios de fronteira, e neste contexto surge uma figura controversa e pouco conhecida, que foi determinante nos conflitos que ocorreram neste período, concretamente entre os anos 1165 e 1176, de nome Giraldo, conhecido como O Sem Pavor.

Marraquexe
Breve enquadramento histórico
Após a queda do Califado de Córdova em 1031, o al-Andalus fracciona-se em reinos independentes, os Reinos de Taifas (do árabe Muluk at-Tawaif ou Reinos Fraccionados). A pressão que o avanço dos cristãos se faz sentir nessa altura, aliada ao facto de os exércitos muçulmanos se encontrarem dispersos nesses vários reinos, origina um pedido de auxílio a uma dinastia berbere emergente em Marrocos, os almorávidas, que invadem a Península e unificam o al-Andalus, pondo termo aos reinos de taifas. Isto passou-se por volta do ano 1091.
Mas a ocupação almorávida vem criar conflitos na sociedade multi-étnica e multi-cultural andalusina, tradicionalmente tolerante e aberta, que vivia no respeito pelos direitos das várias comunidades. Iniciam-se revoltas no seio dos moçárabes (do árabe musta’rib, ou arabizado, nome dado aos cristãos arabizados) e muladis (ou muwallad, renascidos, era o nome dado aos cristãos convertidos ao islão), em resposta à intolerância do poder dos alfaquís (teólogos islâmicos).
A derrota dos almorávidas em 1139 na batalha de Ourique contra Afonso Henriques e as revoltas que estalam no al-Andalus têm resultado um novo fracionamento, que institui em 1144 os Segundos Reinos de Taifas, cuja existência seria breve.
Em 1147 os reis de taifas pedem de novo auxílio a Marrocos contra os ataques dos cristãos, desta vez a uma nova dinastia berbere que emergia na altura, os almóadas. A história repete-se. Os almóadas invadem a Península, unificam-na e põem termo aos segundos reinos de taifas.
As segundas taifas marcam o momento em que, de acordo com vários autores, a formação da identidade de Portugal se assume na sua plenitude, com a aliança firmada entre Afonso Henriques e o movimento muridino de Ibn Qasi, uma aliança estratégica contra o Reino de Leão e o poder almóada, que também se tornam aliados.
Mas esse pacto não é apenas um pacto estratégico, mas também ideológico, se assim lhe quisermos chamar. Defensor do misticismo sufi e dos ideais da cavalaria espiritual, Ibn Qasi sela um pacto com Afonso Henriques, cujas ligações aos ideais da cavalaria espiritual são por demais conhecidos, concretamente aos templários, que constituíam a principal força de ocupação dos territórios da “frente”.

Documento de doação do Castelo de Soure aos Templários
Afonso Henriques assume-se como um Irmão Templário. No documento de confirmação da doação do Castelo de Soure à Ordem afirma “Dou-vos e concedo-vos o tal Castelo com todos seus foros que são e forem para que vós o tenhais firmemente, e todos os vossos sucessores para sempre, e esta doação faço, não por mando ou persuasão de alguém, mas por amor de Deus, e por remedio da minha alma, e de meus Pais, e pelo cordial amor que vos tenho por e porque em a vossa irmandade e em todas vossas boas obras sou irmão (…) Eu o Infante D. Afonso, com minha própria mão roboro esta Carta”. (AZEVEDO 1958: DMP, DR I, doc. 96)
Mas o maior indício da confissão Templária de Afonso Henriques é sem dúvida o carácter nobre dos seus actos. “A verdade é que o primeiro rei de Portugal, se bem que grande conquistador de terras muçulmanas, foi simultaneamente um inegável protector dos direitos das minorias mouras. Talvez a essa tolerância do primeiro rei não seja alheio o facto de ter havido de mulher moura um filho bastardo. A aliança entre Ibn Qasi e Afonso Henriques só pode, assim, entender-se, em todo o seu verdadeiro alcance, com recurso às ideias sufis daquele e aos ideais templários deste. Tal pacto não pode ser levado à conta de mero oportunismo.” (ALVES 2007: 74)
Sobre a importância do pacto entre Ibn Qasi e Afonso Henriques escreveu Adalberto Alves “O pacto simbólico que então faz com D. Afonso Henriques sela o ideal sinárquico que une a cavalaria templária à cavalaria islâmica muridínica, afinal uma convergente cavalaria espiritual. É esse arco voltaico de natureza iniciática que liberta a sinergia donde Portugal virá a brotar”. (ALVES 2007: 75)
Garcia Domingues também se refere ao pacto entre Ibn Qasi e Afonso Henriques contra os almóadas, afirmando que “desta forma se vê, que a alma destes últimos muçulmanos se dividia já entre os deveres de uma fé confusa e discutida, embora ainda cheia de energias e o sentimento de uma solidariedade peninsular que se iria afirmando.” (DOMINGUES 2010: 219)
A partir de 1184 iniciam-se as grandes ofensivas do almóada Yaqub al-Mansur, que reconquista algumas praças perdidas pelos almorávidas após a derrota na batalha de Ourique de 1139, sendo apenas travado em Tomar pelos templários de Gualdim Pais no ano de 1190. A fronteira não mais subiria acima do Vale do Tejo.
A batalha de Ourique teve uma importância decisiva para a estratégia de Afonso Henriques, que dois anos depois transfere a sua base de operações para Coimbra, reforçando consideravelmente o seu poder e posicionando-se de forma mais eficaz para a conquista do Sul. Com esta transferência do poder de Guimarães para Coimbra, Afonso Henriques “mata vários coelhos”, ao afastar-se da nobreza do Norte, libertando-se do espartilho que constituía política e ideologicamente, e estabelecendo novos laços com os moçárabes, granjeando apoios nas áreas conquistadas, selando pactos de amizade com os cavaleiros-vilãos e abrindo a mentalidade vigente na sociedade portuguesa, ao incorporar os valores culturais e científicos do Sul, mais avançados e desenvolvidos.
Trabalhos agrícolas. Ilustração do manuscrito Apocalipse do Lorvão (1189)
Para além disso, Afonso Henriques percebe que o impasse em que os territórios da zona de fronteira se encontram, com conquistas e derrotas de lado a lado, como por exemplo em Évora e Beja em 1159, exige um novo tipo de guerra, os chamados “fossados” ou incursões rápidas, emboscadas e razias para desgaste e destruição de víveres.
Os “cavaleiros-vilãos”, ou lavradores livres, eram cavaleiros designados pelos concelhos para combater nas hostes do rei, devendo para isso ter posses suficientes para possuir cavalo, armas e ter um rendimento, já que normalmente eram donos de terras. Não recebiam qualquer pagamento, mas ficavam isentos de determinados impostos. Nos concelhos são os homens-bons e nas cortes representam a classe popular, estando assim entre a nobreza e o povo. Muitos dos cavaleiros-vilãos eram moçárabes e estavam muito familiarizados com os “fossados” ou incursões no território inimigo.
O território em disputa era o actual Alentejo e a Estremadura espanhola, que constituía uma zona de fronteira, militarizada, povoada por pequenos castelos e algumas cidades com alguma importância, Évora, Baja e Badajoz, das quais Badajoz era sem dúvida a mais importante.
Neste território surgem grupos de guerreiros marginais, pouco dependentes do poder oficial, que viviam da pilhagem de rebanhos e das minas, e do rapto de populações para escravatura. Vários topónimos relacionados com estes grupos marginais perduram, como três castelos chamados dos Ladrões, a Malhada dos Ladrões, o Monte dos Ladrões ou o Ribeiro dos Ladrões. (AFONSO 2021: 5)
Neste território de fronteira abundavam diversos tipos de gente que vivia da guerra e do saque, com razões e motivações diferentes: “marginais, foragidos ou simples aventureiros, estrangeiros com misteriosas histórias pessoais, nobres – em regra, secundogénitos e bastardos – desprovidos de qualquer património e sem perspectivas de futuro, derrotados em guerras entre famílias, ou de querelas no interior dos centros urbanos, e transfugas às exacções senhoriais do Norte do Douro.” (BARATA 1996: 362)
Organizavam-se em pequenos grupos chamados mesnadas, fossem de carácter marginal/mercenário ou de carácter feudal, estas últimas formadas pelos vassalos de determinado senhor feudal que se organizavam para realizar incursões rápidas em território inimigo, obter saques e sabotar os abastecimentos de víveres aos castelos mais isolados.
Apesar de serem grupos reduzidos em termos de homens, eram extremamente eficazes, mas apenas o grupo de Giraldo atingiu uma dimensão suficiente para realizar os feitos que concretizou, como a conquista de cidades e o confronto directo com tropas organizadas.

Monsaraz
Giraldo, guerreiro de fronteira
As origens de Giraldo não são bem conhecidas, mas uma das possibilidades é que seria um moçárabe, provavelmente natural de Santarém. O seu conhecimento das terras do Gharb al-Andalus e das suas cidades, dos costumes e língua árabe, indiciam que terá crescido no seio da sociedade muçulmana.
Outra explicação sobre a sua origem é a de que seria um nobre cristão caído em desgraça por um crime cometido, e exilado em terras muçulmanas. “A ele se juntavam todos os proscritos e malfeitores que passavam a integrar a sua mesnada, e como mantinha tréguas com os muçulmanos dedicavam-se a razias em território cristão, sendo por isso apodados de ladrões.” O facto de as forças de Afonso Henriques começarem a actuar próximo da sua área teria como consequência que começasse a lutar pelos cristãos, para obter o seu perdão. (PEREIRA, 2008, pág. 26)
Outra ainda seria a de que Giraldo era um antigo escravo cristão criado pelos muçulmanos, o que explicaria também o seu conhecimento da língua e hábitos árabes. (PEREIRA, 2008, pág. 44)
Este seu passado de cristão arabizado seria confirmado nas referências que nos textos árabes são feitas à sua pessoa, apelidando-o de galego, traidor, cão, estrangeiro e renegado, mas eta conclusão poderá não ser tão evidente. Por um lado, as referências a Afonso Henriques não são assim tão diferentes, já que frequentemente é apelidado de traidor galego, e o próprio conceito de traição não corresponde ao que hoje utilizamos, como esclarece Hui Miranda, quando diz que tomar cidades à traição significa tomá-las de surpresa. (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 137)
Para Armando de Sousa Pereira, Giraldo era “um homem de trânsito entre dois universos sociais, culturais e religiosos distintos, antagónicos e conflituantes, complementares por vezes. Dezenraizado de qualquer um deles. Sem especial sentido de pertença, move-se nas margens.” (PEREIRA, 2008, pág. 45)
Giraldo agia por conta própria, com o seu exército de bandoleiros, atacando as praças muçulmanas pela calada da noite, e entregando-as posteriormente a Afonso Henriques, fosse a troco de um pagamento, fosse no âmbito de uma relação de vassalagem. A sua mesnada era sobretudo constituída por homens recrutados nas povoações das fronteiras, a que se juntariam renegados andalusinos, sobretudo muladis caídos em desgraça pela intolerância trazida pelos almóadas.
‘Abd al-Malîk b. Muhammad b. Ibn Sâlih as-Salâ, cronista almóada natural de Beja e secretário do Mahzen (Estado) no Algarve, conhecido pelos seus textos inflamados, conta assim a forma como Giraldo tomava as cidades e castelos:
“Afonso, filho de Henrique, o traidor galego, senhor de Coimbra, foi testemunha do arrojo deste cão, Giraldo, e nomeou-o para tomar à traição (significa tomar de surpresa, segundo Huici Miranda) as cidades e castelos, que lhe assinalou com os seus homens, e deu-lhe poder sobre os muçulmanos nas fronteiras com os seus terrores. O cão (Giraldo) caminhava nas noites chuvosas e muito escuras, de forte vento e neve, até às cidades e tinha preparado os seus instrumentos de escadas de madeira muito compridas, que ultrapassavam a muralha da cidade, colocava as escadas nas costas da torre e era o primeiro a subir por elas, até à torre e agarrava a sentinela e dizia-lhe: ‘Grita como fazes habitualmente’, para que os outros não se apercebessem. Quando o seu miserável grupo tinha completado a subida ao mais alto muro da cidade, gritavam na sua língua com um grande alarido execrável, e entravam na cidade e combatiam os que encontravam e roubavam e levavam cativos e prisioneiros todos os que estavam nela.” (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 137)
Giraldo ou Geraldo, era conhecido pelos muçulmanos como Gerando, Garando ou Ibn Djeranda.

A zona de actuação de Giraldo
As campanhas de Giraldo
No ano de 1162 um grupo de cavaleiros cristãos ao serviço do rei de Portugal, comandados por Fernando Gonçalves filho do alcaide de Coimbra, realiza uma incursão pelo baixo Alentejo e toma a cidade de Beja durante a noite. Durante a sua passagem por Santarém terão engrossado as suas hostes com vários cavaleiros-vilãos, e pensa-se que Giraldo estivesse entre eles. A ocupação de Beja ocorre desde o mês de Novembro até Abril do ano seguinte, após o que foi arrasada, incendiada e abandonada.
Segundo Ibn Sâlih as-Salâ, “os cristãos de Santarém” tomaram Beja em Dezembro de 1162, ocuparam-na durante quatro meses e oito dias, derrubaram as suas muralhas e despovoaram-na.” (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 137)
Giraldo inicia então as suas conquistas. Primeiro Trujilho em Abril-Maio de 1165 e Évora em Setembro-Outubro do mesmo ano, esta última que vendeu aos cristãos, no dizer de As-Salâ.
A tomada de Évora é a sua mais notória conquista, cidade que entrega ao rei de Portugal e lhe terá valido a nomeação de alcaide da mesma. A esta versão dos acontecimentos, os cronistas Árabes da época apresentam uma outra, a que Giraldo vendeu a cidade a Afonso Henriques, o que aliás faria com as suas conquistas posteriores.
Entre 1165 e 1167 seguem-se Trujillo, Cáceres, Montanchez, Lobón, Monsaraz, Moura, Serpa, Alconchel e Juromenha, onde, nesta última, estabelece o seu quartel-general.
Tomou Cáceres em Dezembro-Janeiro de 1166 e o castelo de Serpa em Março desse ano. “Depois tomou à traição o castelo de Juromenha nas cercanias de Badajoz, e povoou-o com a sua gente miserável, para a partir dele atacar Badajoz e fazer dano aos muçulmanos dela, até que Deus o entregou à espada do Príncipe dos Crentes (Amîr al-Mu’minîn). Depois tomou à traição a cidade de Badajoz.” (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 137-138)
A tomada de Badajoz foi um episódio significativo nas conquistas de Giraldo, pelo facto de envolver o exército de Afonso Henriques, um exército almóada que foi enviado de Marrocos para retomar a cidade e o exército do rei de Leão, Fernando, o Baboso, ao lado dos almóadas.

O Castelo de Alegrete
No ano de 1169 Giraldo cerca Badajoz e pede ajuda a Afonso Henriques, que conquista a cidade. Ao saber desta situação, Fernando II, o Baboso, rei de Leão, a coberto de uma aliança que mantinha com os mouros de Badajoz, cerca a cidade.
A cidade estava assim na posse de Afonso Henriques, mas os almóadas resistiam na sua alcáçova, quando um exército enviado de Marrocos para a socorrer chegou a Sevilha, onde foi recebida a “boa nova que Fernando, chamado o Baboso, filho de Afonso, o rei pequeno, senhor de Ciudad-Rodrigo e de Ávila e de Leão e de Zamora, tinha chegado com a sua gente e a sua multidão de cavalaria e infantaria” para ajudar os muçulmanos. Ao saberem desta situação, os almóadas que estavam na alcáçova abriram um buraco na muralha e saíram para abrir as portas da cidade para deixar entrar o exército de Fernando, o Baboso. (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 143-144)
No combate que se segue as forças de Afonso Henriques são atacadas em duas frentes. Pelos leoneses do lado de fora das muralhas e pelos almóadas que ainda resistiam na alcáçova. Os portugueses são obrigados a retirar. Durante a fuga, o rei de Portugal parte a perna no ferrolho da porta da cidade, perde os sentidos e é transportado pelos seus para um lugar próximo chamado Caia.
Ibn Salih conta assim o episódio:
“Os companheiros de Fernando o Baboso esforçaram-se com os muçulmanos contra o exército de Ibn ar-Rink, até que Deus os derrotou para sorte do Príncipe dos Crentes, e Ibn ar-Rink fugiu vencido, e quando quis sair pela porta da cidade de Badajoz, inquieto e presa do medo violento, estava a barra da porta da cidade atravessada e tinha Deus disposto que estivesse rodeado dos seus soldados, e apressou-se o maldito Ibn ar-Rink para a saída, e na pressa de fugir e abrir caminho, rompeu na barra da porta a sua coxa direita, e caiu no local desvanecido, e foi transportado pelos infiéis seus companheiros para um local conhecido por Caia, nas cercanias de Badajoz, e foi seguido pelos generais de Fernando o Baboso; conduziram-no preso até ele e o pôs a ferros; logo o soltou a pedido dos cristãos e deixou-o regressar a Coimbra, sua capital, vencido e humilhado, e desde esse dia, mão mais montou a cavalo até que morreu e Deus meteu-o no fogo (do inferno)”. (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 144)

Canto VIII, 21, de “Os Lusíadas” de Luís Vaz de Camões
Ibn Khaldoun também relata o acontecimento:
“O Califa Abû Yacub, tendo reafirmado a sua autoridade em África, voltou a sua atenção para a Hispânia cuja situação lhe parecia exigir a retoma da guerra santa. O maldito inimigo tinha surpreendido sucessivamente as cidades de Trujilho, Évora, a fortaleza de Chebrina, a de Djelmania situada face a Badajoz e, de seguida, a própria cidade de Badajoz. Esta notícia alarmante fez o Califa decidir enviar a elite do exército almóada, sob as ordens do xeque Abû Hafs. No ano de 564 (1169), este general marchou para libertar Badajoz. Chegado a Sevilha, soube que a guarnição almóada de Badajoz, tendo sido socorrida por Fernando II, filho de Afonso VIII tinha vencido e aprisionado Ibn er-Renk (D. Afonso Henriques), que a tinha cercado, e que Ibn Djeranda (Giraldo) o Galego, tinha fugido para a sua fortaleza.” (IBN KHALDOUN 1927: 198-199)
“A Portugal regressou um soberano cansado e envelhecido, doente e incapaz” (PEREIRA, 2008, pág. 57).
Entregou o comando das operações militares do reino ao seu filho Sancho e a responsabilidade de defesa da fronteira Sul aos Templários.
Fernando II de Leão devolve Badajoz aos almóadas e recupera as praças da actual Extremadura espanhola. Afinal a grande ameaça da expansão do Reino de Leão para Sul eram os portugueses. “A posse portuguesa de Badajoz e um hipotético senhorio de Geraldo aí implantado significavam para os leoneses o encerramento da sua via natural de expansão. A única disponível.” (PEREIRA, 2008, pág. 59)

Coimbra
Quanto a Giraldo volta para Juromenha e, sem o apoio de Afonso Henriques, inicia uma guerra por conta própria, passando a governar de forma independente o seu território na zona do Guadiana. Obcecado com a conquista de Badajoz, começa a fazer razias insistentes no campo que a circunda, destruindo colheitas, roubando gabo e privando a cidade do necessário abastecimento de víveres. Apoiado por bandos de cavaleiros-vilãos de Santarém, monta um cerco à cidade, impedindo o seu abastecimento pelo exterior.
Para ajudar Badajoz, os almóadas enviam em Maio de 1170 uma caravana de 5.000 burros com mantimentos, protegida por tropas berberes e andalusinas. Giraldo monta uma emboscada no Vale de Matamouros. As tropas muçulmanas são desbaratadas e os mantimentos saqueados.
“Durante a sua estadia nela (cidade de Badajoz) tiveram lugar entre ele e o maldito estrangeiro Giraldo, estabelecido com a sua tropa no castelo de Juromenha, combates a que resistiu o ‘hafiz’ ilustre, Abû Yâhya, que venceu e logrou rechaçar o maldito estrangeiro, e persistiu na guerra contra ele vários meses, até que engendrou o estrangeiro maldito um estratagema de guerra, que preparou e realizou. Chamou uma tropa miserável e numerosa da gente de Santarém, cristãos e partidários seus, e levou-os a um local em que os emboscou, e com a sua tropa conhecida e miserável marchou e raziou as cercanias de Badajoz. Cavalgou o ‘hafiz’ Abû Yâhya e seus companheiros e soldados, perseguindo-os. Fugiu ante deles o estrangeiro, aparentando medo, e procurou salvação na rapidez, até que chegou ao lugar da celada maldita, e cederam os muçulmanos e foram derrotados”. (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 149-150)
“No mês de Rayab deste ano (21 de Março a 19 de Abril de 1179) aumentou a debilidade da cidade de Badajoz por falta de alimentos; pelos acosso do estrangeiro maldito, Giraldo, contra ela com ataques e cortar a entrada de provisões; prepararam os almóadas que estavam em Sevilha um aprovisionamento abundante de víveres, armas e forragens para transportar a ela, e se reuniu para isso 5.000 acémias carregadas com o mencionado, e se pôs à frente para conduzi-los o ‘hafiz’ Abû Yâhya Zakarys b. ‘Alî com as tropas de Sevilha e sua região, almóadas e andalusinos, e quando chegou o aprovisionamento aos arredores de Badajoz, saiu contra eles o maldito Giraldo e a sua miserável tropa de cristãos e da gente de Santarém; lutaram uma grande parte do dia; foram derrotados os muçulmanos, mortos e cativos e foi roubado o aprovisionamento que desapareceu na totalidade.“ (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 153)

O Castelo de Juromenha
O ano de 1171 é um ano de reveses para Giraldo. Abu Yaqub Yussuf organiza um exército comandado por Abu Saíd Uthman para pacificar o Guadiana. O exército junta-se a tropas de Fernando II de Leão e expulsa os bandoleiros dos arredores de Badajoz, perseguindo-os até Juromenha, que cercam e destroem. O mesmo exército reconquista o Castelo de Lobón. Nas duas situações os almóadas procuram capturar Giraldo, mas este ou consegue fugir ou não se encontra presente. Ibn Sahib As-Salat descreve assim o evento:
“Sucedeu que Abû al-‘Ala b. ‘Azzûn deu um bom conselho aos almóadas; e pelo seu amor ao Príncipe dos Crentes, incitou-os a tacar o castelo de Labiun (Lobón), próximo de Badajoz. Tinha aí ficado um grupo de cristãos e companheiros do maldito Giraldo. Cercaram o castelo e tomaram-no com todos os infiéis que estavam nele.” (IBN SÂHIB AL-SALÂ 1969: 187)
No ano seguinte Giraldo participa na sua última acção militar em colaboração com os portugueses, tomando de assalto a cidade de Beja. Do lado português o exército é comandado pelo infante Sancho, dada a invalidez de Afonso Henriques. A cidade é tomada pela calada da noite e mantida em poder dos portugueses durante alguns meses, após o que é destruída e abandonada.
O ano de 1173 fica marcado por ofensivas de grande vulto por parte dos exércitos almóadas que, apesar de conseguirem substanciais saques nos territórios cristãos, não alteram os limites das fronteiras existentes. No seguimento, tanto castelhanos como portugueses estabelecem acordos de paz com Sevilha. O acordo de paz de 5 anos celebrado por Afonso Henriques permite aos portugueses organizar o seu território de fronteira, consolidar o povoamento e conceder cartas de foral às principais cidades. Permite também promover a trasladação das relíquias de S. Vicente, de Sagres para Lisboa.
“Suspensa a ofensiva militar, assumidas outras prioridades políticas, não havia mais lugar para Geraldo Sem Pavor. Era necessário garantir o estrito cumprimento do pacto com o Islão. Na ausência de projectos bélicos, extinguem-se as fontes de rendimento, a subsistência, os meios de manutenção do seu grupo armado, de um modo de vida. A própria legitimidade enquanto chefe de guerra fica posta em causa. Perdidos os castelos, a alternativa encontra-se da outra banda, na terra dos Infiéis que antes tinha fustigado.” (PEREIRA, 2008, pág. 68-69)

O Alcazar de Sevilha, capital almorávida
O fim do mercenário
Segundo Garcia Domingues, Giraldo não só muda de campo por razões materiais, como se converte ao islamismo. (DOMINGUES 2010: 224)
Com um grupo de companheiros dirige-se a Sevilha, e coloca-se ao serviço dos muçulmanos.
Refere o cronista Ibn Idari:
“No ano de 569 – 12 Agosto de 1173 a 1 de Agosto de 1174 – foi a chegada a Sevilha do estrangeiro cruel, Giraldo, o que surpreendeu a cidade de Beja e outros castelos e cidades e deixou deserto o cultivado e o povoado. Era caíd de Ibn ar-Rink e chefe do seu exército. Chegou com os seus companheiros a Sevilha, corte do Califa, submisso e obediente, para ser um escravo servidor e fazer mal aos seus irmãos cristãos. O Califa aceitou as suas palavras, hospedou-o e ordenou que fosse bem tratado e honrado.” (IBN IDÁRI 1953: 13)
Pensa-se que durante os anos seguintes, Giraldo participou em acções militares contra os cristãos.
Três anos depois Yaqub al-Mansur regressa a Marraquexe e leva consigo Giraldo e os cerca de 350 bandoleiros que o acompanhavam, a quem confia o governo de Tarudant, capital do Sus. O papel de Giraldo será o de pacificar a tribo dos Sanhaja, rival do poder almóada.
O desfecho da história de Giraldo fica marcado pela sua prisão no Dra’a ou em Sigilmassa (as fontes são contraditórias), e posterior execução, devido a uma carta que terá escrito a Afonso Henriques propondo-lhe uma operação militar portuguesa no Sus marroquino.

Marraquexe
Refere o cronista Al-Baidak, traduzido por Lévi-Provençal:
“Ele (o Príncipe dos Crentes) levou consigo para esta cidade (Marraquexe) o cristão chamado Garando; depois, enviou-o para o Sus, que lhe deu como feudo. Mas, do Sus, este chefe enviou cartas a Lisboa a Ibn ar-Rink (Henrique = Henrique de Portugal), para o informar que ele ocupava esta região situada junto ao mar, acrescentando: ‘Talvez fosse conveniente da tua parte armar galeras para te apoderares do território que eu comando; o meu apoio efectivo seria assegurado!’. Mas os mensageiros que levavam estas cartas à traição foram apanhados. O Príncipe dos Crentes chamou então Garando. Este veio do Sus a Marraquexe. O Califa enviou instruções a Musa b. ‘Abd as-Samad no Dar’a: ‘Quando te eviarmos Garando e os seus companheiros, reparte-os pelas tribos; e mata-o de seguida, porque encontramos cartas que provam a sua impostura!’ Depois, o Príncipe dos Crentes convidou Garando a partir para o Dar’a e disse-lhe: ‘Esse país vale mais para ti que o Sus!’ Ele partiu com os seus companheiros, em número de trezentos e cinquenta, todos milicianos cristãos. À sua chegada, Musa executou a ordem do Príncipe dos Crentes. Isto passou-se em 565 (25 de Setembro de 1169-15 de Setembro de 1170).” (LÉVI_PROVENÇAL 1928: 216)
Evariste Lévi-Provençal acrescenta em nota de roda-pé que a rebelião de Garando é contada pelo cronista Al-Baidak e ele próprio não a assinala noutros textos. Sobre o nome Garando, o autor coloca a possibilidade estar na origem do topónimo Gerando, nome de um local da tribo Dukkala, situado entre Mazagão e Marraquexe, onde se encontram ruínas atribuídas aos portugueses. (Idem)
De acordo com o Anónimo de Madrid e Copenhaga, Giraldo foi detido e colocado numa prisão em Sijilmassa, no Tafilalt marroquino. “Pensou ele, todavia, em fugir da prisão e embarcar em algum porto, mas descobriu-se o seu projecto e foi posto à morte, cortando-lhe a cabeça para acabar com os seus manejos.” (HUICI MIRANDA 1917: obra citada)
Bibliografia:
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AL-HIMYARI (1963). Kitab al-Raed al-Mi’tar. Traducido por M.ª Pilar Maestro González. Textos Medievales, 10. Valência: Gráficas Bautista
ALVES, Adalberto (2007). Portugal e o Islão Iniciático. Lisboa: Ésquilo edições e multimédia, Lda.
AZEVEDO, Rui Pinto de (1958). Documentos Medievais Portugueses DMP, Documentos Régios DR, vol. I, tomo I e II: Documentos dos Condes Portugalenses e de D, Afonso Henriques: 1095-1185. Lisboa: Academia Portuguesa da História
BARATA, Filipe Themudo (1996). “A Actuação de Geraldo Sem Pavor no Quadro das Sociedades de Fronteira do Século XII”. In Actas do 2º Congresso Históorico de Guimarães, pp. 360-372. Guimarães: Câmara Municipal e Universidade do Minho
COELHO, António Borges (1989). Portugal na Espanha Árabe. Lisboa: Editorial Caminho
DOMINGUES, José Garcia (2010). História Luso-Árabe. Faro: Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves
HUICI MIRANDA, Ambrosio (1917). El Anónimo de Madrid y Copenhague. Valência: Instituto General y Técnico de Valencia
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MATTOSO, José (2001). Identificação de um País. Vol. 2. Lisboa: Círculo de Leitores
PEREIRA, Armando de Sousa (2008). Geraldo Sem Pavor. Um guerreiro de fronteira entre cristãos e muçulmanos – c. 1162-1176. Porto: Fronteira do Caos Editores, Lda.










































































































































































Sabe me dizer em que ano foi conquistada Lobón e Santa Cruz de la Sierra? (por Giraldo)
A data da conquista desses castelos não é conhecida com exactidão.
Armando de Sousa Pereira, na obra “Giraldo Sem Pavor, um guerreiro de fronteira entre cristãos e muçulmanos c. 1162-1176”, refere na página 50:
“Em meados de Abril de 1165 conquista Trujillo, em Setembro do mesmo ano chega à cidade de Évora e nos finais de Dezembro apodera-se de Cáceres. Passados os meses mais agrestes do Inverno, conquista Montánchez em Março de 1166, Serpa e Juromenha logo em Abril. Por essa altura terá também ocupado os cerros fortificados de Santa Cruz e Monfrague. É provável que tenha ainda tomado posse dos castelos de Moura, Monsaraz, Alconchel e Lobón, numa data indeterminada que não ultrapassou, talvez, o ano de 1168. A respeito destes últimos subsistem somente alguns indícios, os sugeridos pela toponímia ou pela leitura oblíqua que os textos coevos permitem.”
E na página 90 refere que em Dezembro de 1165 “Geraldo Sem Pavor conquista os castelos de Santa Cruz, Monfrague, Lobón, Moura, Monsaraz e Alconchel (prováveis, entre este ano e o de 1168)”.