O Castelo de Beni Boufrah. foto Jitenshaman
A presença de Portugal no litoral de Marrocos é normalmente referenciada à costa Atlântica, onde os portugueses mantiveram praças-fortes entre 1415, data da conquista de Ceuta, e 1769, data do abandono de Mazagão. No entanto, existem testemunhos que provam que também no Mediterrâneo Portugal estabeleceu pontos de controlo da navegação e contenção das acções dos corsários Norte-Africanos.
No cimo de um monte, na desembocadura do Oued Beni Boufrah, existem vestígios dessa ocupação portuguesa, restos de um castelo construído nos finais do século XV, que “assinalaria o limite oriental da presença portuguesa na costa do Mediterrâneo”. (BARATA, 2012, página electrónica citada)
Esse castelo seria abandonado por Portugal e ocupado por Castela após a assinatura do Tratado de Sintra de 1509, que reconheceu aos espanhóis o direito aos enclaves no Mar Mediterrâneo, ficando Portugal senhor da costa Atlântica.
A costa do Rif na região de Targha
O Rif é uma cordilheira que bordeja a costa mediterrânica de Marrocos, estendendo-se desde o Estreito de Gibraltar até à fronteira com a Argélia. Caracteriza-se por montanhas de grande altitude, atingindo os 2.450 metros no Jbel Tidirhine, que frequentemente terminam em escarpas sobre o mar, originando uma linha de costa muito irregular, repleta de pequenas enseadas, que dão acesso ao interior do território através de vales profundos.
É habitado por tribos Amazigh que falam uma das três línguas Tamazight de Marrocos, denominada Tarifit, gente aguerrida que preserva a sua identidade cultural muito à custa do isolamento e difíceis condições de mobilidade.
Os rifenhos tiveram um papel fundamental na história de Marrocos e do próprio Al-Andalus. Foi no seu seio que Oqba Ibn Nafi foi acolhido ao iniciar a ocupação Árabe de Marrocos, eram rifenhas as tropas que sob o comando do Berbere Tarik Ibn Zyad atravessaram o Estreito em 711 e foi no Rif que Abderrahman Ben Umaya organizou um exército para derrotar os Abássida no Al-Andalus e instituir o Emirato Omíada de Córdoba. Foi também no Rif que Abdelkrim Khattabi levou a cabo uma guerra implacável contra a colonização espanhola durantes os anos 20 do século passado.
No Rif existiram também territórios de governação autónoma, reinos ou principados, como os de Nakur ou Badis, conforme refere Ahmed Tahiri. (TAHIRI, 2013, p. 37)
Localização de Beni Boufrah
Após a conquista de Ceuta pelos portugueses em 1415, a cidade torna-se a principal base do corso português, a partir da qual se realizam não só acções de pilhagem a navios Magrebinos e do Reino de Granada, mas também ataques aos ninhos de corsários nas costas Atlântica e Mediterrânica de Marrocos e da Andalusia. Os portugueses constroem então algumas fortalezas na costa do Rif, como afirma Patrice Cressier (CRESSIER, 1981 p. 87-92 e 164-165), investigador que fez o seu levantamento e estudo. O Castelo de Beni Boufrah, a mais importante de todas, assume particular relevância, já que é construído a poucos quilómetros de Badis, importante ninho de corsários berberes, onde piratas argelinos se haviam estabelecido. Outra seria a Torre de Mestassa, no local onde hoje se situa Cala Iris.
Para além destas, existem uma série de Torres de Vigia datadas dos séculos XV-XVI, cuja origem não é clara, já que tanto são referenciadas como podendo ser de construção portuguesa, como obra da Dinastia Sádida. É o caso das torres de vigia de Tizgane, Stehat, Beni Bouzra e Amter, todas elas situadas entre Targha e El Jebha.
Cala Iris, local da Torre de Mestassa
Esta militarização da costa do Rif no século XV-XVI tem como consequência principal o recuo populacional para o interior do território, criando-se aí importantes núcleos resistentes aos ataques portugueses, como é exemplo a cidade de Chefchauen, reforçada por contingentes de mouriscos provenientes da Península Ibérica. As Torres de Vigia tinham assim funções distintas conforme a sua ocupação, já que nas mãos dos portugueses serviam para controlar a navegação, atacar os navios do corso e confinar as populações ao interior do território, mas nas mãos dos marroquinos tinham essencialmente como função defender o seu país, a sua costa e a segurança dos seus habitantes.
Luís Adão da Fonseca sublinha a presença efectiva de Portugal no Mediterrâneo nos finais do século XV e a sua importância estratégica para os interesses portugueses:
“Na verdade, o Mediterrâneo mantém-se ainda, em finais do século XV, como a grande retaguarda do espaço marítimo português, o que, sendo verdade em termos económicos, não o é menos em termos de estratégia política global (a partir de Gibraltar, o mar oceânico transforma-se em fronteira de expansão política). Daí que, com a viagem de Vasco da Gama à Índia, o Mediterrâneo não tenha perdido nada da sua importância. Percebem-no os mercadores italianos que, com força crescente, investem na Rota do Cabo, e percebe-o o poder real lusitano que, desde o princípio, entende que a chegada vitoriosa dos portugueses à Índia, porque constitui um evidente sucesso, reforça a necessidade de uma aproximação maior entre as duas monarquias. O Atlântico-próximo, centrado em Gibraltar, ibérico e magrebiano, transforma-se, assim, já com D. João II mas de forma muito mais clara com D. Manuel I, em área de compensação e segurança, fundamental na referida aproximação.” (FONSECA, 2006, p. 54)
O Castelo de Beni Boufrah
Para além de Patrice Cressier, outros autores defendem a origem portuguesa do Castelo de Beni Boufrah com base em textos da época, como Suarez Montanes que afirma que “em 1499 o rei de Portugal mandou construir uma fortaleza num lugar chamado Kala, situado a uma pequena distância a Oeste de Badis (…) mas tendo reconhecido rapidamente a dificuldade de manter o local, ordenou o seu desmantelamento. A guarnição que o ocupava foi retirada para Ceuta”. (PRIMAUDAIE, 1872 p. 105-135, citado por ELBOUDJAY, 2003 p. 299)
O abandono do Castelo pelos portugueses terá ocorrido em 1503 ou 1504, de acordo com outros dois textos, num dos quais se afirma que “foi construído em 1499 pelo Rei D. Manuel e uma guarnição portuguesa aí residiu durante cinco anos antes do seu abandono”. (ONIEVA, 1947 p. 503, citado por ELBOUDJAY, 2003 p. 299)
O isolamento do local, o carácter agreste da sua envolvente física e o facto de se implantar num meio tão hostil terão tornado a vida da sua guarnição militar num sobressalto constante, pesando para a decisão de o abandonar o enorme esforço que implicava e a pouca utilidade que trazia ao país.
Castelo de Beni Boufrah ou Torres de Alcalá
O Castelo implanta-se no topo de uma colina sobranceira ao mar, a 91 metros de altura, e apresenta uma planta quadrangular irregular, dispondo de 5 torres circulares, 4 nos seus cantos e outra de protecção à porta de acesso. A presença marcante das torres na paisagem deu origem à actual designação da fortificação, Torres de Alcalá, nome que deriva do Árabe Al-Qal’a, ou torre. O facto de Montanes referir que o local já se chamava Kala antes da construção do castelo, poderá indiciar que já ali existiria uma torre de vigia.
Conforme já foi referido, a função do castelo não era apenas a de vigia da navegação e de guerra aos piratas de Badis. Tinha também a função de confinar ao interior do território as populações que habitavam o vale do Oued Beni Boufrah, impedindo o seu estabelecimento na costa e eventual adesão e apoio ao corso. (ELBOUDJAY, 2003 p. 293-300)
Planta do Castelo de Beni Boufrah da autoria de Patrice Cressier
O Castelo tem as dimensões de 26 metros de lado, muros com 1,60 de espessura, torres com alturas que variam entre 4.50 e 5.70 metros, com diâmetros aproximados de 5,00 metros. Todo o conjunto apresenta um embasamento em pedra e é construído segundo um processo misto, com base em paredes de alvenaria pobre de pedra e cal e torres em taipa militar, com utilização de uma cofragem circular, cujas marcas das agulhas ou cangalhas são bem visíveis. O arqueólogo-conservador Abdelatif Elboudjay, que escavou o local, descreve o material do enchimento das torres, de composição bastante heterogénea, como sendo constituído por “pedras calcárias, pequenos seixos, gravilha, lajetas de pedra e ligante à base de cal”. (ELBOUDJAY, 2003 p. 295)
El Jebha
Em 1508 Castela ocupa o Rochedo de Badis, também conhecido pelo nome de Peñon Velez de la Gomera, o Rochedo Beles dos textos portugueses, o que provoca os protestos do Rei D. Manuel, já que Badis era território em relação ao qual Portugal mantinha aspirações de trazer para a sua esfera.
A situação fica resolvida com a assinatura do Tratado de Sintra de 1509, segundo o qual, em termos gerais, Portugal reconhece a Castela a soberania dos enclaves da costa Mediterrânica de Marrocos, e Castela reconhece a soberania de Portugal sobre a costa Atlântica até ao Cabo Bojador, incluindo o Reino de Fez. Mas este reconhecimento de Castela em relação à soberania de Portugal sobre o Reino de Fez deixava margem para interpretações duvidosas, já que a costa Mediterrânica de Marrocos era pertença do Reino de Fez.
De qualquer forma, aquando da assinatura do tratado, Portugal já tinha abandonado a região cinco anos antes e Castela teve que expulsar os corsários que entretanto se haviam aí instalado.
As torres do Castelo de Beni Boufrah
No entanto, origem portuguesa de Beni Boufrah não é unânime.
As fontes são claras ao referir que os portugueses instalaram-se neste local e que a sua presença foi breve, fruto dos acordos Ibéricos. Os investigadores que se debruçaram sobre o assunto são maioritariamente dessa opinião (Themudo Barata, Cressier, Montanés e Elboudjay). Por outro lado, a tipologia do castelo (quadrado com torres circulares nos cunhais) é tipica das fortalezas portuguesas do início do século XVI em Marrocos.
Mas também é verdade que a utilização de taipa, ainda por cima com cofragem circular, não é nada comum na arquitectura militar portuguesa, apesar de existirem em Portugal exemplos de construção em taipa com cofragem circular, sobretudo em moinhos no Alentejo e Algarve (BEXIGA, 2005 p. 243-247). Neste sentido, a autoria portuguesa da construção das torres é de facto questionável, podendo essa obra ter sido realizada com recurso a mão-de-obra local (pouco provável) ou, talvez (mais provável) serem de construção posterior, ou seja, uma reconstrução das torres originais.
Mas o facto que mais põe em causa a origem portuguesa do Castelo não é tanto o seu processo construtivo mas a sua implantação no cimo de um monte, sem acesso fácil ao mar, sabendo-se que a relação directa entre as fortificações e o mar eram fundamentais para a sua sobrevivência.
A impressionante Torre de Targha
Outros autores, como Gozalbes Cravioto, afirmam categoricamente que Beni Boufrah não é um castelo português (GOZALBES CRAVIOTO, 2015). Miguel Tarradell atribui a sua construção aos Árabes, afirmando que será “de uma época difícil de determinar”. (TARRADELL, 1952, citado por ELBOUDJAY, 2003 p. 296)
No inventário do património cultural do Rif de Er Rbati, grande parte das construções defensivas da costa do Rif são atribuídas à Dinastia Sádida, do século XVI, como é o caso da Torre de Targha (ER RBATI, 2010 p. 8). Esta opinião é desmentida por outros autores que referem que o Rif nunca foi verdadeiramente controlado pelos Sádidas, como Ahmed Tahiri, mantendo-se uma área em poder dos Oatácidas mesmo após a conquista Sádida de Fez.
Degradação das torres do Castelo de Beni Boufrah
Beni Boufrah é hoje um imóvel cuja sobrevivência se encontra em risco, reduzido ao seu embasamento e torres, cuja taipa apresenta sinais de uma rápida deterioração, como aliás as imagens aqui apresentadas demonstram. É certamente mais um testemunho da nossa presença em Marrocos que deveria merecer uma especial atenção.
شكرا للاستاذ فريدريكو مينديز بولا على هذا البحث الذي سلط الضوء على فترة من تاريخ منطقة بني بوفراح والتي هي منطقتي :ذلك أود أن أصحح معلومة في هذا المقال تتعلق ببرج مسطاسة حيث أنه لا يتواجد بمنطقة كلايريس cala irisوإنما بمسطاسة علب 3 كلمترات أو أربع جهة الغرب من cala iris والبرج لازال موجودا الا الأن على تلة تطل على البحر رغم أن نصفه العلوي تهدم الى أنه لا يزال شامخا الى الأن وعندي صورة له لو اردتها سارسلها لك . في الحقيقة كنت أعرف أن قلعة بني بوفراح أصلها برتغالي بينما لم أكن أعرف أن برج مسطاسة هو برتغالي الاصل حيث كنت أظنه من أثار المرينين حيث يشاع هنا في الموروث الشفهي المتداول ان من بناه هو السلطان الاكحل المريني.. وشكرا
صديقي العزيز
إن موضوع التواجد البرتغالي على ساحل الريف، ليس بالأمر التوافقي. في الواقع كانت هناك معادة بين كل من البرتغال و إسبانيا ١٥٠٩ بسينترا تم فيها الاعتراف لدى الإسبانيين الحق في التواجد على ساحل الأبيض المتوسط.وتبعا لذلك فإن فترة التواجد البرتغالي في هذه المنطقة كانت جد وجيزة.
لكن هناك مؤرخون أمثال « كريسيرمونتانيش » و « إيلبودجاي » يجزمون بأن تأسيس كل من « مستاسة » و «بني بوفراح » هو تشييد برتغالي بكل المقاييس، بينما هناك آراء مضادة…
Excelente divulgação! Obrigada.
Excelente artigo. No ano passado desenvolvi a minha actividade profissional em Al Hoceima e nessa altura referiram-me a origem desta construção associada aos portugueses. Agora, graças as suas indicações consigo compreender. Obrigado mais uma vez.
Al Hoceima, apesar de ser uma cidade de formação relativamente recente, fica numa área de grande riqueza patrimonial, sobretudo em termos de vestígios arqueológicos. Local do antigo Reino de Nakur e do porto de Al-Mazama, base de embarque das mercadorias provenientes do Sahara via Sijilmassa, destruídos pelos Vikings e posteriormente pelos Almorávidas, pela concorrência que faziam a Marraquexe, (e cujos vestígios infelizmente foram parcialmente destruídos pela construção de um resort implantado na baía), local do desembarque das forças franco-espanholas durante a Guerra do Rif, onde ainda são visíveis as “covas de lobo” onde os rifenhos resistiram…