Esfera armilar existente na fachada do Castelo do Mar de Safim
“Um reino português em Marrocos era sonho irrealizável com os nossos parcos recursos em gente e dinheiro”. (LOPES, [1937] 1989, p. 12)
Esta frase de David Lopes espelha uma realidade constante durante os 354 anos que durou a presença portuguesa em Marrocos, marcada pela existência de praças-fortes isoladas, dependentes dos abastecimentos do exterior, constantemente ameaçadas pela hostilidade do território envolvente, como tão bem exprimiu ao afirmar também que “não vemos (…) D. Henrique fechar os olhos às realidades e querer conquistar um país que Portugal, de pouca população e pobre, não podia abarcar. Um realista como ele sempre se revelou não podia ter tão estulta pretensão; e se algum dia teve esse sonho, filho da inexperiência primeira, deve ter acordado dele quando o mar imenso se começou a abrir diante das suas caravelas. Os perigos eram aí, afinal, menores e as vantagens maiores”. (LOPES, [1937] 1989, p. 12)
A costa de Marrocos vista do estreito de Gibraltar
As razões que levaram à expansão portuguesa, tiveram múltiplas causas, mas que poderemos sintetizar em cinco grandes grupos:
Estratégicas, relacionadas com a supremacia na região, o controlo da navegação no Estreito de Gibraltar e a defesa da navegação portuguesa e da costa do Algarve; Políticas, que se basearam no aumento do peso político do Reino de Portugal face às restantes monarquias Ibéricas e no alargamento das suas fronteiras; Económicas, procurando a apropriação dos mercados do ouro, prata e especiarias que afluíam aos portos marroquinos e da produção de trigo de Marrocos; Religiosas, levando a cabo uma “guerra santa” contra o Reino de Granada, o Reino de Fez e o Mundo Islâmico em geral; Sociais, com base nas aspirações da Nobreza em adquirir novas terras e rendas, e da Burguesia na sua procura por novos produtos e novos mercados.
A ocupação da costa marroquina pelos portugueses processou-se em diferentes etapas e assumiu formas diversas ao nível do seu modelo, fruto das condições geopolíticas de cada momento e das próprias características do povoamento do território em questão. Os pressupostos que levaram D. João I a conquistar Ceuta e posteriormente a impelir a Coroa portuguesa a continuar a ocupação costeira de Marrocos, como a asfixia do Reino de Fez através do corte do seu acesso ao mar, o controle do comércio das caravanas ou a posse do trigo da Duquela afinal saíram frustrados, e Marrocos revelou-se “um sorvedouro de gente e dinheiro”. (MORENO, 1994, p. 15)
A ocupação da costa de Marrocos por Portugal fica dividida em duas zonas distintas, uma a Norte e outra a Sul, que alguns cronistas chamam Marrocos Verde e Marrocos Amarelo (SANTOS, 2007, p. 3), que se distinguem uma da outra pelo clima, geografia, tipo de culturas e criação de gado, e pelo próprio enquadramento político _ enquanto no Marrocos Verde o poder do Rei de Fez se faz sentir de forma centralizadora, no Marrocos Amarelo existe uma certa autonomia das tribos Berberes, que gerem com alguma independência o seu território.
Entre as duas zonas fica um território que os portugueses nunca controlaram, um hiato na ocupação da costa, que garante ao Reino de Fez o acesso ao mar e onde se situam importantes ninhos de corsários que permanentemente põem em causa a segurança da navegação e do abastecimento das praças.
As Praças portuguesas na costa de Marrocos
Portugal podia, quanto muito, manter Praças-fortes na costa de Marrocos, que mesmo assim se mostraram extremamente dispendiosas para os cofres do reino. Tinham que ser abastecidas por mar, dependendo totalmente de uma logística exterior, e exigiam a cobrança de impostos especiais no Reino, extremamente impopulares. Existia inclusivamente uma grande dificuldade em recrutar homens para defender e habitar nas praças de Marrocos, concedendo-se privilégios de monta aos fronteiros (militares e administração pública) e recorrendo-se em a condenados, os chamados degredados, que alcançavam o perdão após a sua permanência aí de um ou mais anos.
Oliveira Martins descreve assim a situação de isolamento e perigo constante em que se encontravam as praças de Marrocos:
“Ficávamos nas praças de Marrocos, como a bordo das nossas naus; porém as naus iam, vinham, livremente pelos mares, multiplicando a força, distribuindo o castigo; ao passo que as praças de Africa eram pontões imóveis, ancorados, constantemente batidos pelas vagas da mourama tempestuosa.” (MARTINS, 1947, p. 258-259)
As Praças-fortes eram sobretudo um investimento sem retorno palpável, apenas mantidas por razões estratégicas, já que asseguravam a navegabilidade das naus livre das pilhagens dos piratas norte africanos, garantiam a segurança do Sul de Portugal contra possíveis ataques do reino de Fez e asseguravam no contexto regional a hegemonia estratégica de Portugal em relação a Espanha.
A frente de mar de Arzila
A política de ocupação das cidades implementada por Portugal, expulsando os seus habitantes para fora de portas, teve desde logo como consequência a herança de estruturas urbanas demasiado grandes e ingovernáveis. Só no caso de Ceuta, a cidade vê a sua população num só dia reduzida de 30.000 habitantes para uma guarnição de 2.500 homens, acontecendo um processo semelhante com as restantes cidades ocupadas. Conforme referiu Zurara na crónica da sua conquista, “já passavam de sete horas e meia depois do meio-dia, quando a cidade foi de todo livre dos mouros”. (ZURARA, [1450] 1915, p. 234)
Para solucionar este problema, os portugueses reduziam a área da cidade conquistada através de um processo com base nos atalhos, tramos de muralha interiores ao perímetro muralhado, que o seccionavam, dividindo a cidade em duas partes. Criava-se assim a Vila Nova e a Vila Velha. A Vila Nova, onde os portugueses se instalavam, era invariavelmente de menor dimensão e abarcava a área mais próxima do mar, onde era possível realizar os necessários abastecimentos. As construções e muralha da Vila Velha eram progressivamente demolidas, já que, sem habitantes, constituíam um perigo onde se produziam possíveis emboscadas, e a área acabava por se transformar em campos de cultivo, pomares e pastagens para o gado.
A couraça de Alcácer Ceguer
Um outro elemento fundamental das fortificações portuguesas eram as couraças, tramos de muralha perpendiculares à cintura principal, que se prolongavam até ao mar. As couraças seriam um elemento constante e marcante das fortificações portuguesas em Marrocos, garantindo não só que as manobras de abastecimento se realizassem em segurança, como assegurando o próprio controlo da praia enquanto território vital à sua sobrevivência. Eram assim postos avançados de artilharia sobre o mar e corredores fortificados para cargas e descargas.
“A palavra couraça significa, em termos gerais, uma muralha perpendicular ao muro de uma fortificação, realizada para proteger o abastecimento. Deriva do árabe qawraya, que sabemos se empregava pelo menos desde o século XIII (…) as couraças, como assinala Huici Miranda, protegiam um caminho até um poço ou, como nos diz Robert Ricard, a um rio ou inclusivamente ao mar.” (GOZALBES CRAVIOTO, 1980, p. 365)
Morabito no campo de Alcácer Quibir
Mas guerra nas praças portuguesas em Marrocos fazia-se sobretudo nos terrenos que as circundavam, já que os seus habitantes, apesar de confinados ao perímetro muralhado enquanto reduto seguro, precisavam de sair dele todos os dias para efectuar tarefas fundamentais à sua subsistência. A recolha de lenha era uma delas, o desenvolvimento de uma agricultura de carácter precário e de produção extremamente limitada era outra, a garantia de pasto para as poucas cabeças de gado outra ainda. Sem essas actividades a vida nas praças seria muito mais dura, não só porque permitiam que a dieta dos seus habitantes não se limitasse ao biscoito e carne ou peixe secos, mas fosse também composta por alguns frescos, mas também pelo próprio aspecto psicológico que tinha a saída diária fora de portas, que atenuava a sensação de encarceramento que a vida nas praças originava. Para garantir que essas tarefas se realizavam com um mínimo de segurança e eficiência, os portugueses desenvolveram sistemas defensivos engenhosos, sujeitos a procedimentos rotineiros rígidos, estruturando um modelo de defesa e vigilância capaz de garantir a segurança dos trabalhadores agrícolas e da própria praça, que se desguarnecia momentaneamente durante os períodos em que as suas portas ficavam abertas.
A Torre de Menagem de Arzila
A vida nas praças estava intimamente relacionada com a própria actividade desenvolvida no campo exterior e seguia um procedimento rotineiro diário. Às primeiras horas do dia saíam os escutas ou atalhadores, que examinavam cuidadosamente todo o campo, procurando infiltrados que se tivessem escondido durante a noite para emboscar os lavradores.
Após a inspecção ao campo feita pelos atalhadores, saíam os atalaias, que ocupavam as suas posições no cimo de determinadas colinas, chamadas precisamente atalaias. Com eles iam os costas, que lhes davam protecção, posicionando-se na base das mesmas colinas. Se o campo estivesse seguro, os atalaias informavam o Facho, uma torre que constituía a mãe de todas as atalaias, e o facheiro içava uma cesta forrada com pano no mastro situado no cimo da torre. O sinal era recebido na Torre de Menagem do Castelo e o governador dava então ordem para os trabalhos no campo se iniciarem através de 5 badaladas do sino. Ao mínimo sinal de perigo, o facho era arreado em sinal de alerta. Da Torre de Menagem partia a ordem de evacuação do campo exterior, comunicada através de tiros de canhão.
Todo este sistema defensivo exterior era complementado com um outro, ofensivo ou preventivo, baseado na actividade dos almogávares, força de intervenção rápida que funcionava como uma espécie de contra-guerrilha, que tinha por missão fazer incursões em território inimigo, destruindo colheitas, roubando gado e fazendo cativos, com o objectivo de pacificar as populações ou afastá-las para áreas mais remotas, para além de combater os mujahidin ao serviço do rei de Fez.
“É a guerra de surpresas e de ciladas, aproveitando os acidentes do terreno ou a escuridão da noite.” (LOPES, [1937] 1989, p. 43)
O Castelo de S. Jorge de Mazagão, precursor da cidadela construída posteriormente ao seu redor
A singularidade da presença portuguesa fica também marcada no próprio processo de construção de fortalezas, já que era nesse período que a intervenção era mais vulnerável aos ataques inimigos, como aliás ficou demonstrado nas tentativas falhadas de construção das fortalezas da Graciosa e de S. João da Mamora.
Os construtores portugueses desenvolvem então um processo de construção de fortalezas extremamente racional, seguro e expedito, com base em projectos-tipo, na pré-fabricação de materiais e na utilização de uma estrutura pré-fabricada em madeira para apoio, situação que permitia uma grande racionalização de meios.
O projecto-tipo tinha por base uma planta quadrangular e torreões circulares nos seus vértices, fossem quatro ou dois, colocados de forma a cobrir os ângulos de tiro rasantes à muralha e a proteger a porta de entrada.
Por outro lado, os materiais eram transportados de Portugal, num processo de pré-fabricação, o que acelerava o processo construtivo e evitava riscos desnecessários com a eventual fabricação no local. Pedras de cantaria eram transportadas já talhadas, os elementos de madeira prontos a utilizar, a cal, os pregos, etc. Finalmente, a construção definitiva era precedida da montagem no sítio de uma estrutura pré-fabricada de madeira, para abrigo dos operários e das defesas, em torno da qual se construía a estrutura definitiva. No final, a estrutura de madeira era desmontada.
O Baluarte de S. Cristóvão em Azamor
O período da ocupação portuguesa da costa de Marrocos coincide com uma época em que as técnicas de defesa militar se alteram radicalmente, fruto da generalização da utilização da pólvora. Fortemente influenciados pelo modelo vanguardista italiano, os debuxadores portugueses puseram em prática nas Praças de Marrocos os princípios inovadores da transição da neurobalística para a pirobalística e Marrocos foi um autêntico laboratório onde essas técnicas foram experimentadas. O contributo português para o desenvolvimento da Arquitectura Militar foi inegável.
Podemos considerar três períodos distintos das construções militares portuguesas em Marrocos:
Durante o século XV, com um carácter tardo-medieval, as intervenções têm sobretudo o objectivo de adaptar as estruturas existentes às necessidades dos portugueses, reconstruindo-se muralhas danificadas, criando-se atalhos e estruturando-se os campos exteriores.
Na primeira metade do século XVI as intervenções têm um caracter de adaptação à nova realidade que a utilização generalizada da pólvora criou, chamando-se por esse facto fortificações da transição. São enviados para as praças do Norte Diogo Boitaca e Francisco Danzilho, e para as do Sul os irmãos Diogo e Francisco de Arruda, que transformam as estruturas existentes para melhor resistirem aos impactos dos projécteis e para serem apetrechadas com bocas de fogo. É também o período da construção de fortalezas isoladas no Sul de Marrocos, que, no entanto, tiveram uma curta vida em mãos portuguesas.
A partir de 1541, após a queda de Santa Cruz do Cabo Guer, as construções assumem-se plenamente como fortificações da pirobalística, sobretudo com as obras da responsabilidade de Miguel de Arruda e de Benedetto da Ravena. Tudo passa a ser concebido em função dos ângulos de tiro e os problemas do tiro de proximidade e dos ângulos mortos são solucionados, através do chamado fogo rasante.
A Cidadela de Mazagão
Mas a intervenção nas Praças de Marrocos não se resumiu aos aspectos relativos à sua defesa e reforço e reformulação das respectivas estruturas. Houve todo um trabalho de adaptação das próprias estruturas urbanas ao modo de vida europeu, racionalizando o seu traçado e funcionalidade, numa acção de estruturação urbana.
De uma forma geral a intervenção portuguesa resume-se a um arrumar das funções no território, e devemos ter em consideração que se tratava de praças militares, e como tal, com necessidades específicas, tendo os edifícios de logística, administração e defesa um carácter primordial, e de uma regularização dos traçados das vias e quarteirões, a chamada arruação, conferindo à estrutura alguma lógica e disciplina. Basicamente era criada a Rua Direita, eixo estruturador fundamental, em muitos casos ligando a Porta do Mar à Porta do Campo, ao longo do qual se localizavam os principais equipamentos colectivos. O Terreiro era outro elemento fundamental, enquanto espaço de confluência da população e de organização das principais cerimónias públicas.
Em Arzila, fruto das destruições que os acontecimentos de 1508 originaram, foi levada a cabo uma operação urbanística de fundo, estruturando-se a partir do eixo definido pela Rua Direita, uma malha urbana ortogonal que permitiu a criação de uma estrutura extremamente racional, na qual as acessibilidades entre as várias funcionalidades se processava de forma directa e simples. À semelhança de Azamor, as ruas são calcetadas e o espaço público dispõe de equipamentos como o chafariz.
Mas é em Mazagão que o novo urbanismo do Renascimento se exprime em todo o seu esplendor, sendo considerada a primeira cidade planeada fora da Europa. Mazagão constitui um modelo de planeamento urbano e de construção da cidade, de transposição para o território de funções urbanas, instaladas segundo determinada escala e de acordo com princípios de racionalidade e sustentabilidade.
Muitos destes conceitos que os portugueses introduziram nas cidades ocupadas de Marrocos serão posteriormente transportados para as novas cidades coloniais e estarão na génese do próprio planeamento urbano moderno.
Cronologia da ocupação portuguesa da costa de Marrocos
Analisando o esquema cronológico da ocupação da costa de Marrocos, verificamos que Portugal ocupou apenas quatro praças na costa marroquina durante o século XV, manteve doze praças durante a primeira metade do século XVI, apenas três no século XVII e uma só no século XVIII. Refira-se também que as fortalezas tiveram uma vida efémera em mãos portuguesas, entre quatro e nove anos apenas, o que mostra bem a dificuldade de manter posições militares isoladas neste território hostil, e também a sua inutilidade, tendo em conta a facilidade com que foram tomadas ou abandonadas.
Mas o modelo de controlo territorial posto em prática por Portugal em Marrocos revelou-se desastroso, já que se baseou na persecução de objectivos inatingíveis, desperdiçando recursos inutilmente, e os poucos reveses sofridos foram pretextos para as evacuações que a Coroa Portuguesa ansiava. O desastre da Mamora, com a morte de 4.000 portugueses e a perda de 100 navios marcou indubitavelmente o fim da política expansionista em Marrocos, enquanto a conquista de Santa Cruz do Cabo Guer pelos Xerifes Sádidas foi o pretexto para as evacuações de Safim e Azamor nesse mesmo ano e de Arzila e Alcácer Ceguer nove anos depois.
Tânger, Ceuta e Mazagão acabariam por ser entregues sem glória, terminando com o pesado fardo que constituíam.
O Baluarte de Santo António em Ceuta e o Fosso Navegável, vendo-se ao fundo, o Baluarte de S. Sebastião
O legado edificado português em Marrocos apenas existe na costa. Eventuais referências a construções feitas pelos portugueses no interior do território são fantasias, mitos que a imaginação popular desenvolveu, que os textos portugueses não referem e que os investigadores marroquinos desmentem categoricamente e explicam. (PAULA, 2016, p. 89-105)
Em Ceuta os portugueses deixaram um importante legado, nas suas muralhas, com destaque para a Frente de Terra com os Baluartes de Santo António e S. Sebastião, imponentes baluartes de orelhões, e o seu Fosso Navegável, da autoria de Miguel de Arruda, e para a Couraça da Banda de Tetuão. São também testemunhos o Forte de Santo Amaro, e alguns exemplares da arquitectura religiosa, como a Igreja de N. Sra. de Africa e a Catedral, adaptação da mesquita a igreja dedicada a N. Sra. da Assunção. Segundo Francisco Sousa Lobo, “em Ceuta, foram construídas pelos portugueses muitas outras igrejas e capelas, localizando‐se, na sua maior parte, na Almina. São elas: Nossa Senhora do Vale, Vera Cruz (construída no reinado de D. Sebastião), São Pedro (de devoção dos pescadores), São Simão, Santo Amaro (somente edificada em 1602), Santo António do Tojal (mandada erguer por Miguel de Meneses) e Santa Catarina (que começou por ser uma simples ermida). Fora da Almina, para além dos principais templos já citados, foram construídas ainda as igrejas de São Sebastião e de Santo António. A maior parte delas ainda existe, embora algumas estejam desafetas ao culto”. (LOBO, 2013, página electrónica citada). A estrutura urbana reflecte ainda a “arruação” portuguesa da cidade.
Em Alcácer Ceguer, apesar de o local se encontrar bastante arruinado, são visíveis os vestígios da impressionante Couraça e do Castelo, projectos de Diogo Boitaca construídos por Francisco Danzilho.
Em Arzila o legado português é vastíssimo, em toda a sua cintura muralhada, com destaque para as três couraças da frente de mar, Couraça, Baluarte de S. Francisco e Baluarte da Pata da Aranha, para o muro de atalho, que liga os Baluartes de Tambalalão e de Santa Cruz e para a Torre de Menagem ou El Kamra, recuperada recentemente com apoio da Fundação Gulbenkian. Em Arzila processou-se uma operação urbanística de relevo, patente no traçado dos quarteirões estruturados ao longo da antiga Rua Direita. A intervenção teve também a marca Diogo Boitaca e Francisco Danzilho.
Em Tânger, apesar das intervenções que a muralha sofreu posteriormente, destacam-se os dois muros do atalho ao longo das Ruas da Kasbah e de Portugal, a frente de mar com as suas couraças, obras de Francisco Danzilho, e a Cidadela, cuja entrada é defendida pelo impressionante Baluarte dos Fidalgos, projectos de Miguel de Arruda. Uma referência também para abertura da Rua Direita, actuais ruas Siaghine e de la Marine, que ligava a Porta do Mar à Porta do Campo e a meio da qual se situava o mercado, actual socco chico.
A Muralha de Safim
De Santa Cruz do Cabo Guer, cidadela que evoluiu de uma fortaleza construída pelo comerciante João Lopes Sequeira no local da actual cidade de Agadir, nada resta hoje em dia, mas sabemos que à data do grande terramoto de 1960 ainda existia o chamado Baluarte de Tameráque, do seu lado norte.
No Rochedo do Diabo, poucos quilómetros a Norte de Agadir, Junto à povoação de Tamraght, na praia de Immourane, são ainda visíveis as ruínas da antiga fortaleza de Ben Mirao, também construída pelo comerciante João Lopes Sequeira.
Em Essaouira já nada resta do antigo Castelo Real de Mogador, construído por Diogo de Azambuja, mas é comum atribuir-se erradamente aos portugueses a construção das Muralhas da cidade e da Skala do porto, obras realizadas no reinado de Sidi Mohamed ben Abdellah pelos renegados Théodore Cornut e Ahmed El Inglizi. No entanto existe na cidade uma Igreja portuguesa arruinada, construída por comerciantes que aí se fixaram no século XVIII.
Safim é outra cidade em que os vestígios portugueses são consideráveis, como a cintura muralhada, o Castelo do Mar (em risco de derrocada) e o Castelo do Alto ou Kechla, com o seu impressionante Baluarte da Alcáçova, obras dos irmãos Diogo e Francisco de Arruda. De salientar a Catedral de Santa Catarina, da autoria de João Luiz, da qual só resta a Capela-mor e uma das capelas laterais. A antiga Rua Direita, actual rua do Souk, que à semelhança de Tânger, também ligava a Porta do Mar à Porta do Campo, é ainda o eixo estruturador da Medina.
Em Azamor observa-se o esplendor da obra dos irmãos Arruda, patente na Muralha, nos impressionantes Baluartes de S. Cristóvão, do Raio e do Rio, e na Casa do Governador. A estrutura urbana tem a marca da operação de arruar promovida por Simão Correia.
Na praia de Souira Qadima permanece o Castelo de Aguz, construído numa noite com o auxílio dos anjos, como reza a lenda. Obra dos Arruda, é um exemplo típico das fortalezas portuguesas em Marrocos, com a sua planta quadrangular e dois baluartes cilíndricos em ângulos opostos.
A Cidadela de Mazagão em El Jadida
Mas é em Mazagão, a joia da Coroa Portuguesa, que o legado português atinge o seu ponto mais alto, com a impressionante cidadela projectada por uma equipa liderada por Miguel de Arruda e que integrava Benedetto da Ravena, Francisco de Holanda, Diogo de Torralva, João de Castilho e João Ribeiro.
Inicialmente, em 1514, foi construída uma fortaleza, chamada Castelo de S. Jorge de Mazagão, da autoria dos irmãos Diogo e Francisco Arruda, que se revelou pouco eficaz em termos defensivos. Após o abandono das praças de Safim e Azamor, em 1541, as defesas de Mazagão são completamente remodeladas, para garantir um ponto de apoio seguro para as frotas que faziam a Rota do Cabo.
O projecto baseia-se numa planta quadrangular com cerca de seis hectares de área, com os lados quebrados em estrela de quatro pontas, para aumentar o ângulo de tiro, com quatro baluartes nos cantos, encimados por casamatas, paredes com doze metros de espessura, sobre as quais se implanta o caminho de ronda, e fosso dos lados Sul, Poente e Norte. Do lado Nascente, na frente de mar, a muralha sofre uma descontinuidade para formar um pequeno porto de abrigo. Uma porta principal no centro do pano Poente, duas pequenas portas secundárias e mais outras duas pequenas portas de apoio á construção.
“O modelo repousava sobre o princípio fundamental da eliminação dos ângulos mortos ou cegos através do cruzamento de linhas de fogo rasantes e paralelas aos planos horizontal da água do fosso e vertical da muralha, disparadas a partir de dois níveis de canhoneiras colocadas nos orelhões dos baluartes. O sistema assumia-se como um autêntico organismo bélico através da desmultiplicação das direcções de tiro desde as plataformas superiores dos baluartes, coroados com seus cavaleiros, e ao longo dos caminhos de ronda das instâncias intermédias dos muros, como provam as diferentes orientações das canhoneiras mazaganenses.” (CORREIA, 2007, p. 198-199)
Refere Rafael Moreira:
“Mais importante como experiência, já teorizada na Itália mas só aqui empregue pela primeira vez, (…) é o traçado dos muros em cortinas rectas até 300 metros de extensão: eles inclinam-se para o interior formando ângulos muito abertos entre dois baluartes adjacentes. Trata-se de um recurso para aumentar a capacidade de vigilância e alargar a zona de tiro.” (MOREIRA, 2001, p. 57)
A cisterna manuelina da Cidadela de Mazagão em El Jadida
Em Mazagão o novo urbanismo do Renascimento exprime-se em todo o seu esplendor, sendo considerada a primeira cidade planeada fora da Europa. Mazagão constitui um modelo de planeamento urbano e de construção da cidade, de transposição para o território de funções urbanas, instaladas segundo determinada escala e de acordo com princípios de racionalidade e sustentabilidade.
O antigo Castelo de S. Jorge de Mazagão, permanece como centro urbano, em redor do qual se concentram os principais equipamentos. No seu pátio é construída a Cisterna Manuelina, com 1.156 m2 e capacidade para cerca de 2.500 metros cúbicos de água, armazenada através de um pequeno aqueduto e de uma abertura central com 3 metros de diâmetro.
“Reaproveitada do pátio aberto do forte de 1514, de solo rebaixado para poder conter a floresta de colunas e pilares de ordem toscana que sustentava a meia altura do terraço superior, único espaço usualmente acessível – pois o depósito de água, como era lógico, era fechado – com o seu bocal de poço, (hoje no interior) e rodeado pelo magnífico conjunto de escadarias e armazéns de víveres tão castilhianos que se diria transportados desde Tomar, nessa junção simbólica da água com o pão: a Cisterna era e é o edifício emblemático de Mazagão. Nela resume-se, o coração da vila, o que ela tem de melhor.” (MOREIRA, 2001, p. 58)
Os campos da Duquela junto ao Cabo Beddouza
O tema da influência portuguesa em Marrocos ultrapassa em muito os simples testemunhos edificados. É sobretudo um conjunto de vivências partilhadas, de influências linguísticas, sociais e culturais. Portugueses e marroquinos têm um passado comum de encontros e desencontros, de semelhanças e contrastes, de amores e ódios. Uma história marcada pela incompreensão, pela curiosidade e pelo mistério, assumindo aspectos pouco esclarecidos, por vezes mesmo desconcertantes, mas sobretudo pouco estudados.
Existe em Marrocos uma conotação do português com o inexplicável, que alguns autores chamam de Mythe El Bartqiz, com diversos mitos que fazem parte do imaginário marroquino, por razões mais ou menos compreensíveis, às quais não serão alheios os factos de se encontrarem enraizados em comunidades rurais, com base em histórias com origem suficientemente remota para darem largas à imaginação popular, mas de memória suficientemente recente para que os mais idosos as transmitam de geração em geração.
Notável,sem dúvida, este trabalho, que merece os mais sinceros parabéns . Descrevendo de forma brilhante toda a estória da presença portuguesa, devidamente ilustrada com magnificas imagens do que existia (e permanece no tempo a perpetuar o nome dos nossos antepassados que ali deixaram a sua marca) bem podemos orgulhar-nos dos seus feitos durante os 354 anos ali vividos. Aliás, políticas à parte, noutras paragens do mundo outros exemplos confirmam a saga que nos carateriza. António Freire
Obrigado pelo seu comentário. É de facto um Mundo de testemunhos e vestígios por todo o Mundo
Já estive nestes lugares há anos. É emocionante ver o que os portugueses deixaram por tantos lugares marroquinos e não só, Éramos grandes !